Os livros foram publicados em Buenos Aires, Montevidéu e Portugal. Nós ficamos para trás
Falta um intercâmbio cultural entre o Brasil e Portugal, países que, unidos pela história e pela língua comum, são irmãos. Livros publicados no país de Fernando Pessoa não são comercializados no Brasil e vice-versa. Aqui e ali, em algumas livrarias, é possível encontrar livros editados na terra de Camões. Pouquíssimos. A Livraria Cultura, antes da recuperação judicial, importava obras para seus clientes, a preços não muito convidativos. Em Buenos Aires e Montevidéu, pelo contrário, é fácil encontrar livros editados em Madri e, sobretudo, Barcelona. A Eterna Cadencia e El Ateneo, portenhas, e a Más Puro Verso, da capital uruguaia, comercializam livremente publicações espanholas. Azar dos brasileiros, sorte dos argentinos e uruguaios. A lista que elaborei inclui biografias que saíram em Portugal e, especialmente, na Argentina e no Uruguai. Comprei-as em casas de livros novos e em sebos. Os melhores alfarrábios de Buenos Aires ficam na Avenida Corrientes. Em Montevidéu os livros usados são encontrados na feira de Tristán Narvaja, na qual se vende quase tudo, e em sebos muito bons (com preços superiores aos praticados pelos sebos da terra de Jorge Luis Borges).
Nada se compara à variedade das biografias em inglês, que não serão listadas. O escritor americano William Faulkner é muito lido no Brasil, mas não há nenhuma biografia abrangente em Português. Em inglês, há algumas e listo três: “Faulkner — A Biography” (há uma versão em espanhol), de Joseph Blotner, “William Faulkner — American Writer”, de Frederick R. Karl, e “A Life of William Faulkner”, de Jay Parini. A Companhia das Letras está reeditando a obra do escritor americano James Baldwin, com traduções qualificadas. Em seguida, poderia lançar “James Baldwin — A Biography”, de David Leeming. Vale a pena publicar “Hart Crane — A Life”, de Clive Fisher. Como os russos não saem de moda, o que é muito bom, a leitura de “Pushkin — A Biography”, de Elaine Feinstein, é sempre agradável. Púchkin (a grafia usual no Brasil) é praticamente o inventor da literatura russa moderna.
Há um livro que merece edição brasileira, com a vantagem que não precisa ser traduzido: “Florbela Espanca” (Guimarães Editores, 221 páginas), de Agustina Bessa-Luís. Trata-se de uma biografia de poeta escrita por prosadora notável (também biógrafa do Marquês de Pombal).
O argentino Adolfo Bioy Casares, autor de “A Invenção de Morel” (Biblioteca Azul, 112 páginas, tradução de Sergio Molina), tem sido bem editado no Brasil. Trata-se de um escritor que não deve ser visto tão-somente como um companheiro de jornada de Jorge Luis Borges. Chegaram a escrever juntos, mas suas prosas não são idênticas. Para conhecer a vida e a obra do escritor vale a leitura da biografia — ou “Bioygrafía” — escrita por Silvia Renée Arias. A pesquisa mostra uma identidade sólida e demarcada. O livro começa com uma citação na qual Bioy Casares afirma que os indivíduos conhecem quase nada dos outros indivíduos, mesmo quando próximos. Há várias máscaras e não é possível arrancar todas para descobrir a, digamos, verdade. Sublinhava que “não é possível falar bem de todo mundo”. “Os bons momentos de uma vida deveriam escrever-se sempre no presente. Recordar a felicidade dá um pouco de felicidade”, disse à pesquisadora. Ele era distraído e contou que perdia as coisas em sua casa e até nos bolsos. A vida prática, que o afastava da escritura, o incomodava. Na velhice, ao saber que a jornalista pagou o almoço, lágrimas escorreram por seu rosto. Ele, que havia sido casado com a rica Silvina Ocampo, estava empobrecido. Sobre a eternidade do escritor, era contraditório. Disse que “sobreviver espiritualmente na obra” era um “absurdo”. “Mentira. Não sou tão vaidoso para me deixar enganar.” Mas antes havia sugerindo que o livro — certamente o grande livro — garante a “posteridade” do autor. Nas “Memórias”, registra a biógrafa, frisou que “os escritores têm o dever, com os escritores do futuro e com as pessoas, de contar-lhes porque e como viveu, e porque escolheu a profissão à qual sempre considerou a mais maravilhosa de todas”. (Tusquets, 338 páginas).
