Listas agradam e desagradam. Porque são limitadoras. Por isso os leitores fazem suas próprias listas dos livros que apreciam. Na relação a seguir, como não mencionar a edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” da Editora Carambaia, “A Montanha Mágica” (ou “O Eleito”), de Thomas Mann, os contos (e romances) de Clarice Lispector, a poesia de João Cabral de Melo Neto, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, os fabulosos romances do escritor espanhol Javier Marías, a obra de António Lobo Antunes, a poesia extraordinária do bardo português Herberto Helder, a prosa (e a crítica) precisa de Alaor Barbosa, as análises percucientes de Manuel Castells, a poesia de Ronaldo Costa Fernandes, a prosa quiçá machadiana de Milton Hatoum, a literatura de Bernardo Carvalho, a poesia de Angélica Freitas, a poesia de Adalberto de Queiroz, a poesia de Gilberto Mendonça Teles, a poesia de Heleno Godoy, a poesia de Afonso Felix de Sousa, a prosa de Antônio José de Moura, a prosa inovadora de Wesley Peres, os ensaios de Tony Judt, a crítica de Roberto Schwarz, a crítica de Alfredo Bosi, a prosa de Agustina Bessa-Luís, algum livro de Robert Musil, a crítica de João Cezar de Castro Rocha, a literatura (e as traduções) de José Francisco Botelho, a crítica (e as biografias) de Adelto Gonçalves, a filosofia polêmica de Theodore Dalrymple (quem não sai das redes sociais deveria ler, com urgência, “Em Defesa do Preconceito — A Necessidade de Ter Ideias Preconcebidas”), a literatura e a crítica de Ricardo Piglia, a prosa de Juan Carlos Onetti, a filosofia de Roger Scruton (os conservadores e os não-conservadores deveriam ler sua obra com atenção)? Bem, paremos por aqui. Senão a lista se tornará uma enciclopédia.
Na elaboração da lista, priorizei livros publicados no Brasil. Só dois foram lançados em Portugal, mas podem ser encontrados em algumas livrarias brasileiras. Livrarias, por sinal, que passam por uma crise devastadora. A torcida é para que as livrarias Cultura (dívida de quase 300 milhões de reais) e Saraiva (dívida de quase 700 milhões de reais) se recuperem, mas não será nada fácil. Oxalá a recuperação judicial não seja a porta aberta — até escancarada — para a falência.
Há críticos que se tornam prosadores, até para provar, aos criticados, que sabem escrever ficção. Edmund Wilson (tinha uma inveja brutal de F. Scott Fitzgerald, que, não sendo tão culto, era capaz de escrever uma prosa que, dizem, Deus leu quando criou o mundo e, deliciado, fez Eva) e Susan Sontag são dois casos emblemáticos. Eles escrevem bem, até muito bem, mas, como prosadores, ficam a dever. Se sobram informação e capacidade de argumentar, falta à dupla dinâmica, quem sabe, imaginação. O que indica que, ao bom escritor, não basta escrever bem. Pois há um brasileiro que faz crítica literária de primeira linha e escreve aquela ficção que inebria, que mexe com os nervos dos leitores — dos desatentos aos mais atentos. Diria, até, que Miguel Sanches Neto é um escritor que também faz críticas e não exatamente um crítico que também faz literatura. Ele consegue brilhar na forma curta, o conto, e no romance. “A Bicicleta de Carga e Outros Contos” é uma coletânea que o mostra em plena forma, deleitando os leitores daquela maneira que só os bons autores conseguem: escrevendo como se escrever fosse uma coisa natural, espontânea e não a arte de carregar pedras — às vezes diamantes, às vezes cassiteritas — que viram letras, quando não encontram “drummonds” no meio do caminho. “Por trás de uma aparência familiar, cotidiana, as histórias que o paranaense Miguel Sanches Neto conta neste livro revelam as múltiplas facetas da experiência humana e a dificuldade de comunicação que marca os relacionamentos entre homens, mulheres, pais e filhos. Um turista na Espanha acaba se tornando amigo de um casal de brasileiros: a possibilidade de um triângulo amoroso se insinua o tempo inteiro, mas pode muito bem ser algo imaginário, assim como a paixão de um fazendeiro de origem holandesa por uma famosa socialite, que ele conhece através de um quadro. Nesta coletânea, proliferam-se narrativas de amores que não se concretizam, e de desejo sexual que, para além do prazer, traz angústia. Exercendo pleno domínio das formas breves, Miguel Sanches Neto constrói aqui uma série de situações verossímeis em sua sordidez de detalhes envolvendo personagens que compartilham uma profunda e desoladora solidão. Em A bicicleta de carga e outros contos, o que está em jogo é o caráter ambíguo e opaco da linguagem. É através de tudo o que não se revela que as criaturas a quem o autor deu vida mostram-se tão humanas”. Vixe!: é publicidade, mas, tão boa, que assino embaixo. (Companhia das Letras, 136 páginas). Mais uma dica: Miguel Sanches Neto escreveu um romance sobre o escritor Dalton Trevisan que, a despeito de ter deixado o Vampiro de Curitiba possesso, é divertido. Não o diminui em nada, mas o humaniza, retirando, ao menos em parte, sua aura de Deus recluso. Li “Chá das Cinco Com o Vampiro” (Objetiva, 288 páginas) sorrindo, rindo e, por fim, gargalhando. Ah, e apesar das verdades ditas, para colocar a vaidade na fogueira, o livro é respeitoso e, sim, sobrevive como literatura. Diria que se aproxima do picaresco. Desconfio que, quando sozinho, Dalton Trevisan também o aprecie, quiçá por se reconhecer no que é escrito. Imagino-o sorrindo, rindo e, até, gargalhando.
