Nina Simone guarda meus segredos mais delicados. Medos inomináveis. De coisa alguma. Implícitos em um passado embaçado. Opressões íntimas e sociais. E outras sensações que vagam perdidas em uma existência feminina. Sou afortunada, pois nenhuma tragédia pessoal me acompanha. Mesmo assim, sinto em mim o peso das gerações de um feminino maculado. Uma longa tradição de despertencimento, registrada na História através da restrição de direitos civis, violências físicas e psicológicas provocadoras de uma vida opaca, estereotipada por um emaranhado cultural tão enfermo que é capaz de incutir culpa até nas vítimas de violência sexual. Pasmem! Ainda hoje o que se nota muitas vezes, nos milhares de casos de abusos que acontecem todos os dias no país, é um processo cruel de inversão de responsabilidades nas abordagens policiais, judiciais, midiáticas e familiares. Um cenário que, mais que denunciar o horror da situação, revela que ainda vivemos em um mundo onde muitas de nós não têm direito a nada.
Acredito ser por isso que sinto um agito visceral quando escuto a cantora em “Ain’t got no / I got life”. A versão dela ao piano, rodeada de homens admirados com a arte de uma negra americana em plenos anos 1960, é incrível. Ela foi filmada de perfil, dedilhando seu questionamento existencial por meio de sua música inovadora. Quando ela canta, me arrebata: “Eu não tenho comida, educação, água, ar, amor, fé, família, Deus. E o que eu tenho, então? Eu não tenho nada. Por que estou viva?” Sugerir que uma mulher abusada é corresponsável por aquilo saca dela a última única coisa que lhe resta: o direito de ser vítima. E não sobra nada. Mesmo assim, é obrigada a seguir alegre e acenando como uma miss em desfile. É que o algoz, protegido pelo hábito machista de atribuir à suposta ‘sedução de toda mulher’ o poder de incitar um abuso, mantém a mulher no papel de objeto sem valor. Não à toa, muitas se calam na vergonha quando são acusadas, nas entrelinhas, de facilitarem o ato. Outras tantas omitem sua dor para manter a imagem da família, já que na maioria das vezes os agressores são seus parentes. Uma parcela significativa nem alcança o entendimento de que foi violada. Olha, parece mentira, mas já li em boletim de ocorrência a descrição detalhada do vestido de uma denunciante de tentativa de estupro. Nessa toada, a versão mentirosa e injusta da provocação como mote do abuso sexual segue sendo perpetuada.
Ora, estupro não tem a ver com vestimenta nem comportamento. E já caiu por terra a hipótese da falta de controle físico do homem no sexo. O estupro fala é de como o homem lida com o poder em relação à mulher. Poupem-me do discurso do short curto ou da rua escura como agentes de abusos. Sejamos coerentes. O início de uma paquera não garante beijo ou sexo no fim da noite. Sentar-se a uma mesa para jantar ou ir ao cinema sozinha não sinalizam uma fêmea desesperada para acasalar. E nem mesmo o comportamento mais vulgar de uma pessoa permite o toque não autorizado. É revoltante, ultrajante e nauseante ver a dinâmica do cotidiano dos fatos. Desculpem a minha falta de moderação com os termos, mas o uso do pau duro à revelia do desejo do outro é um crime que não pode ser jogado no colo da mulher. No entanto, essa mentira é silenciosamente mantida na sociedade hipócrita em que vivemos. Aos que colaboram com essa farsa ou se omitem, um recado: resguardar toda essa classe de violentos e futuros assassinos os torna tão delinquente quanto os agentes dos abusos sexuais.
Nem todo mundo pensa assim. Pesquisa divulgada no último Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que 42% dos homens entrevistados acreditam que o estupro acontece porque a mulher não se dá ao respeito e/ou usa roupas provocativas, e 32% das mulheres têm a mesma opinião. Ainda segundo o estudo, apenas 36% da população concorda que policiais militares estão bem preparados para atender mulheres vítimas de violência sexual. Samira Bueno, uma das autoras da pesquisa, comenta que essa percepção da sociedade em relação à mulher não chega a ser surpreendente: “Temos um longo processo de modificação da cultura e da luta por igualdade de gêneros pela frente. Precisamos ver esses dados com a gravidade que eles têm”.
Pensemos acerca dos dados acima. Praticamente uma em cada três brasileiras entende que “não se dar ao respeito” justifica o ato criminoso. O que isso representa? A culpabilização da vítima, a desvalorização do indivíduo que sofre um crime responsabilizando-o pelo acontecido, como define o psicólogo William Ryan em seu livro “Blaming the Victim”, é aleijar o feminino, ao jogar em cima da mulher o peso do erro do outro. É uma ação potente a ponto de cegar obviedades como as relativas às violências. No entanto, o tema não se relaciona exclusivamente a gênero. Partir do princípio de que somos responsáveis pelo que de ruim nos ocorre — ser pobre, por exemplo — serve para justificar a fantasia, irreal e nada saudável, de que o mundo é perfeito. A hipótese, desenvolvida durante os anos 1980 pelo pesquisador americano Melvin Lerner, consiste em justificar equívocos e crimes ao fomentar tal ilusão: “É a noção de que sempre existe uma ligação entre o que as pessoas fazem e os resultados que obtêm, aceitando assim que as pessoas têm o que merecem e merecem o que têm”. Tal discurso, muito comum nos EUA, é também a base da meritocracia como disfarce para a manutenção das desigualdades sociais, políticas e econômicas.
Na terra das palmeiras onde cantam os sabiás é ainda mais difícil encontrar solução. Vivemos no país que se apropria do humor para tratar os mais sérios problemas. Piadas de corredor, memes contra o feminismo e comentários sacanas de conhecidos das abusadas escondem, na verdade, toda essa objetificação — consciente e inconsciente — da mulher, o que pode provocar violentos crimes. É um cenário que vitimiza também a identidade de grupo, com danos gravíssimos. Não podemos esquecer que são as mães as primeiras tradutoras do mundo, para meninos e meninas. E o que vão compreender tais crianças, criadas por abusadas que sobrevivem aos pedaços? Não sei. Nutro pouca esperança nesse atormentador assunto. Tenho medo por mim, por amigas, tias, primas, avós, desconhecidas e, especialmente, por uma filha de um ano, que ousa se amar no espelho. O que me acalenta ainda está na voz de Nina Simone, que com seu blues, nos leva a sonhar ao responder à própria questão “por que estou viva, se não mereço nada no grupo onde vivo?” com o verso “Porque tenho minha liberdade, tenho a mim mesma. E isso ninguém pode me tomar”. Arrepiante. Nina tem razão. Isso não se toma. Porém é possível extirpar parte dessa essência.