Philip Roth, ao parar de escrever, convocou Blake Bailey e lhe deu carta branca para escrever sua biografia. O motivo é que o professor da Universidade de Virginia escreveu uma biografia exemplar de John Cheever (1912-1982). John Updike é visto como o retratista-mor da classe média americana. Na verdade, é um deles (outro é Richard Ford). Os contos e romances de Cheever são interpretações modelares (e lancinantes) das classes médias — o plural talvez seja possível — dos Estados Unidos. Sobretudo, representam alta literatura, um rico mundo paralelo que ilumina o mundo no qual nós, de carne e ossos, vivemos. Updike disse a respeito da pesquisa: “A cronologia minuciosa de Blake Bailey revela a luta diária de um homem atormentado consigo mesmo”. É mais do que isto: a biografia escrita por Bailey capta o escritor e o indivíduo em sua integralidade — contando tudo ou quase. Quando se abre o jogo a respeito de uma pessoa, escritor ou não, o fato é que se tem, além de um outro ser, um indivíduo nuançado, mais gente e menos santo. As contradições enriquecem mais do que empobrecem um homem. Ao receber a Medalha Nacional de Literatura, no Carnegie Hall, em 1982, Cheever, que estava se tratando de câncer, disse que “uma página de boa prosa sempre será invencível”. No diário, escreveu que a literatura era “a salvação dos condenados”. Casado com Mary, alcoólatra durante anos, Cheever tinha receio de ser caracterizado como um “impostor sexual”. Sugerindo que “a vida é uma improvisação”, sem formas fixas de comportamento, manteve relacionamento homossexual com o jovem Max. A revelação muda alguma coisa em sua prosa perceptiva? Talvez, mas não para pior, e sim para melhor, quiçá por indicar uma compreensão mais abrangente das ambivalências humanas. (Duomo Ediciones, 885 páginas, tradução de Ramón de España).
O pesquisador argentino Carlos María Domínguez investigou a vida (e a obra) do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994) com extrema atenção, percebendo que, aqui e ali, o autor de “Junta-Cadávares” e “A Vida Breve” plantou pistas ficcionais como se fossem a realidade. Limpado o palimpsesto, construiu uma biografia de qualidade. A mãe do autor, Honoria Borges, “havia sido criada numa fazenda do Rio Grande do Sul”. Embora libertos, os negros trabalhavam para a família praticamente como se fossem escravos. O pai de Honoria era rico, mas perdeu quase tudo ao participar de uma fracassada revolução gaúcha. Ela era leitora de Alexandre Dumas. Onetti começou a ler cedo. Abria a porta de um guarda-roupa, levava seu gato Miyunga e lia durante horas. Adorava contar histórias para os irmãos Raúl e Raquel. Na escola, não brilhava, pois preferia matar aulas para ler no Museu Pedagógico, sobretudo obras de Júlio Verne. Torcia para o Nacional. Um homem, “que passava a maior parte do tempo lendo deitado numa cama” — as aventuras de “Fantomas” —, passou a emprestar livros para o jovem. Um por vez. Quando a obra do escritor norueguês Knut Hamsun, prêmio Nobel de Literatura, caiu em suas mãos, ficou siderado. O irmão passou a chamá-lo de “Kanutito”. Animado, enviou contos e poemas para a “Mundo Uruguayo”. A revista rejeitou-os por acreditar que um menino não tinha condições de escrevê-los. (Lumen, 345 páginas).