Jorge Amado viveu de escrever livros. Seus romances vendiam (e ainda vendem, nas edições da Companhia das Letras) como cerveja na sexta-feira. Ele inaugurou a era dos best sellers no Brasil. A crítica torceu o nariz para algumas obras, notadamente as engajadas, mas hoje é visto como um grande escritor (ainda que sem o porte de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector). A biógrafa conta várias histórias. Uma delas é sobre a feitura de “Gabriela, Cravo e Canela”. Joselia Aguiar nota que Lima Barreto escreveu o conto “O filho de Gabriela”, o relato “de uma mãe empregada e seu filho com o patrão”. O periódico “Para Todos” — cujo diretor de redação era Jorge Amado — publicou um poema do francês Jacques Prévert, cujo começo assinala: “Sou assim como sou/porque fui feita assim/Vim cá para agradá-los/nada posso mudar”. A tradução foi feita pelo bardo goiano Afonso Felix de Sousa. Em quatro meses, o romance vendeu 40 mil exemplares e o autor ganhou 2 milhões de cruzeiros (um apartamento de dois quartos em Copacabana custava 750 mil cruzeiros, em 1959). No início da década de 1960, o livro havia vendido 193.500 exemplares. Vendeu 100 mil exemplares na União Soviética (“o tradutor costumava levar visitantes brasileiros à Biblioteca Lênin, em Moscou, para que vissem que o livro mais procurado e mais lido era ‘Gabriela’”) e mais de 150 mil nos Estados Unidos O exigente crítico Wilson Martins aplaudiu: “Romance bem construído (…), realizado com brio e brilho de uma carga de cavalaria ligeira (…), espontaneidade e vigor”. O jornalista Jorge Medauer publicou reportagem, na revista “Manchete”, sugerindo que Emilio Maron e Lourdes eram os modelos para Nacib e Gabriela. Mais tarde, a família Maron tentou matar o repórter. Na verdade, Jorge Amado nem conhecia Maron e Lourdes. Outro goiano, Domingos Vellasco, é mencionado (foi torturado pela polícia de Getúlio Vargas). Maximiano da Mata Machado (casado com Amália Hermano), que foi desembargador em Goiás, é mencionado; era amigo de Jorge Amado. (Todavia, 637 páginas).
As memórias do cantor de voz poderosa e única (o que o qualifica como cantor e intérprete) não é um strip-tease total de sua vida. Há um certo recato, o que não quer dizer que Ney Matogrosso “minta” ou “esconda” alguma coisa. Na verdade, conta quase tudo, mas, como não se trata de uma biografia, falta nuance. O fim do grupo “Secos & Molhados” é contado a partir de sua visão. Espécie de Dorian Gray da música patropi cuja velhice — tem 77 anos — é imperceptível, dados a persistente qualidade de sua voz (confira “O freguês da meia-noite”, de Criolo, na sua voz que intercala agressividade e delicadeza e seu vigor no palco. Ele esclarece uma história que tem sido apresentada de outra maneira: “Cazuza e eu tivemos um romance curto, três meses apenas. Foram três meses muito intensos, repletos de fogo, com labaredas gigantescas. Depois ficamos o resto da vida juntos, como grandes amigos. (…) O romance aconteceu antes de Cazuza ser cantor”. Em 1979. Assim como Cazuza, o namorado de Ney Matogrosso, Marco de Faria, morreu em decorrência de Aids. O cantor afirma que não aprecia o rótulo de homossexual e relata que manteve relacionamentos satisfatórios com mulheres. O artista plástico Siron Franco é citado, na página 215, como autor de seu retrato (belo, por sinal). Procede que, atualmente, o artista usa telepromter, porque sua memória não é mais prodigiosa? Não há registro disso no livro. Mas importa mesmo? O que vale é que continua cantando muito bem, com repertório variado e inovador. (Tordesilhas, 287 páginas).
A prosa de James Baldwin, escritor americano, volta às livrarias brasileiras em bem cuidadas edições e traduções. “O Quarto de Giovanni” relata a história de um americano em Paris — ecos de Henry James, sem o pudor deste, aparecem aqui e ali, inclusive na temática — e uma espécie de descoberta. O jovem David pretende se casar com a americana Hella. Entretanto, ao se relacionar com o italiano Giovanni, descobre ou redescobre sua sexualidade. O romance é apontado como um clássico da literatura gay — dado o (trágico) encontro entre os dois jovens guapos. Mas, tratando-se de James Baldwin, é mais do que isto. Escrever bem é uma obrigação de qualquer escritor, mas, no caso, a arquitetura da obra é precisa e bela. O leitor acompanha a vida dos garotos como se estivesse transitando por ela, como se uma fosse uma rua iluminada ma non troppo. O que ilumina a sexualidade diversa, com sensibilidade, é a prosa contida. Não há santos nem, a rigor, bandidos na história. O que há são indivíduos vivendo suas vidas reais, com ou sem ilusões, de maneira complexa e sem julgamentos morais peremptórios. A vida é assim — complicada, sem nortes precisos. Talvez seja uma das mensagens da literatura baldwiniana. Se há, de fato, mensagens na história sem pieguice dos dois amantes. O livro é de 1956. (Companhia das Letras, 232 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto. Brindes: apresentação de Colm Tóibín e posfácio de Hélio Menezes).
O economista Eduardo Giannetti está se consagrando como filósofo e ensaísta de primeira linha. No ensaio mais celebrado deste livro, examina o complexo de vira-lata, “a imagem depreciativa que nós, brasileiros, fazemos de nós mesmos e o nosso renitente narcisismo às avessas”. O brasileiro tem “o sentimento de inferioridade em face do estrangeiro acoplado à crença sincera de que é, pessoalmente, uma exceção, e que a culpa pelos nossos males é sempre dos outros” (golpe de 64? A culpa é dos americanos. Mas eles não interferiram. Ah, sim, mas suas tropas quase invadiram o Brasil). Mas, afinal, o complexo de vira-lata, diagnosticado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, é virtude ou desgraça? O autor do livro sugere que a aceitação de que somos mestiços, vira-latas, é um reconhecimento do que se é de fato. Ele percebe virtudes nos brasileiros raramente apontadas como virtudes. A obra deveria ter provocado um debate mais amplo, mas, infelizmente, se gerou algumas resenhas e uma ou outra reportagem, não gestou uma discussão abrangente e crítica. (Companhia das Letras, 344 páginas).
