Desigualdade. Opressão. Preconceito. Assim têm me destratado ao longo de uma vida. Elas, as ofensivas roupas do meu varal. Secas e prontas para ser recolhidas, anseiam por estar devidamente dispostas no armário. Querem urgentemente cumprir o ofício de vestir, vestir e vestir. Insatisfeitas com minha suposta negligência doméstica, lançam silenciosos e potentes insultos. Naquele ardiloso e calmo vai e vem no vento, dissimulam leveza. Mas transformam cada ida à lavanderia em tortura. Vozes ocas ecoam, opacas: “tareeeefas não cumpriiiiidas”. Fingem preocupação comigo enquanto desejam que lhes passe o ferro. Muito diferentes de quando as conheci, nas lojas, e tinham total compromisso com minha autoestima. Agora, o que querem mesmo é estremecer a confiança feminina que conquistei. Penduradas na máxima de que defender iguais direitos para mulheres e homens é oriunda da incapacidade de organização das rotinas do lar. E tentam incutir, com seus pregadores, a fantasiosa ideia de que o feminismo torna cada uma de nós inadequadas ao amor. Olha, é ultraje um traje dispor de tanta força. Parafraseando Deleuze, reconheço a potência do falso como vontade de dominação ordenadora e moralizante, que tem por trás de si a mentira. Mas não vou deixar a falsidade comandando um jogo e vou explicar em gênero, número e grau, para essas fulaninhas e tantos outros seres, do que trata a atividade doméstica.
Primeiramente, aviso: não visto a camisa da guerra entre os sexos. E honro as calças que visto. Por isso, estou atenta aos fatos relativos ao sexismo e entendo seu uso a serviço de algo maior que briguinhas de casal por causa de toalha molhada em cima da cama. Nesse sentido, nosso cenário em números: somos 100 milhões de brasileiras, ou 51,5% da população total, estamos mais escolarizadas (75% com ensino médio completo e 33%, superior), ocupamos cada vez mais cargos de chefia (cerca de 40%, um aumento de 9% em dez anos). E, surpreendentemente, como trabalhadoras estudadas ainda dedicamos 73% mais horas do que os homens às atividades do lar, revelam as estatísticas de gênero do IBGE. Antes de chamar companheiros de folgados e filhos de preguiçosos, a pergunta que não quer calar é: por que diabos ainda nos sentimos responsáveis por carregar a casa nas costas?
Objetivamente sabemos que algumas tarefas não podem ser postergadas. Alimentar um filho ou manter vestuário mínimo para o dia a dia de trabalho, por exemplo. Não dá para ser daqui a pouco. Mas a louça na pia, a poeira nos móveis ou certa bagunça podem esperar, certo? Nem sempre. Que atire a primeira pedra aquela que nunca trocou a maquiagem diária por uma “catadinha rápida” de brinquedos na sala e foi trabalhar com um mix de satisfação e aborrecimento! Olha, nem de longe fui criada no modelo Amélia. Minha mãe prefere trocar lâmpadas a cozinhar e meu pai faz roscas incríveis. Tenho dois irmãos mais novos que limpavam a casa tanto quanto eu. Sempre fomos incentivados ao estudo como forma de independência. Nunca me deram panelinhas ou outros brinquedos politicamente incorretos para meninas. Eu é que a-do-ra-va brincar de casinha com as vassourinhas da vizinha. Nem por isso escolhi ser dona de casa. Sou jornalista há quase 20 anos, me dedico de corpo e alma à minha profissão. Trabalhei fora desde a faculdade e sei sobreviver sozinha. Casada e com uma filha de um ano, não preciso pedir para meu marido dividir a labuta da cama, mesa e banho. Ele se sente tão responsável quanto eu. Então, de onde vem essa cobrança?
