Dos meus vícios (há tantos!), talvez o menos condenável seja a leitura de cartas. Pois estou com sorte para cultivar minhas manias: a Companhia das Letras publico há algum tempo “O Rio é Tão Longe”, coletânea de cartas de Otto Lara Resende para Fernando Sabino (e também relançou “Bom Dia Para Nascer”, agora com 74 crônicas a mais do que na primeira edição). As cartas de Otto podem ser lidas em conjunto com as cartas do próprio Fernando, publicadas pela Record em 2002 (“Cartas na Mesa”). É o que venho fazendo e o que me motivou a pensar nos velhos escritores mineiros — dos quais também há tantos.
Otto, prolífico no que escrevia aos amigos, dizia-se “o último cidadão que ainda se dedica a este gênero obsoleto que é o epistolar”. Já Fernando Sabino, com apenas 22 anos, lamentava a passagem do tempo: “Sim, é verdade que um tempo nosso se encerrou. Somos homens, não somos mais meninos do Trianon, meninos do Viaduto, dos porres, das placas de rua, de cadeados, até mesmo de vitrines de chapelaria. No fundo, se a gente pensar bem, triste tentativa de sentir de novo um tempo que passou, nada mais” (Otto, Fernando e seus amigos trocavam placas de identificação de casas e cadeados de portões) — se Sabino era nostálgico aos 22 anos, eu, aos 40, sou um Matusalém… E os dois também fofocavam, contavam histórias, lamentavam, riam, choravam, amavam e odiavam nas cartas — essa facúndia escrita lança dúvidas sobre o alegado comedimento mineiro. Sobretudo, eles, tomados de irresistível ‘cacoethes scribendi’ desde a infância, comentavam livros, e é essa compulsão literária que me espanta nos mineiros de então. Por isso, busco-os nas coletâneas de cartas, romances e livros de memórias que deixaram.
Fernando Sabino e Otto Lara Resende faziam parte, por assim dizer, da segunda geração de modernistas mineiros. Antes deles, houve os amigos que frequentavam o Café Estrela e o Bar do Ponto em Belo Horizonte (“solo sagrado”, segundo Pedro Nava), de onde atacavam os passadistas, escrutinavam as senhoras e procuravam os cadáveres nos armários dos santarrões da Tradicional Família Mineira: Drummond, Emílio Moura, Pedro Nava, Milton Campos, Gabriel Passos, Abgar Renault, Gustavo Capanema, João Alphonsus e outros, além dos menos assíduos, como Cyro dos Anjos e Afonso Arinos. De lá saíram as fantásticas memórias de Pedro Nava, a poesia universal de Drummond, a política sensata e honesta de Milton Campos e Afonso Arinos. (Milton Campos, como governador, lamentava não poder falar mal do seu próprio governo — uma arte mineira —, mas permitia que os seus correligionários o fizessem; sem dúvida, um sábio homem. E Cyro dos Anjos, com certeza lembrando-se das farras com os amigos, criou um dos mais famosos inícios de livro da literatura brasileira em “O Amanuense Belmiro”: “Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis”.)
No “Diário de Minas”, órgão oficial do Partido Republicano Mineiro, vigiados de perto pelo Palácio da Liberdade, eles conseguiam publicar o seu modernismo incipiente. Vale dizer: assim como os aristocráticos barões do café financiaram o modernismo paulista, a elite política mineira ajudou os seus jovens estetas revolucionários — talvez seja preciso um Freud para entender isso. Drummond, muitos anos mais tarde, perguntaria em versos a Emílio Moura (“Poeta Emílio”):
(…)
O Diário de Minas, lembras-te, poeta?
Duas páginas de Brilhantina Meu Coração e Elixir Nogueira,
uma página de: Viva o Governo,
outra — doidinha — de modernismo,
tua cegonha figura escrevendo o cabeço dos “Sociais”,
nós todos na esperança de um vale do Bola — o Eduardinho [gerente…
(…)
(Foi também no “Diário” que Drummond, redigindo uma notícia sobre um tiroteio iniciado por políticos do governo, aprenderia uma lição de mineiridade: em vez de publicar “O tiroteio em Montes Claros…”, como escrevera, foi aconselhado a corrigir o texto para “Os acontecimentos de Montes Claros…”.)