Saiu uma edição especial de “Vidas Secas”, nem é tão luxuosa, mas é belíssima. Fica-se pensando: como uma história sobre pobres, a respeito de indivíduos vivendo abaixo da linha de pobreza, pode merecer um livro caro para os padrões patropis (R$ 69,90). Mas a escrita de Graciliano Ramos é, por si, um luxo autêntico. Numa carta para Oscar Mendes, ele reclama que um de seus “críticos” — de uma obra que só existia na sua imaginação de mau leitor — tivera a coragem de escrever que não tinha domínio da Língua Portuguesa. Ora, se o Velho Graça não sabe português, o castiço e o reinventado pelos mais notáveis prosadores, ninguém sabe. Como um integrante do Partido Comunista safou-se do realismo socialista? Dada a temática, a miséria — exibi-la de maneira cadente é sinônimo de denunciá-la —, a esquerda, por assim dizer, o perdoou. Sabendo-se despatrulhado, Graciliano Ramos pôde radicalizar a forma, a maneira de contar sua história sobre retirantes sofredores. A contenção e a precisão narrativa — lembra Faulkner, mas sem a verborragia (não é bem o termo) às vezes tortuosa do americano — criaram um clássico capaz de ombrear-se com a prosa do “pai” Machado de Assis e do “irmão caçula”, Guimarães Rosa. Com seu texto único, inimitável, Graciliano inscreve-se como um dos fundadores da prosa moderna no país. Seu romance é uma interpretação do Brasil — assim como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa. Sua literatura “luxuosa” é inclusiva, porque força a inclusão dos pobres no país, ainda que pela literatura, o imaginário. (Record, 320 páginas).
O subtítulo do livro é “Um Breve Ensaio Sobre a Liberdade Humana”. John Gray é um dos mais importantes filósofos britânicos vivos. Sabe por que o funcionário do Carrefour matou um cachorro na porta do supermercado? Porque os homens se consideram o centro do mundo. Mataram Deus e se tornaram deuses. Ao povoar a Terra, em todos os seus rincões, matam espécies agressivas ou não. Para compreender a questão, de maneira mais ampla, vale a leitura do livro “Cachorros de Palha” (Record, 255 páginas, tradução de Maria Lucia de Oliveira) e “A Sexta Extinção — Uma História Não Natural” (Intrínseca, 336 páginas, tradução de Mauro Pinheiro), de Elizabeth Kolbert. No livro recém-lançado no Brasil, volta a um tema caro ao filósofo Isaiah Berlin e ao próprio John Gray: o da liberdade. No texto de divulgação do livro, a editora assinala que, “diante da possibilidade de ser livre, todos querem a liberdade. Será? Baseamos nosso conceito de existência na ideia de que temos o domínio de nossas ações, de nossa consciência e de nosso mundo, mas somos escravizados pela suposta liberdade ilimitada diante de nós, sem perceber que a vida humana é pautada pela ansiedade de decidir como viver. John Gray une conceitos de gnosticismo, ficção científica e ocultismo, e costura tradições religiosas, filosóficas e fantásticas para questionar a ideia de liberdade humana. Uma reflexão instigante e original, que mostra que a liberdade é uma ilusão e que, tal como ocorre às marionetes, os humanos sonham em fugir do martírio de fazer escolhas”. (Record, 126 páginas, tradução de Clovis Marques).
Fale mal de Lênin, de Stálin e, até, de Trotski. Só não fale, por favor, que a literatura russa é ruim. Porque não é. Púchkin, Gógol, Dostoiévski, Turguêniev, Tolstói, Tchekhov, Bábel, Maiakóvski, Mandelstam, Mikhail Bulgákov, Anna Akhmátova, Marina Tsvetáieva, Pasternak, Vassili Grossman são pares para os grandes escritores de quaisquer outros países. Mas, além dos mencionados, há outros autores importantes. Organizado pela professora da USP e tradutora Arlete Cavaliere, o livro contém 57 textos de 37 autores, a maioria inédita no Brasil. A literatura russa é marcada pelo debate de ideias, pelos projetos de transformação da sociedade, mas não deixa de incluir a ironia, a sátira e a paródia. “É difícil encontrar um escritor russo em cuja obra não esteja presente algum matiz do cômico”, afirma a editora. A obra inclui textos de Mikhail Zóschenko, Sacha Tchiórni, Nadiéjda Téffi, Liev Lunts, Viktor Peliévin, Dmitri Býkov e Liudmila Ulítskaia. “São textos que abrangem diversos gêneros de prosa, como o conto, a crônica, a anedota, a carta, trechos de romances e de prosa memorialística e breves peças de teatro, e que dialogam com a tradição literária russa sempre de um ponto de vista original e inusitado.” (Editora 34, 568 páginas).