O subtítulo é: “Una Historia Real”. O livro conta a história do relacionamento homossexual entre Federico García Lorca e o uruguaio Enrique Amorim. O poeta espanhol foi uma das primeiras grandes celebridades do século 20. Em 1933, quando o bardo chegou à Argentina, o país sul-americano tinha a sétima maior economia do mundo. Buenos Aires era mais importante do que Madri, em termos culturais. O russo Nijinsky dançava nos seus palcos. “Wagner filho dirigia orquestras” na cidade. A encenação de “Bodas de Sangue” (na qual brilhou Lola Membrives) lotou o teatro Avenida — com a presença do presidente da República — e o poeta e dramaturgo ganhou muito dinheiro. A imprensa o anunciava como uma estrela internacional. Santiago Roncagliolo sublinha que García Lorca foi o primeiro fenômeno midiático da Espanha. Ao ser tratado como “fenômeno cultural do ano”, o filho da terra de Cervantes ficou encantado. Ia ficar um mês e meio e acabou ficando quase seis meses na cidade de Jorge Luis Borges. Esteve nas festas de Oliverio Girondo e Norah Lange, conheceu Carlos Gardel, conversou com Alfonsina Storni. Borges não se entusiasmou com o prodígio da Andaluzia. “Segundo Borges, durante sua única conversa, Federico dissertou longamente sobre um personagem que, em sua opinião, encarnava toda a tragédia dos Estados Unidos. Borges perguntou de quem estava falando exatamente. De Lincoln quiçá? Ou de Edgar Allan Poe? Mas Federico respondeu: ‘De Michey Mouse’. Borges desistiu da conversa, e, a partir desse momento, passou a considerar Federico como um ‘farsante’”. Cansado de tanto assédio, Lorca decidiu ir a Montevidéu, onde conheceu Enrique Amorim, um homem culto e elegante. Os dois não se separaram. Amorim chegou a fazer fotografias do amante. O biógrafo revela que um avô do uruguaio era português e havia morado no Brasil, onde tinha uma empresa. (Alcalá Grupo Editorial, 362 páginas).
Quem nunca leu “O Leopardo” (a tradução mais recente é de Maurício Santana Dias), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), não merece, é claro, ser surrado em praça pública. Mas talvez não saiba que está perdendo ouro equivalente àquele dos anéis de Adriana Ancelmo, a Riqueza, mulher de Sérgio Cabral Filho, o ex-Rei do Crime do Rio de Janeiro. Pena que Shakespeare tenha morrido antes, senão teria citado a celebrada frase do romance — “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude” — em alguma de suas peças. O livro escrito pelo oxfordiano David Gilmour exibe a conexão entre realidade e imaginação literária na ficção do autor siciliano — indicando a autonomia da arte em relação à história. Está na moda acusar rivais ideológicos de “fascistas”, a palavra-valise que explica tudo, portanto nada. Os defensores de Lampedusa o apresentam como antifascista. Gilmour relativiza: “Nunca se opôs realmente a Mussolini, sobretudo no princípio. De fato, foi menos antifascista do que vários de seus parentes. A precoce admiração de Giuseppe Palma [depois, Lampedusa] pelo fascismo, como a de muitos suboficiais, provinha do medo da revolução e do ressentimento contra os fracassos dos liberais. Reconhecia que os fascistas não eram inocentes, mas, ‘com todos seus excessos e seus defeitos’, ao menos queriam melhorar o país, enquanto que os liberais se deixaram levar por uma inércia viciada e autocomplacente. Ademais, acreditava que o fascismo podia ‘domesticar o bolchevismo’. (…) Grande parte de sua atitude parecia dever-se a um ‘amargo ressentimento’ contra as classes médias liberais”. O poeta Lucio Piccolo e o engenheiro Guido Lajolo foram grandes amigos do prosador. Lajolo mudou-se para o Brasil, em 1930, mas não deixou de escrever cartas para Lampedusa (o marido da crítica literária Marisa Lajolo, o Lajolo é dele, talvez seja seu parente. (Siruela, 242 páginas, tradução de Javier Lacruz).
