Para quem passou 70% das viradas de ano no interior, mudar-se para a praia significou um compromisso irrevogável com as sete ondas. Já dei “olá” ao primeiro de janeiro ao som de uma rave, em uma missa com trechos rezados em latim, de pijama em frente à TV, em festa metida à besta onde não se perde a linha, devorando uma alcatra numa churrascaria (onde, sim, se perde a linha). Quando firmei residência em território que possui Iemanjá como anfitriã, resolvi receber o novo ano com os pés molhados e sujos de areia.
Para cada onda um pedido. Alguns dizem que o pacote oferecido pelo oceano inclui um só desejo por virada e que estou abusando da boa vontade dos deuses do mar, já esgotados com o serviço prestado na Austrália e ainda tendo que dar conta de milhares de anseios espalhados pelo nosso litoral. Mas pouco importa. São sete pedidos. Às vezes um oitavo embutido sorrateiramente quando uma marolinha separa uma onda da outra.
Guardo em mente alguns que se realizaram. Não sei dizer se de toda forma aconteceriam caso eu ainda estivesse jogando semente de uva pra trás com salto alto e pés sequinhos em algum lugar do Centro-Oeste como de praxe. Provavelmente sim, já que a mágica não está no local, mas na crença depositada na mandinga. E porque há magia das grandes ali — das estrelas do céu goianiense às cachoeiras frequentadas por ET’s em Alto Paraíso. Mas principalmente porque, como todos sabemos, no último dia do ano há magia por todos os cantos do mundo, reforçando a fé, reestruturando alegrias, unindo gente de toda parte no incansável e necessário esforço de reavivar sonhos.
Rendidos aos encantos da renovação, brindamos a virada de página cientes de que a troca de calendário não tem o poder de apagar as dores, resolver as pendências, colar os cacos deixados pelas pelejas que cruzaram nossos passos de janeiro a dezembro. Mas pode nos acariciar com a ideia de que, findado o ciclo, nos preenchemos com a força necessária para prosseguir. Inebriados pelos fogos que pintam o céu de dourado, acreditamos que tudo pode ser melhor quando a vida ganha contornos de recomeço.
Em 31 de dezembro nos credenciamos a pedir o que falta e agradecer pelo que sobrou. Das mesas fartas de lentilha às festas pomposas, do Pai Nosso rezado em família às oferendas em barcas com flores, das roupas brancas dos que desejam paz aos adereços coloridos dos que clamam por mais, celebramos a chance de vibrar em coro a esperança. No fundo sabemos que nada vira do avesso no minuto que separa o antes e o depois. Mas sabemos também que não há outra forma de acreditar que a vida possa ser melhor, ou ao menos possível.
E será. Para os que estão no calçadão de Copacabana, na selva Amazônica, entre as estruturas concretas da avenida paulista, nas ladeiras do Pelourinho, nos vinhedos gaúchos, nas praças, nos becos, nos apartamentos apertados e nas casas com quintal espaçoso. A vida será melhor ainda que mais dura, ainda que manifestada no cotidiano menos mágico que as últimas horas do ano. Será melhor simplesmente por continuar e nos oferecer a oportunidade de reinventar um jeito de abraçá-la com simbolismos que reanimam a vontade de seguir adiante.