Pense em Graciliano Ramos e Francisco Dantas. Pensou? Pois bem: Ronaldo Correia de Brito, de 67 anos, é filho de todos os grandes escritores patropis, mas não repete nenhum deles. Não é da turma dos imitadores ou dos que se engancham no vezo meio deprê da angústia da influência. Por entender, decerto, que escritores carregam dentro de si a força dos escritores anteriores, o que não possibilita uma libertação integral, é que o autor cearense (radicado em Pernambuco) constrói uma literatura filha de todos e, sim, de ninguém. Quer dizer, é cria dele próprio. O romance “Dora Sem Véu”, marcado pela culpa e pelo amor, é visto como “dostoievskiano”. Como se fossem os filhos e o marido de Addie Bundren — do romance “Enquanto Agonizo”, de Faulkner —, Francisca e o marido Afonso peregrinam em busca de Juazeiro, ou melhor, de Dora, avó de Francisca. Como se fossem retirantes (ecos do Graciliano Ramos de “Vidas Secas”) — e retirantes, de certo modo, não são, pois estão de “volta” —, viajam num caminhão, na sua caçamba, numa luta contra os incômodos da sede e do calor. O que encontram, para além do desencontro? A vida com seu caráter imponderável, avessa aos rigores do planejamento. O romance está vivo? Ronaldo Correia Brito prova que sim. Está vivíssimo. (Alfaguara, 248 páginas)
Admirada por Antonio Candido e Davi Arrigucci Jr. (que a descobriu), Orides Fontella morreu em 1998, aos 58 anos. Criou uma poesia de alta qualidade, ainda que irregular, e que começa a ser estudada mais seriamente por críticos gabaritados. Na apresentação de “Poesia Completa”, o crítico Luis Dolhnikoff assinala que é “a poeta mais importante de sua geração”. Organizador do livro, Dolhnikoff assinala que se trata de “uma renovadora do modernismo em seu final” e uma “contemporânea das novas vanguardas surgidas nos anos 1950”. É, frisa, uma poeta antilírica. Confira o poema “Lembretes”: “É importante acordar/a tempo//é importante penetrar/o tempo//é importante vigiar/o desabrochar do destino.” Vale ler “Soneto à minha irmã (nascida morta)”: “No opaco silêncio estátuas virgens/de sal e luz tombaram, desmembradas,/no abismo das lúcidas origens/dormem nomes e formas olvidadas.//Dormem — não se levantam — primitivas/ideias puras no limbo fenecidas/pulcras estátuas virgens, mas cativas,/a luz total do ser não prometidas.//Na memória delas pesam como puro/tormento, arremessadas neste escuro/poço das coisas frustras, não nascidas://assim vives em mim, irmã, singela/pulsas em mim como a visão mais bela/entre rosas sepultas e queridas”. (Hedra, 426 páginas). “O Enigma Orides” (Hedra, 209 páginas), de Gustavo de Castro, é uma biografia romanceada a respeito de uma pessoa-poeta difícil de descrever. Tinha um “gênio difícil”, diziam.
O poeta e crítico literário Adalberto de Queiroz é peremptório: “A Biblioteca Elementar” é um dos mais importantes romances publicados no Brasil nos últimos anos. Sinopse da editora: “Na calada da noite, na hoje chamada Rua da Carioca, um homem de casaca, pistola na mão, ameaça outro com capa à espanhola e botas de cano longo. Atracam-se. A arma dispara. O de casaca cai ferido mortalmente. Há uma testemunha, cigana, que também tem lá suas culpas. Entre os crimes que perpassam este romance policial situado no Rio de Janeiro do século 18, apenas um é de fato relevante; apenas um resume e simboliza o livro. E, contraditoriamente, é o único crime que não acontece. Alberto Mussa opera com perícia a narrativa, conversando com o leitor e palpitando sobre os dilemas dos personagens sem abandonar o posto de narrador, ancorado em pesquisa do vocabulário da época, do contexto, das ruas do Rio, do tráfico de escravos, do contrabando de ouro e da ação inquisitorial, sempre com uma técnica primorosa”. Queiroz diz para o leitor: “Leia com atenção e certamente concordará comigo. Trata-se de uma obra-prima”. (Record, 192 páginas).
A história das livrarias confunde-se com a da civilização. São irmãs. “Cada livraria condensa o mundo.” O livro do catalão Jorge Carrión é uma daquelas delícias que não à toa encantou o argentino Alberto Manguel. “Se houvesse livrarias na Antártica, sem dúvida Carrión as visitaria para nos contar o que os pinguins liam”, brinca seriamente Manguel. Ao tratar das livrarias — inclusive da Livraria Cultura, que, como a Saraiva, está em crise, lutando para sobreviver (oxalá obtenha auxílio dos deuses das finanças) —, o viajante solitário comenta obras de, entre outros, Luigi Pirandello, Stefan Zweig, Danilo Kiš e Jorge Luis Borges (pena que a competente tradutora avalie que a revista “Sur” mereça ter o nome traduzido para “Sul”). “Os livros são escritos apenas para, acima do próprio suspiro, unir os seres humanos e, assim, nos defendermos contra o reverso inexorável de toda existência: a fugacidade e o esquecimento”, anota Zweig. “A livraria é líquida, temporária, dura o espaço de sua capacidade de manter com mudanças mínimas uma ideia no tempo. A biblioteca é estabilidade. A livraria distribui, a biblioteca conserva. A livraria é uma crise perpétua, sujeita ao conflito entre a novidade e o acervo”, postula Carrión. Andrés Neuman escreveu que as livrarias são “lares de passagem”. Várias livrarias são citadas, como a Librería de Ávila (de 1785) e a Eterna Cadencia, ambas de Buenos Aires; a Metales Pesados, de Santiago (Chile); a Altaïr, de Barcelona; a Bertrand (“a mais antiga do mundo” em funcionamento; data de 1732), no Chiado, em Lisboa; a Livraria Lello, no Porto (Portugal); a Topping & Company (“uma livraria como Deus manda, fora de moda”), em Londres; a Livraria Bozzi, em Gênova; a Shakespeare and Company, em Paris. Com seu texto delicioso, Carrión nos leva nas suas viagens pelas livrarias e acabamos frequentando-as, de maneira indireta, assim como países e obras de vários autores. Um livro que, sim, percebe ser tido como imperdível. (Bazar do Tempo, 295 páginas, tradução de Silvia Massimini Felix).