William Faulkner registrou um mundo maldito — filho da escravidão, que gestou excrescências — a partir do Sul profundo dos Estados Unidos. Mary Flannery O’Connor, que viveu apenas 39 anos, entre 1925 e 1964, às vezes é vista, na sua rudeza com suas personagens homens e mulheres, como uma Faulkner de vestido. Sua obra não é gigante, mas escreveu uma prosa “fechada” — grande, apesar de curta. Por sinal, bem traduzida no Brasil por Leonardo Fróes e José Roberto O’Shea. A biografia escrita por Brad Gooch vasculha tanto a vida quanto a obra, revelando uma personagem, por assim dizer, que poderia figurar num romance. Apesar da vida simples, havia uma vida interior rica — daí sua literatura complexa. O autor desmente a autora, que escreveu: “Quanto às biografias, não haverá nenhuma sobre mim pela razão de que as vidas que transcorrem entre a casa e o galinheiro não resultam apaixonantes”. De fato, criava galinhas, e adorava animais exóticos, mas obviamente não era, ao contrário do que assinala, uma mera granjeira. Confidenciou a uma amiga que “tinha algo ‘de atriz’”. “Tenho um desejo oculto de rivalizar com Charles Dickens em cena”. Numa conferência, assinalou: “O que vemos, ouvimos e tocamos influi muito antes de criarmos algo. O Sul queda impresso no escritor sulista desde o momento em que é capaz de distinguir um som de outro. O assimila por intermédio do ouvido e, ao escutar de novo com sua própria voz, e antes de ser capaz de utilizar sua imaginação para a ficção, descobre que seus sentidos respondem de forma irrevogável a certa realidade e, em particular, ao som de certa realidade. O maior vínculo do escritor sulista com o Sul se estabelece através do ouvido”. (Circe, 485 páginas, tradução de Aurora Echevarría).
O ex-editor-chefe da revista “Time” Stefan Kanfer vasculhou a vida do mais instigante Marx da história — não o Karl, o brilhante alemão, e sim o Groucho Marx, que nasceu Julius Henry Marx (1890-1977). Comediante e ator (os Irmãos Marx fizeram vários filmes), deixou frases impagáveis, como “Se acredito na vida após a morte? Não sei nem se acredito na vida antes da morte. Acho que acredito na morte durante a vida”. Rechaçando “a oferta de um grupo de Hollywood”, disse: “Não quero me unir a nenhuma organização que me aceite como membro”. Dada sua inteligência rápida e corrosiva, era admirado por, entre tantos outros, H. L. Mencken (que o citou em livro), Winston Churchill, George Gershwin e T. S. Eliot. Quando Adolf Hitler mandou bombardear Londres, com mais de mil aviões, Churchill, para relaxar — “não havia nada que eu pudesse fazer”, escreveu o primeiro-ministro britânico —, decidiu ver o filme “Gênios da Pelota”, estrelado pelos Irmãos Marx. O político se divertiu com o humor dos americanos. No filme “Diabo a Quatro”, Groucho “interpreta um ditador de um país mítico, Libertonia, e sua extravagante sátira incomodou de tal maneira Benito Mussolini que o líder fascista o proibiu na Itália”. O poeta T. S. Eliot, de “A Terra Devastada”, escreveu uma carta de admirador pedindo uma fotografia autografada de Groucho. O comediante enviou-a, mas o bardo americano pediu outra em que aparecia de bigode e fumando charuto. Exibiu uma em sua casa e a outra no escritório. Apesar de parecer improvável, eles se tornaram amigos e chegaram a se encontrar. O humorista leu “A Terra Devastada” três vezes. Quando se reuniram para cear, o ator confidenciou que a filha Melinda “estava estudando sua poesia no colégio de Beverly High”. Eliot “replicou que lamentava porque não tinha o menor desejo de converter-se em leitura obrigatória”. Ao visitar o escritor W. C. Fields, Groucho percebeu que na casa havia um estoque de uísque no valor de 50 mil dólares. Perplexo, inquiriu: “Bill, para que todo esse álcool na sua casa? Faz 25 anos que terminou a proibição”. O escritor redarguiu: “Pode voltar”. O livro não conta só histórias divertidas, como as arroladas. A vida de Groucho, assim como as de seus irmãos, não foi só bolinho, não. (RBA Livros, 702 páginas, tradução de María de Calonje).