Vivenciamos hoje o grau superlativo de prosperidade da participação feminina. As ruas lotadérrimas testemunham nosso recado dos últimos anos: não nos tratem como minorias, pois somos a maior parte desse inteiro que insistem em rachar. Tamanha força obrigou a comunicação a reconhecer e reforçar o nascimento de uma outra noção de fêmea contemporânea. A publicidade ampliou a abordagem e seus produtos atendem também as necessidades das mulheres proativas, de sexualidade resolvida e livres com seu corpo. O jornalismo se viu obrigado a contemplar temas delicados por exigência de leitoras críticas de jornais e, hoje, por exemplo, se noticia com mais estarrecimento os casos de feminicídio. Nas decisões políticas, vamos além do sufrágio universal. Vide reeleição de presidenta e o número de candidatas a vice nos pleitos do executivo e legislativo. É emocionante reconhecer essas e outras vitórias desse movimento de menos “cale a boca” e mais “coloque a boca no trombone”, sabe? O problema é que, em algumas circunstâncias, o discurso ainda é em parte “da boca para fora”. O nó está na cultura do gênero arraigada, visceralmente, por gerações.
Alguns valores são perpassados naqueles malditos não ditos sociais. Meus pais nunca me oprimiram com obrigações caseiras. Porém, no inconsciente coletivo já ficou registrado há séculos que lavar, passar e cozinhar atestam o bom desempenho feminino. Dessa forma, o lugar de sucesso da mulher sempre esteve garantido nos papéis de mãe e esposa, em imagens explícitas e implícitas em revistas, novelas e rodinhas de conversas. Basta seguir um manual básico. Desolador e injusto, e também uma farsa, por ser uma falsa zona de conforto emocional. Paulo Ribeiro, sociólogo e professor da Unicamp, resume bem em seu livro “O Papel da Mulher na Sociedade” a mudança de lugar do feminino no século 21: “A mulher deixou de ser coadjuvante para assumir um lugar diferente na sociedade, com novas liberdades, possibilidades e responsabilidades, dando voz ativa a seu senso crítico. Deixou-se de acreditar numa inferioridade natural da mulher diante da figura masculina nos mais diferentes âmbitos da vida social, inferioridade esta aceita e assumida muitas vezes mesmo por algumas mulheres”.
Transformar um padrão de comportamento tão impregnado em nós é custoso. Mas também não sejamos inocentes de pensar que ganhamos isso tudo. Lutamos há séculos, tivemos conquistas e também muitas perdas. Uma delas, a sensação do controle. Por mais insano que pareça, estar no comando do aspirador de pó ou saber a localização exata de todos os pertences da família dão a impressão de ter o poder nas mãos. E sugerem importância, relevância, valor. O grande problema é que não são nada disso. E, sim, há maridos, filhos e outros familiares abusadores de mulheres tão fragilizadas culturalmente que chegam a implorar por um espanador. Espana, dor?
Nunca. A dramática vivência de se contorcer para não distorcer nossos papéis viscerais femininos é um compromisso individual. E que também deve ser potencializado em grupo. Repitamos como um mantra: exigir respeito não significa, obrigatoriamente, dominar tecnologias, ser magra sarada viajada e adoradora de comida funcional. Nem focar em chefiar uma empresa depois de fazer 25 especializações. Não temos que ser mães nem odiar pães. Prefere ser a recatada e do lar? Perfeito! Gosta de pênis, vaginas ou tudo ao mesmo tempo e agora? Se jogue. É executiva e curte cozinhar? Crie seus pratos. Prefere partos? Gere vidas. Não se reconhece como mulher? Aceite-se homem. Cuide de seu conforto interno, sempre que der, em primeira mão. É acintosa a exigência de satisfação social e performance em cima da mulher, muitas vezes praticada por nós mesmas. Olha, redundâncias à parte, o direito à expressão que galgamos é justamente isso: poder exercer a pessoa que somos, rompendo com papéis culturais e respeitando as essências individuais. É preciso fazer a travessia. Portanto, urge que a força da submissão íntima das mulheres seja cuidadosamente recolhida, para que nosso imaginário não trate as tarefas domésticas de forma tão alucinante. E para isso, é preciso lavar muita roupa suja.