Uma das provas de que o romance não morreu no Brasil — e em lugar algum (a prosa de Ian McEwan, por exemplo, é de excelente qualidade. “Reparação” não se ajoelha ante nenhum grande romance) — é a existência da literatura de Cristóvão Tezza, de 66 anos. O autor nascido em Santa Catarina é autor de prosa (e crítica) de alta qualidade. O romance “A Tirania do Amor” é sintetizado assim pela editora: “Enquanto espera o sinal para atravessar a rua, o economista Otavio Espinhosa toma uma decisão radical: abdicar do sexo. O que parece piada se revela uma profunda crise pessoal: um casamento falido, problemas com o filho militante político, o fim humilhante de sua carreira acadêmica e a experiência sui generis de ter tentado enriquecer como guru de autoajuda. Também a carreira de Otavio parece estar em perigo: tudo indica que ele será demitido da empresa de investimentos onde trabalha. O leitor vai aos poucos destrinchando a investigação de um esquema no qual Otavio pode ou não estar envolvido, desenhando o panorama de um país em ruína econômica, cultural e moral. No lugar da literatura ou filosofia que pautavam as obras anteriores de Tezza, é a matemática — esta ‘arte sem afetação’, que promete uma forma lógica de pensar o mundo — que impulsiona as digressões de ‘A Tirania do Amor’. Otávio, porém, logo perceberá que nem a racionalidade serve para domar a vida, nem ele mesmo é tão racional quanto gostaria de acreditar”. (Todavia, 176 páginas).
O americano Paul Bowles é visto, por vezes, como uma espécie de escritor exótico. Aquele que, tendo viajando pelo mundo, abancou-se em Tânger, no Marrocos, vivendo lá até morrer, em 1999. Não é nada disso. Sua prosa às vezes é comparada à dos surrealistas e da geração beat. Mas, se deve alguma coisa a tais literaturas, guarda certa especificidade. Há mais contenção e menos excesso. O livro relata outra faceta de Bowles, que nem sempre é citada: seu extenso trabalho de compositor de formação erudita. Ele estudou com o compositor e pianista Aaron Copland, entre outros, e compôs óperas e músicas para teatro (peças de Tennessee Williams) e cinema (inclusive para Orson Welles). Manteve contato com o moderníssimo John Cage. Transformou “Yerma”, de Federico García Lorca, numa ópera. No Marrocos, no estilo de Mário de Andrade, gravou a música folclórica e traduziu histórias populares (chegou a anotar relatos de autores praticamente não alfabetizados). Ele relata como começou a escrever e a história de suas viagens pelo mundo, sempre buscando lugares menos contaminados por turistas, é fantástica. O encontro com a escritora Gertrude Stein, de quem se tornou amigo, é rica em histórias divertidas. No Marrocos, recebeu Truman Capote, Tennessee Williams, Allen Ginsberg, William Burroughs. Foi casado com a escritora Jane Auer Bowles. Os dois se amavam, mas, a partir de determinado momento, pararam de manter relações sexuais. Jane teve várias parceiras, mas os dois moraram juntos até a morte da escritora, em 1973. Paul Bowles, discreto sobre seus relacionamentos homossexuais, conta sua vida como se estive relatando causos sem importância. Às vezes narra encontros importantes, com Stein e o pintor Miró, como se fossem acontecimentos fortuitos. Como se estivesse tão-somente nos dizendo como é que funciona a vida, o cotidiano dos indivíduos. O livro menciona a cantora brasileira Elsie Houston, que foi casada com o poeta francês Benjamin Péret. (Martins Fontes, 458 páginas, tradução de Hildegard Feist).
Em 1972, aos 9 anos, Kim Phuc sofreu os horrores da guerra entre o Vietnã do Norte, comunista, e o Vietnã do Sul, capitalista — este apoiado pelos Estados Unidos. Um piloto norte-vietnamita jogou napalm nos supostos inimigos e crianças foram atingidas (é a versão da autora, mas, no próprio livro, um piloto americano admite que jogou o napalm). Kim Phuc estava entre elas. O profissional que fez a famosa foto, Nick Ut, foi o primeiro a socorrê-la. Muito ferida, com a pele das costas saindo, foi enfaixada e, considerada praticamente morta, deixada numa espécie de necrotério. Sua mãe percebeu que, embora muita abatida, estava viva e lutou até conseguir que fosse atendida. Depois de várias cirurgias — inclusive na Alemanha, para onde foi levada por um jornalista —, a garota sobreviveu. O governo do Vietnã chegou a manipulá-la, para sustentar que havia sido vítima de norte-americanos. Ela tentava estudar, mas o governo a retirava de sala de aula para exibi-la para jornalistas, que, não sabendo a língua do Vietnã, recebiam informações distorcidas. Com muito custo, conversou com o primeiro-ministro. Mas, convidada a estudar nos Estados Unidos, só conseguiu autorização para frequentar uma faculdade em Cuba, igualmente comunista. De lá, conseguiu escapar para o Canadá, onde mora. Até hoje faz tratamento de pele. Dados os defeitos físicos — achava que jamais se casaria (casou-se e tem dois filhos) — e as dores, chegou a pensar em se matar. O que a “salvou” foi a religião. Ela se tornou cristã. Trata-se de um livro que se lê com lágrima num olho e espanto no outro. A resistência física e espiritual de Kim Phuk impressiona. (Mundo Cristão, 317 páginas, tradução de Cecília Eller Nascimento).