É provável que John Ford é o James Joyce do cinema. Seus filmes são tão importantes que um dos principais críticos literários do país, Davi Arrigucci Júnior, escreveu um ensaio magistral sobre “O Homem Que Matou o Facínora”, estrelado por John Wayne e Lee Marvin. A biografia escrita por Tag Gallagher é uma bíblia sobre o diretor que influenciou gerações de cineastas, e não só dos que fazem westerns. “Seus filmes narram histórias apaixonantes, têm personagens memoráveis, convidam à reflexão, avivam os encantos da vida sensível e a personalidade de Ford transluzia neles. Sua inteligência compositiva tornava os diálogos praticamente desnecessários, não porque os roteiros carecessem de riqueza, e sim porque a estrutura literária era só um aspecto da complexa beleza e da inteligência de seu cinema.” Leitor voraz, sobretudo de história, era erudito, mas fingia que era inculto. Seu nome era John Augustine Feeney, depois adotou o nome de Sean Aloysius O’Feeney, talvez para parecer ainda mais irlandês, como o pai, Sean. O irmão de John, o ator Frank T. Feeney, mudou seu nome para Francis Ford, “inspirado pela marca de automóveis”. O motivo? “Evitar a desonra da família”, afinal cinema não era uma coisa tão respeitável e glamorosa, ao menos nos primórdios. Jack Feeney, como John se apresentava no mundo do cinema, logo se tornou John Ford. Gallagher mostra o diretor como extremamente meticuloso, praticamente um “autor”, como querem os franceses. Ficamos sabendo, pela descrição detalhada de seus métodos de trabalho, porque seus filmes permanecem com aquela aura de “perfeição”. O biógrafo revela que o criador americano deu dinheiro ao IRA. Certa feita, com suas brutais exigências, fez os atores Victor McLaglen e John Wayne, homens durões, chorar. John Ford “só se sentia satisfeito quando rodava um filme”. (Ediciones Akal, 767 páginas, tradução de Francisco López Martín, com a colaboração de Juan Gorostidi Munguía).
O subtítulo é: “El Hombre, el Reportero e Su Época”. Sabe dessas biografias que parecem conter tudo de ruim, de bom e de mais ou menos a respeito de um ser humano? A biografia de Ryszard Kapuściński é deste naipe. Desmitifica o brilhante repórter, notando seus exageros, o abuso de uma imaginação pós-factual, mas não o deixa menor. Ao contrário, contraditório — nem Deus nem Lúcifer, tão-somente um jornalista (escritor) talentoso e complexo —, se torna um personagem ainda mais mítico. Curiosamente, quando li alguns comentários a respeito do livro publicados na imprensa tropiniquim, não percebi nenhuma referência ao Brasil. Isto sugere que, por vezes, publicações patropis, inclusive as sérias, trocam a reportagem pela recortagem? “Times”, “Washington Post”, “New Yorker” e “Guardian” vão citar d. Helder Câmara por qual motivo? Mas um resenhista brasileiro, se tiver lido o livro e não apenas resenhas publicadas na imprensa europeia e americana, certamente vai querer saber o que o profissional polonês disse sobre o bispo de Olinda, apontado como seu “herói” patropi, e a quem chama de “o Gandhi brasileiro”. Numa reportagem, ele escreve: “No Brasil se reativou o Comando de Caça aos Comunistas, organização terrorista de corte fascista que constitui uma versão local da Ku Klux Klan” (o que parece impreciso). Menciona que um colaborador do arcebispo Hélder Câmara havia sido “assassinado por um grupo do CCC”. Numa carta ao seu melhor amigo, assinala: “Detesto o Chile com a mesma intensidade com que amo o Brasil”. Ele diz que “os brasileiros são fantásticos”. A Teologia da Libertação o entusiasma — assim como as ideias de Che Guevara (chegou a traduzir seus diários para o polonês). Mas não se entusiasma com a Língua Portuguesa, que acha “feia, horrorosa”. Aprende alguma coisa, mas admite que, quando fala, sai de sua boca mais espanhol do que Português. Menciona que guerrilheiros sequestraram um embaixador e cita trecho da música “Meu caro amigo”, de Chico Buarque, que estava na moda: “Uns dias chove, noutros dias bate o sol”. Obviamente, o Brasil não era a nação mais discutida por Kapuściński. Ele andou por vários países, na África e na Ásia, e escreveu muito bem sobre eles. Há problemas, apontados pelo exigente biógrafo, mas nada que derrube a reputação do notável repórter. Pode-se dizer que nenhum jornalista exagera ou não usa, aqui e ali, a imaginação para colorir um fato? (Galaxia Gutenberg, 630 páginas, tradução de Francisco Javier Villaverde González e Agata Orzeszek).