Esse pessoal publicou “A Revista”, uma tentativa, talvez a primeira, de levar de modo organizado o modernismo a Minas. A Metal Leve, dirigida pelo nunca suficientemente louvado José Mindlin, publicou, em 1978, uma edição fac-similar dos seus três números. Nela, pode-se ler no editorial-programa do primeiro número: “Não somos românticos; somos jovens”. Bem, não foram todos que ficaram impressionados com essa juventude. Eduardo Frieiro, por exemplo, em artigo no jornal “Avante”, chamou Drummond de “aquele mocinho esgrouviado, que tem cara de infusório”, atacando-o maldosamente: “Mais da metade da revista escorreu-lhe da pena. Espremeu o cérebro. Espremeu mesmo tudo o que em fermentação lhe escaldava o caco, e que não era muito, apenas a borra das últimas, apressadas leituras de revistas francesas. Agora está aliviado. E os leitores também”. Frieiro, famoso por suas farpas, também chamou os modernistas de Belo Horizonte de “caboclos bovarizados”. A briga deve ter sido boa nos bares, cafés e redações, e eu, como tem sido a regra de minha vida, não estava lá — mundo injusto, este.
Em 1924, creio, os jovens mineiros receberam o apoio de Mário e Oswald de Andrade, que foram conhecê-los liderando a famosa “caravana paulista”, visita que se tornou uma espécie de Semana de Arte Moderna de BH. Mário, a partir daí, iniciaria uma troca de cartas com eles, fundamental para a formação de todo o grupo. E dessa visita também nasceu o longo “Noturno de Belo Horizonte”, no qual o poeta, apesar do incentivo, é um tanto irônico sobre a aventura modernista de Minas:
(…)
Que luta pavorosa entre florestas e casas…
Todas as idades humanas
Macaqueadas por arquiteturas históricas
Torres torreões torrinhas e tolices
Brigam em nome da?
Os mineiros secundam em coro:
— Em nome da civilização!
Minas progride.
(…)
Na Fazenda do Barreiro recebem opulentamente.
Os pratos nativos são índices de nacionalidade.
Mas no Grande Hotel de Belo Horizonte servem à francesa.
Et bien! Je vous demande un toutou!
Venha a batata-doce e o torresmo fondant!
(…)
Pedro Nava, autor da mais surpreendente obra em prosa brasileira depois de “Grande Sertão: Veredas”, deixou-nos vários retratos dos seus amigos e da própria cidade nos seis volumes de suas memórias. Por exemplo, em “Beira-mar”, Nava rememora, com sua escrita inventiva, a sua vida em BH:
Eu conheci esse pedaço do belo belo Belorizonte, nele padeci, esperei, amei, tive dores-de-corno augustas, discuti e neguei. Conhecia todo mundo. Cada pedra das calçadas, cada tijolo das sarjetas, seus bueiros, os postes, as árvores. Distinguia seus odores e suas cores de todas as horas. Seu sol, sua chuva, seus calores e seu frio. Ali vivi de meus dezessete aos meu vinte e quatro anos. Vinte anos nos anos Vinte. Sete anos que valeram pelos que tinha vivido antes e que viveria depois. Hoje, aqueles sete anos, eles só, existem na minha lembrança. Mas existem como sete ferretes e doendo sete vezes sete quarenta e nove vezes sete trezentos e quarenta e três ferros pungindo em brasa.
(Outra digressão. Também em “Beira-mar”, Nava, meu companheiro de armas, conta sua desilusão amorosa com certa moça de nome Leopoldina: “Eu vivia um puzzle. Quando pensava tê-lo composto faltava-me o essencial e ela, Leopoldina, se esfarelava em negativas nos mil e noventa e cinco dias que sualma habitou a minha e a envultou”. É isso aí, seu Nava. Mas deixo essa história para outro texto.)