A escritora americana Jane Bowles deixou uma obra pequena, mas de qualidade. “Duas Damas de Respeito” é seu único romance. Tanto a obra quanto a autora são “cults” — exceto no Brasil. No prefácio, o escritor Truman Capote assinala que o livro, assim como sua peça “In The Summer House”, tem uma “perspicácia sutil” e “o sabor de uma bebida refrescantemente amarga recém-experimentada”. Trecho do livro: “Na infância, Christina não tinha muitas amigas. Nunca sofreu particularmente por isso, pois desde pequena desenvolveu uma vida interior intensa, que reduzia sua percepção do que se passava a seu redor”. Casada com Paul Bowles, compositor e escritor, a judia Jane Auer Bowles morou em Tanger, no Marrocos, e morreu em Malaga, na Espanha, em 1973, aos 56 anos. Jane e Paul Bowles se amavam, viveram juntos até a morte dela, mas, a partir de determinado momento, a prosadora e dramaturga disse: basta, Paul. E não mais tiveram relações sexuais. Ela passou a se relacionar apenas com mulheres. Sua vida está contada no livro “Jane Bowles” (Circe, 413 páginas, tradução de Ángela Pérez), de Millicent Dillon. A biógrafa afirma que “há algo de misterioso em sua obra, algo inquietante na sua originalidade, algo diferente pelo estranho sentimento de pecado da autora. Suas preocupações com o pecado e a salvação mantêm uma curiosa similitude com o pensamento paradoxal e perturbador dos místicos judeus, os cabalistas. Mas ela não era cabalista, pela intensidade de sua paixão pela vida como tal, sem referência a nenhum outro mundo para além deste”. O poeta e crítico John Ashbery escreveu: “Espera-se que seja reconhecida pelo que é: uma das melhores escritoras modernas de ficção em qualquer idioma. É preciso assinalar ao mesmo tempo que não é em absoluto o tipo de escritora que parece indicar a impressionante lista dos admiradores que tem no sistema estabelecido. Sua obra não tem a ver com a deles e na realidade se destaca solitariamente na literatura contemporânea”. (Amarilys, 197 páginas tradução de Mariluce Pessoa).
Yuval Noah Harari, como está na moda, é o best seller da hora. Mas vale a pena ler dois filósofos britânicos, Isaiah Berlin e John Gray, que antecipam alguns dos debates propostos pelo historiador israelense. “A Força das Ideias”, organizado por Henry Hardy, assim como “Estudos Sobre a Humanidade”, contém ensaios percucientes de Berlin. No texto sobre Giambattista Vico, um de seus heróis intelectuais, recolhe um comentário de Jules Michelet: “Não tive nenhum mestre a não ser Vico. O seu princípio da força viva, da humanidade criando a si mesma, gerou tanto o meu livro [“História da França”] como meus ensinamentos”. Vico percebeu que “o mundo real”, na síntese do pensador anglo-letão, “não era absolutamente transparente: era opaco”. Aleksandr Ivanovitch Herzen é apontado como “um revolucionário sem fanatismo”. “Herzen atacava com força especial aqueles que apelavam a princípios gerais para justificar crueldades selvagens e defendiam hoje a matança de milhares pela promessa de que milhões se tornariam com isso felizes em algum futuro invisível, fechando os olhos a desgraças e injustiças inauditas em nome de uma felicidade esmagadora mas remota. Herzen considera essa atitude uma ilusão perniciosa, talvez um engano deliberado; pois os fins distantes talvez não sejam concretizados, enquanto as dores, os sofrimentos e os crimes justificados pelo apelo a esses fins continuam a ser demasiado reais no presente. (…) Os fins distantes não são para Herzen fins, mas uma ilusão monstruosa — os fins devem estar mais ao alcance da mão, ‘a diária do trabalhador, ou o prazer pelo trabalho executado’.” O escritor russo não apreciava aqueles que chamava de “marxicidas”. (Companhia das Letras, 331 páginas, tradução de Rosaura Eichenberg).
O leitor brasileiro tem sorte: a melhor biografia do poeta espanhol Federico García Lorca, desde que queira lê-lo, pode chegar às suas mãos com facilidades, pois está nas livrarias. Seu autor, Ian Gibson, dedicou grande de sua vida a narrar a história do bardo andaluz — assassinado em 1936, aos 38 anos, por rebeldes adeptos do fascista Francisco Franco. Autor mais editado da Espanha, acima de Cervantes, parte da vida de Lorca ainda está envolta em mistério, notadamente sua homossexualidade. “Somente uma ou duas de suas cartas ao adorado Salvador Dalí vieram à luz; quase nada se sabe da sua apaixonada relação com o escultor Emilio Aladrén e poucos dados existem do seu profundo envolvimento com Rafael Rodríguez Rapún.” Ele teve um relacionamento com um uruguaio. O bardo foi uma das primeiras celebridades da Europa. Um autêntico one-man show. Era pianista, poeta, dramaturgo, conferencista, conversador, contador de histórias, ator, diretor de teatro e mímico. “Lorca comovia ao cantar músicas folclóricas e desenhava suficientemente bem para merecer o louvor do exigente Dalí. Seu carisma o tornava a alma de qualquer festa. Seu senso de humor era contagiante, suas risadas famosas.” Parecia eternamente feliz. Mas era angustiado. Tinha a “tendência de desligar-se de repente em meio a uma conversa animada e cair em profundo alheamento, os lábios franzidos e a luz dos olhos escuros temporariamente extinta. Depois de um momento ele voltava e prosseguia do ponto em que parara, como se emergisse de um transe hipnótico”. Vicente Aleixandre anotou: “Lorca era capaz da maior felicidade do mundo, mas em seu ser mais profundo, como é o caso dos grandes poetas, ele não era feliz. Os que o julgavam um pássaro de cores brilhantes passando alegremente pela vida não conheceram verdadeiramente o homem”. O poeta receava também que seus pais descobrissem que era homossexual. A Espanha era extremamente conservadora entre as décadas de 1920 e 1930. (Globo, 715 páginas, tradução de Augusto Klein). Com mestria, o diplomata William Agel de Mello traduziu a “Obra Poética Completa” (Martins Fontes, 776 páginas) de Lorca.