A melhor biografia de um poeta é sua poesia? Talvez seja, sobretudo quando se trata de Konstantinos Kaváfis, o bardo de Alexandria. Se é assim, o leitor brasileiro está bem servido. Aos menos três tradutores gabaritados decidiram transpor sua poesia para o Português: “Poemas” (Nova Fronteira, 189 páginas, tradução de José Paulo Paes), “Poemas” (Odysseus, tradução de Ísis Borges da Fonseca, 406 páginas) e “60 Poemas” (Ateliê Editorial, 157 páginas, tradução de Trajano Vieira). As edições são bem cuidadas, com apresentações criteriosas. É possível que existam biografias recentes do bardo grego, mas a de Robert Liddell, de 1974, apesar das ressalvas apresentadas por Peter Mackridge, na introdução, tem qualidades. “Kaváfis é o único poeta grego moderno cuja obra, de tão conhecida, se tornou praticamente parte da literatura inglesa. A frase ‘esperando os bárbaros’ é empregada amiúde como título por autores de livros e artigos em inglês. Nada mais apropriado, portanto, que a primeira — e até o momento única — verdadeira biografia de Kaváfis tenha sido escrita por um inglês”, anota Mackridge. Liddell, que morreu em 1992, chegou a Alexandria, cidade natal de Kaváfis, dois anos depois da morte do poeta, em 1933. “Familiarizado com a topografia e a atmosfera de Alexandria — pôde conversar com gente que havia conhecido o poeta” —, e com acesso aos seus arquivos, que estavam nas mãos do professor Yorgos Savidis, Liddell teve condições de compor um perfil mais preciso do poeta e de seu tempo. “Os documentos relativos à vida de Kaváfis são escassos.” Quase não escrevia no diário e “poucas de suas cartas sobreviveram”. E “sua vida decorreu sem acontecimentos destacáveis”. Liddell cita Edmund Keeley e Philip Sherrard que escreveram que a língua de Kaváfis, “inclusive seus arcaísmos, deliberados, seu grego, nos pontos cruciais, está mais próxima da língua falada do que da forma de expressão dos outros grandes poetas gregos de seu tempo”. Citando Haroldo de Campo, Trajano Vieira assinala que o “coloquialismo” de Kaváfis “faz lembrar a dicção de Carlos Drummond de Andrade”. (Paidós, 277 páginas, tradução de Carles Miralles) Leia o poema “À espera dos bárbaros”, na tradução de Haroldo de Campos: “— Que esperamos reunidos na ágora?//É que hoje os bárbaros chegam.//— Por que tanta abulia no Senado?/Por que assentam os Senadores? Por que não ditam normas?//Porque os bárbaros chegam hoje./Que normas vão editar os Senadores?/Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.//— Por que o Autocrátor levantou-se tão cedo/e está sentado frente à Porta Nobre da cidade/posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?//Porque os bárbaros chegam hoje. E o Autocrátor espera receber/o seu chefe. Mais do que isto, predispôs/para ele o dom de um pergaminho. Ali/fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.//— Por que nossos dois cônsules e os pretores saíram/esta manhã com togas rubras, com finos bordados de agulha?/Por que essas braçadeiras que portam, pesadas de ametistas,/e os anéis dactílicos lampejando reflexos de esmeralda?/Por que ostentam hoje os cetros preciosos,/esplêndido lavor de cinzel, amálgama de ouro e prata?//Porque os bárbaros chegam hoje,/e toda essa parafernália deslumbra os bárbaros.//— Por que nossos bravos tributos não acodem/como sempre, a blasonar seu verbo, a perorar seus temas?//Porque os bárbaros chegam hoje,/e eles desprezam a oratória e a logorreia.//— Por que de repente essa angústia,/esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)/Por que rápidas se esvaziam ruas e praças/e os antes reunidos retornam atônitos às casas?//Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram./E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça/murmuram que não há mais bárbaros.//E nós, como vimos passar sem os bárbaros?/Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.” José Paulo Paes e Ísis Borges da Fonseca preferem, em vez de Autocrátor, a palavra imperador, com inicial minúscula.