Depois vieram Fernando Sabino, Hélio Pellegrino (“socialista histórico, eventualmente histérico”), Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, que “puxavam angústia” nos bancos da Praça da Liberdade e imitavam Drummond subindo nos altos do viaduto de Santa Tereza. Sabino, em “O Encontro Marcado”, é outro que conta a boemia literária sua e dos amigos:
Frequentavam a missa aos domingos, mas afirmavam, em seus artigos, que não se dobravam ante o clero reacionário (…)
Liam Bernanos, Mauriac, Maritain — não chegavam até Santo Tomás, mas se diziam neotomistas. O que uma vez ou outra despejavam no confessionário na manhã de domingo, tornavam a fazer na noite de segunda-feira. Por exemplo: beber chope no bar até saírem bêbados, praticando desmandos pela rua. Pecado por intemperança.
Pelas ruas de BH, os personagens do romance (ligeiramente à clef) de Sabino recitam versos (a geração seguinte, aliás, também teria o seu romance à clef de formação, “Um Artista Aprendiz”, de Autran Dourado):
Não ligavam: eram superiores. Juntos, faziam suas descobertas literárias. Que literatura proletária! Verlaine, isso sim; Rimbaud e Valéry. Juntos choraram Baudelaire. Neruda, García Lorca, Fernando Pessoa, soltos pelas ruas:
— Sucede que me canso de ser hombre!
— La luz del entendimiento me hace ser muy comedido.
— O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas…
E puxam angústia:
Nada mais a fazer — a cidade dormia e a noite avançava. Cansados, deixaram-se ficar num dos bancos da praça: — Chegou a hora de puxar angústia. Puxar angústia era abordar um tema habitual, como el sentimiento trágico de la vida, la recherche du temps perdu, to be or not to be.
(Lendo esse trecho, só podemos lamentar que a angústia que puxamos nos dias atuais seja curada com psicofármacos e não com livros: livro deveria ser o único elixir paregórico da alma.)
Também da turma de Fernando e Otto, Paulo Mendes Campos (os três e Hélio Pellegrino diziam-se “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”), que puxou angústia durante toda a sua vida, lamentou, num belíssimo poema, a perda da adolescência belo-horizontina (“Fragmentos em Prosa”):
(…)
Vem de longe, dos tempos de ginásio, o meu gosto pelo álcool.
Vem de mais longe talvez, de regiões oprimidas da infância,
De um ancestral incompetente, de uma horda de heranças infelizes,
Uma vontade de falar, de cuspir.
Folha morta, déçà, délà, fui arrastado pelas ruas
Na tranquilidade fresca da madrugada de Minas.
Havia um poder suicida em cada coisa:
O vento era uma coisa forte e me estremecia,
O azul era uma coisa forte e me estremecia,
A mulher era uma coisa forte e me estremecia,
A aurora, a tarde arrastando-se no quintal,
Tudo me estremecia e me empurrava para a vida e para a morte.
Em meus versos havia uma força louca de poesia,
Nos pensamentos meus e alheios radiavam deuses violentos,
Em todos os meus gestos, uma grandeza pensada e magnífica.
Ó confusa adolescência! já não entendo teu clamor,
Tuas vigílias, tuas angústias, as armas de teu combate.
Meu rosto está sereno quando penso em ti
Mas bem no íntimo tenho uma vontade de unhar-me,
De esbofetear-me, de morrer. Morreu contigo
O sol denso da tragédia. Morreu contigo
O pássaro rubro amigo de meu ombro. Morreu contigo
Uma palpitação, um frêmito constante. Morreu contigo
Meu inconformismo cruel, minha dignidade na desgraça. Contigo
A parte de mim mais infeliz e fiel.