O historiador israelense Yuval Noah Harari tem sido uns dos principais nomes da atualidade que tratam da divulgação de ideias científicas para leigos e de questões referentes à tecnologia e de como esta influencia o modo de vida dos indivíduos. Em “Sapiens”, livro indicado por Mark Zuckerberg e Barack Obama, o autor fala sobre o desenvolvimento do gênero humano — o homo sapiens (homem sábio), numa linguagem acessível, tornando a leitura agradável e, ao mesmo tempo, informativa.
Harari conta como três revoluções — a cognitiva, que se deu com o desenvolvimento da linguagem, a agrícola e a científica — levaram ao desenvolvimento da espécie humana. Desmitifica alguns conhecimentos superados e aponta pesquisas científicas contemporâneas. Sapiens é uma leitura para o público em geral, desde o adolescente, e um ótimo passatempo para se entender a maneira como chegamos até o presente. No livro, Yuval Harari postula que até uma espécie de macacos “mente”. (L&PM, 462 páginas, tradução de Janaína Marcoantonio).
“Finnagens Wake” é um romance ou é o quê? Por certo, é um romance que conflita o romance, é um poema em prosa, é um ensaio em forma de literatura. É tudo isto e não é só isto. O livro, como o Chacrinha, foi escrito para confundir e empregar acadêmicos por longos 300 anos. Tradutores patropis competentes, como Donaldo Schuller — que traduziu a obra inteira (pela Ateliê Editorial), num trabalho de Hércules incentivado por Homero — e Dirce Waltrick do Amarante, seres intimoratos, enfrentaram o livraço, espécie da bíblia da literatura moderna, sem esmorecimento. Dirce Waltrick vem enfrentando James Joyce já faz algum tempo, sempre com traduções hábeis, dando-lhe uma nova língua, a Portuguesa, com sua precisão de praxe. Ousada, decidiu enfrentar logo “Finnegans Wake” — que Caetano Galindo pretende domar integralmente — e não fez feio. James Joyce em português, e em qualquer língua, é Joyce e seus tradutores. Porque, para ser entendido pelos leitores da língua de chegada, precisa ser reinventado. A edição condensada pela tradutora, professora em Santa Catarina, ao reinventar Joyce, o torna maior, não para os leitores que leem sua obra em inglês — ou joycinglês —, e sim para nós, que estamos lendo-o em tradução. De algum modo, Dirce Waltrick reinventa até o Português para que Joyce “fale” a língua de Guimarães Rosa, seu mais ilustre “filho” tropicaliente. (Iluminuras, 184 páginas).
Num momento em que se pensa em enquadrar o crime organizado, desorganizando-o, vale a pena ler o livro do sociólogo Gabriel Feltran, professor da Universidade Federal de São Carlos. Contrariando outras teses, o pesquisador sublinha que o PCC é uma irmandade secreta, uma espécie de “maçonaria do crime”. Os seus líderes e liderados agem a partir de uma rede de apoio mútuo, com valores definidos. A ética interna diz que é preciso respeitar os negócios dos integrantes do grupo. O Primeiro Comando da Capital é praticamente um Estado paralelo sob ataque do Estado oficial e, ao mesmo tempo, atacando o Estado oficial. Em algumas penitenciárias, é hegemônico e acua o poder público. Recentemente, quando o governo ameaçou transferir Marcola, seu líder máximo, para um presídio de segurança máxima fora de São Paulo, o PCC reagiu e montou um exército, reunindo 100 milhões de reais — soma talvez exagerada pelos criminosos — e mercenários, para libertá-lo. Com a trama descoberta, houve um recuo. Feltran frisa que o PCC gera renda para várias pessoas, produz sua própria justiça e uma rede de proteção. (Companhia das Letras, 320 páginas). O livro pode ser lido concomitante à pesquisa também rigorosa de “A Guerra — A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 344 páginas), de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias.
O subtítulo é “Inteligência Argentina e Mecenato Privado”. São poucos os intelectuais brasileiros que se dedicam a estudar a cultura dos países sul-americanos. O professor da USP tem publicado livros valiosos sobre escritores como Jorge Luis Borges, Alfonsina Storni e Horacio Quiroga, além da mecenas Victoria Ocampo. Suas análises são críticas e rigorosas. Há excessos interpretativos derivados de vezo ideológico? É possível. Fica-se com a impressão que a visada democrática da revista “Sur”, por não ser de esquerda, desagrada o autor do ensaio “A inteligência estrangeirada de Sur” (é vista como elitista). A ligação de Alfonsina Storni e Horário Quiroga com a indústria cultural parece empolgar o scholar patropi. Mas, quando a ligação é de Borges, parece desagradá-lo. O apreço do ensaísta por Alfonsina Storni deve-se, digamos, à sua pegada social. Há complacência com ela e o autor uruguaio (morou na Argentina) e nenhuma com os, por assim dizer, “desvios” burgueses do autor de “O Aleph”. As breves ressalvas, que não chegam a configurar uma crítica, não devem levar o leitor a acreditar que o livro é ruim. Pelo contrário, é excelente e seu diálogo com a cultura argentina é, entre nós, raro. (Todavia, 183 páginas).
Ancorada na tese de que a publicação de notícias sobre suicídio gera mais suicídios, a Imprensa acovardou-se e só mais recentemente voltou a discutir o tema. “Escondê-lo” não resulta que está diminuindo; pelo contrário, está aumentando (“a cada quarenta segundos, alguém tira a própria vida”). Indivíduos bebem veneno, tomam medicamentos em excesso, pulam de edifícios e dão tiros em si — numa recusa a viver que precisa ser discutida e, apesar do imponderável, explicada. Mas o jornalismo sensacionalista, este sim, em nada ajuda. Debates amplos, incluindo a devoradora depressão — que não deve ser vista como frescura, e sim como uma doença grave —, são necessários. Para reduzir o índice de suicídios? Talvez. Mas também para que se possa discutir o sofrimento, as dores humanas e, até, a morte (ainda um tabu). Neste livro, que pode contribuir para o debate no Brasil, Andrew Solomon debate a depressão e o suicídio. Ele menciona o suicídio de Virginia Woolf, Sylvia Plath, David Foster Wallace, Anthony Bourdian, Robin Williams e Kate Spade. (Companhia das Letras, 112 páginas, tradução de Berilo Vargas).