Depois de Richard Ellmann, o escritor irlandês James Joyce jamais será o mesmo. Os biógrafos posteriores obrigatoriamente têm de agradecer, ajoelhados, o americano que quase todo mundo pensa que é britânico. “James Joyce” (Globo, 997 páginas, tradução de Lya Luft; em 1990, na “Folha de S. Paulo”, o crítico Paulo César Souza apontou falhas na versão e lamentou, com razão, a ausência de um índice de nomes) é um livro extraordinário. Explica Joyce e obra, que são corpo e alma de um mesmo ser, de maneira competente. Fica-se com a impressão de que o autor sabia mais do autor de “Ulysses” do que qualquer outra pessoa — inclusive Joyce. “Mi Hermano James Joyce”, de Stanislaus Joyce, é desses livros fundamentais. É testemunho e, acima de tudo, é um documento a respeito do homem que criou “Finnegans Wake”, que alguns consideram impenetrável (há uma tradução integral no Brasil, de Donaldo Schüller, e uma a caminho, de Caetano Galindo; há versões de trechos, por Augusto e Haroldo de Campos, e de Dirce Amarante Waltrick). T. S. Eliot, o bardo, escreveu: “Este livro único merece ocupar um lugar permanente ao lado das obras de James Joyce”. Me parece um exagero, mas um exagero de Eliot é sempre respeitável. Richard Ellmann corrobora: “O que dá a estas páginas uma força especial é essa complexa mescla de frustração, afeto, ressentimento e dor que Stanislaus experimentou nos anos em que esteve mais próximo de seu irmão”. O prefácio é de Eliot e a introdução, de Richard Ellmann. (Adriana Hidalgo Editora, 304 páginas, tradução de Berta Sofovich).
A obra do jornalista e escritor britânico George Orwell (cujo nome não voltará a ser Eric Arthur Blair) ganhou edições e traduções bem cuidadas no Brasil — trabalho irretocável da Companhia das Letras. Mas não há nenhuma biografia em português ampla sobre o autor dos icônicos “1984” (tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner) e “A Revolução dos Bichos” (tradução de Heitor Aquino Ferreira). Na Argentina, é possível encontrar, ao menos em sebos, duas biografias de qualidade, a de Jeffrey Meyers e a de Michael Shelden, “Orwell — Biografia Autorizada” (Emecé Editores, 516 páginas, tradução de César Aira). Em Portugal circula “George Orwell — Uma Biografia Política” (Antígona, 284 páginas, tradução de Fernando Gonçalves). Meyers examina cuidadosamente a obra e a vida do polêmico escritor, que, crítico radical dos totalitarismos nazista e stalinista, morreu acreditando no socialismo, digamos, democrático — como se socialismo e democracia não fossem contradições inconciliáveis. O biógrafo inclui uma informação ausente das outras biografias: o primeiro livro de Orwell (1903-1950) foi publicado graças, em larga medida, aos esforços de uma brasileira, Mabel Robinson Fierz (nascida em 1890), filha de pais ingleses. Ela nasceu no Rio Grande do Sul e foi para a Inglaterra com 17 anos, em 1908, e lá se casou com um engenheiro. Era pacifista e defensora dos direitos dos animais. Mabel e Orwell foram amantes e, sobretudo, amigos. (Ediciones B, 443 páginas, tradução de Maria Dulcinea Otero).
O escritor italiano Primo Levi sobreviveu a Auschwitz. Químico competente, foi preservado. Mas sua resistência interior, a vontade danada de ficar vivo, deve ter sido decisiva. O livro “É Isto um Homem?” (Rocco, 256 páginas, tradução de Luigi Del Re) conta a sua e a vida de outros homens no campo de extermínio localizado na Polônia. O escritor era depressivo. Aos 67 anos, em abril de 1987, suicidou-se. Jogou-se da escada do edifício onde residia, em Turim. Elena Giordanino, enfermeira que cuidava de sua mãe, Ester, revelou que estava “muito alterado. Às vezes o via sentado com a cabeça entre as mãos, pensando”. Sua mulher, Lucia, admitiu que estava profundamente deprimido, sobretudo depois de uma operação de próstata. A família chegava a vigiá-lo. O britânico Ian Thomson descobriu que o autor de “A Trégua” (Companhia das Letras, 360 páginas, tradução de Marco Lucchesi) escreveu fartamente sobre si, encobrindo determinados detalhes — o que não significa que queria falsificar sua história. Contar é imaginar e imaginar não é necessariamente colorir ou distorcer, é, sobretudo, uma maneira de tornar uma história tanto mais crível quanto inteligível. A pesquisa revela que, mesmo antes de ser “internado” no campo da morte, na década de 1940, Primo Levi já era depressivo. Mas é certo que Auschwitz permaneceu entranhado no indivíduo. Thomson examina, vigorosa e amorosamente, a obra e a vida de um homem e escritor extraordinário. (Belacqva, 743 páginas, tradução de Julio Paredes).