Escrevi tudo isso apenas para dizer que meu namoro com a paisagem mineira e minha conversa com os seus escritores vêm de longe. Eu era criança e, antes mesmo de me dar conta de quem seria Drummond, coloquei Pedro Nava no meu panteão de heróis. Via meus pais lendo seus livros e acompanhando as notícias sobre Nava no suplemento “Cultura” do Estadão. Sabia, por causa de comentários entreouvidos e antes de ter a capacidade de lê-lo, de seu fascínio, ou mesmo obsessão, pela morte e pela sexualidade. Lia trechos dos seus livros, colocados como totens nas estantes da velha casa de minha família e, do pouco que entendia, ficava mesmerizado. Dos escritores de Minas, posso dizer que os conheço e amo desde sempre. Hoje sou Promotor de Justiça, lido com crimes e agressões ao meio ambiente, mas há em mim uma pulsão não realizada: cresci querendo ser um escritor mineiro.
Curiosamente, a mineirada acabou cumprindo as profecias feitas por Vinícius de Moraes na sua “Carta Contra os Escritores Mineiros”, de 1944. Nela, Vinícius, por achá-los enclausurados no interior e isolados entre montanhas, conclamava: “Precisais de água, a água do mar”. Por isso, como o mundo vivia mudando sem o seu consentimento e era preciso fugir do isolamento, quase todos foram para o Rio — mas levaram Minas na alma (e onde, no início dos anos 80, Otto, perguntado se voltaria a Minas durante uma campanha informal de repatriamento coletivo, respondeu com outra lição de mineiridade: “Meu filho, eu não mereço”).
Tudo isso que foi vivido por eles está nas cartas de Otto Lara Resende e Fernando Sabino e também no fantástico livrinho de Humberto Werneck, “O Desatino da Rapaziada: Jornalistas e Escritores em Minas Gerais” (Companhia das Letras, 1992). Lendo-os, esses livros trouxeram-me aquela BH boêmia e literária e, sadicamente, comparei-a com a minha Goiânia atual e constatei o que outros já perceberam: gastamo-nos diariamente em atividades sem importância, em conversas fúteis no Facebook e coisas do tipo. Fundamentalmente, somos seres cada vez mais passivos (melhor dizendo, não “somos” na essência da palavra, ou ao menos eu não “sou”: há em mim um amor que não se cumpriu, um filho que não tive com a mulher que amei, uma profissão que se paralisou por tédio e esgotamento, um livro que minha dispersão me impede de escrever). E como ficamos aqui a reclamar e nunca agimos, transformamo-nos todos em ranzinzas e burocratas da vida cotidiana (se chorar épocas passadas é vício de velho, então sou velho e revelho de muitos anos).
As facilidades da vida moderna (e, contraditoriamente, também as suas agruras) parecem ter tornado a pacata vida burguesa uma paisagem permanente. Se não há mais jovens como os escritores mineiros, não haverá quem queira, como eles — é Nava quem conta —, “a deposição do presidente do Estado, o encarceramento dos seus secretários, um esbordoamento de deputados e uma matança de delegados”. Já a arte contemporânea, em tudo oposição ao que faziam os mineiros, é esse grande pós-nada e, ainda assim, é best seller nas livrarias, lota cinemas e é vendida a preços estratosféricos nas galerias. Nosso tempo é o de vanglória por conta de textos de 280 caracteres.
É com nostalgia, portanto, que leio as cartas dos mineiros. Mas sei que, como o Totônio Rodrigues e a Tomásia do poema de Manuel Bandeira, estão todos mortos: Drummond, Nava, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, todos eles. Com as cartas de Otto Lara Resende, penso naquele Brasil que dava importância a pessoas como eles, naquela época em que a literatura — uma religião, um compromisso para toda a vida, um ritual que se cumpria — era o sinal distintivo da erudição, em que as pessoas cultas tinham os livros e não só o cinema como referência cultural, e lamento o seu desaparecimento (nada contra o cinema, apenas não entendo que ele possa ser a única base cultural de alguém). Esse Brasil, nós o perdemos: ele está dormindo profundamente.
Sim, Drummond: Minas não há mais. E nenhum Brasil existe.