O Brasil descobriu Winston Churchill, depois de se apaixonar — em termos de leitura, pano rápido — por ditadores, como Stálin, Lênin, Mao Tsé-tung e Fidel Castro. Se o leitor nada leu sobre o primeiro-ministro britânico que levantou seu país, a Inglaterra — quando várias nações, como a Polônia e a França, já estavam “deitadas”, conquistadas pelo nazista Adolf Hitler —, talvez seja o caso de começar por uma, digamos, “hagiografia” do balacobaco, “O Fator Churchill — Como um Homem Fez História” (Planeta do Brasil, 464 páginas, tradução de Renato Marques), de Boris Johnson. Agora, se o leitor pensa numa biografia mais densa e equilibrada, deve correr atrás do cartapácio “Churchill” (Nova Fronteira, 900 páginas, tradução de Heitor Aquino Ferreira), de Roy Jenkins. A vida de Churchill é a indústria mais inesgotável e rentável da Grã-Bretanha. Por quê? Porque se trata do político mais importante do século 20. Se o estadista, historiador e escritor — ganhou o Prêmio Nobel de Literatura — é por demais conhecido, inclusive há outras biografias em Português, há algum livro a traduzir? Há uma biografia, não extensa, mas de qualidade, “Uma Introdução à Vida de Churchill”, de John Keegan (em inglês, o título é sucinto: “Winston Churchill”). Trata-se de uma edição portuguesa. Andrew Roberts, um dos mais gabaritados historiadores da Segunda Guerra Mundial, escreveu ao seu respeito: “É simultaneamente um prazer e um desafio ler a biografia de Keegan: um perspicaz contributo para compreendermos que a vida de Churchill é uma história sem fim. Para além de se encontrar entre os melhores especialistas na Segunda Guerra Mundial, John Keegan é um escritor extremamente acessível”. Em termos de estudos históricos, um livro decisivo na formação do intelectual e político foi “Declínio e Queda do Império Romano” (Companhia das Letras, 504 páginas, tradução de José Paulo Paes), de Edward Gibbon. O livro de Keegan saiu em Portugal, mas não no Brasil; comprei meu exemplar na Livraria Martins Fontes, a do Centro de São Paulo. (Tinta da China, 207 páginas, tradução de Jorge Palinhos).
A revista “Sur”, de Buenos Aires, criou condições para o surgimento de escritores e críticos e consolidou e divulgou outros tantos. Nas suas páginas, pontificaram, entre outros, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. A publicação, bancada pela mecenas Victoria Ocampo (1890-1979), se tornou famosa inclusive na Europa. No Brasil, que vive de costas para os países sul-americanos, pouco se sabe dos escritores e intelectuais da Argentina, exceto os mais famosos, como Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares (Sergio Miceli, autor de “Sonhos da Periferia — Inteligência Argentina e Mecenato Privado”, é um dos poucos a estudar a cultura do país vizinho). Victoria Ocampo, rica e culta, era uma mulher formidável. No cotidiano era uma revolucionária, pois teve coragem de desistir de um casamento ruim e ter um amante. Vários homens se apaixonaram pela mulher independente e decidida. Ortega y Gasset caiu de amores, mas não foi correspondido. Rabindranath Tagore quis manter um relacionamento, mas a argentina o rechaçou. Pierre Drieu La Rochelle e Victoria Ocampo se apaixonaram. “Entre eles existia uma autêntica ternura e uma relação que parecia mais propriamente de companheiros. Eram dois meninos extraviados que haviam se encontrado”, sublinham as biógrafas. O arquiteto Le Corbisier projetou uma casa para a escritora e editora na Argentina. Como editora, publicou autores importantes, como Virginia Woolf, com a qual manteve contato. (Circe, 341 páginas). Conto uma história curiosa: quando estive em Buenos Aires, em 2013, adquiri a biografia na Libros Cuspide, na Recoleta. Li pouco mais de 100 páginas e, quando percebi que havia várias páginas em branco, desisti, irritado. Em 2014, voltei à bela cidade de Oliverio Girondo e, num sebo, comprei outro exemplar, agora perfeito. María Esther Vázquez escreveu a biografia “Victoria Ocampo — El Mundo Como Destino” (Seix Barral, 316 páginas).