James Bond é inteligente, implacável, destemido e relaciona-se com mulheres bonitas. E, claro, tem licença para matar. O espião saiu puramente da imaginação do escritor britânico Ian Fleming? Não. Há indícios de que Dusan “Dusko” Miladoroff Popov, um agente triplo — a serviço, muito mais, dos Aliados —, foi a figura real que inspirou 007. Falava alemão fluentemente e, por isso, espionou para os nazistas, mas com outros objetivos. Ao mesmo tempo, era mulherengo. Além de servir aos alemães e aos ingleses, Dusko Popov — que Ian Fleming conheceu — trabalhou para o FBI de J. Edgar Hoover. Ingleses e americanos conseguiram enganar os alemães a respeito do ataque dos Aliados na Normandia. O espião ajudou na montagem da afortunada farsa. O livro de Larry Loftis, advogado e ex-professor da Universidade da Flórida, conta de maneira detalhada a vida extraordinária do espião que deu certo, escapou de armadilhas e sobreviveu por longos anos. A leitura da obra é como se você estivesse participando de um filme de ficção, mas sabendo que se trata de uma história verdadeira. No caso, a ficção supera a realidade — de tão rica e multifacetada. (Vogais, 414, tradução de Rita Garcia).
Está na moda chamar de fascistas os oponentes. A esquerda é pródiga em nominar de “fascista” quaisquer adversários, notadamente os mais direitistas. Não há evidência de que o presidente eleito Jair Bolsonaro seja fascista. No poder se tornará? É preciso esperar. Mas um fascista nomearia um não-fascista, Sergio Moro, para ministro da Justiça? Dificilmente. É preciso admitir que a direita não é necessariamente fascista; pode ser, por exemplo, liberal sem ser fascista. No livro, uma pesquisa exaustiva, Michael Mann, pesquisador britânico, menciona “fascistas”, porque, apesar da identidade, há matizes de fascismo — sendo o do italiano Benito Mussolini o mais conhecido, mas há, além do precursor, outros, que são analisados de maneira ampla e rigorosa. A pesquisa histórica é esclarecedora e aqueles que não tiram a palavra fascismo da boca, de maneira acusatória, não deveriam deixar de consultá-la com atenção. (Record, 560 páginas, tradução de Clovis Marques).
O subtítulo é “Os Arquivos Secretos da KGB”. Há editoras especializadas em publicar livros sustentando que Adolf Hitler, o ditador nazista que levou a Alemanha à guerra, entre 1939 e 1945, morou e morreu na Argentina. Não há um documento substancial, mas os livros não param de sair, com testemunhos poucos fidedignos. Jean-Christopher Brisard e Lana Parshina, repórteres francês e russa, decidiram fazer o que muitos não fazem: vasculhar os arquivos da polícia política da União Soviética e, agora, da Rússia. Se sabia que os restos mortais de Hitler haviam sido levados para Moscou, logo depois da invasão de Berlim pelas tropas soviéticas. Mas os jornalistas descobriram a arcada dentária e um pedaço do crânio do criador do Holocausto. Conseguiram que um especialista francês examinasse o material e comprovasse o que diziam as autoridades russas: o esqueleto de Hitler realmente foi levado para a União Soviética, em 1945. A obra inclui várias fotografias. Lido o livro, se você continuar acreditando que Hitler andou pela Argentina e até por Mato Grosso, então, leitor, certamente você também acredita no Saci Pererê e no Curupira. (Companhia das Letras, 351 páginas, tradução de Julia da Rosa Simões).
O subtítulo é: “Vidas, Sonhos e Morte dos Guerrilheiros do Araguaia”. A Guerrilha do Araguaia era latifúndio do Partido Comunista do Brasil. Não é mais. Hugo Studart, doutor em História pela UnB, e outros pesquisadores — que não rezam pela cartilha dos reds — fizeram uma “reforma agrária” e democratizaram o tema. A esquerda reclama da pesquisa, sem perceber suas virtudes. O jornalista e historiador publica os nomes dos militares que comandaram a guerrilha e aponta aqueles que agiram com extrema violência contra militantes do PC do B que, presos, não ofereciam qualquer resistência e, portanto, não representavam nenhuma ameaça. Foram assassinados (não há outra palavra). A cadeia de comando do combate à esquerda é mostrada com fartura de dados. A implicância maior dos esquerdistas é com a história de uma guerrilheira que manteve relacionamento com um homem da repressão, por quem aparentemente se apaixonou, e com o fato de que, para sobreviver, alguns guerrilheiros pactuaram com os militares e, até, ganharam empregos (um dos deles no Carrefour). O livro também mostra que, se valoriza os militantes citadinos — absolutamente despreparados para uma guerra desigual —, o PC do B não é pródigo na lembrança dos camponeses que participaram, direta ou indiretamente, da guerrilha. Hugo Studart põe os camponeses no centro do palco, reconhecendo que lutaram, com bravura, ao lado dos “estudantes” comunistas. Livro, acredite, imperdível. (Francisco Alves, 660 páginas).
Condenado há mais de 180 anos de prisão, o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho, jornalista que optou pela política, se tornou rei do crime, mas acabou fisgado pela Operação Lava Jato. Roubou o Erário, durante anos, e sua história é radiografada com precisão neste livro em que os fatos, apurados e apontados com rigor, fazem o julgamento moral. Não há palavras excessivas, violência verbal, indignação de botequim. O “grito” está na descrição precisa de como uma organização criminosa se formou, a partir de um líder absolutamente inescrupuloso, e furtou milhões — talvez bilhões — de reais. Cínico, Serginho Cabral era crítico contundente dos malfeitos. O dinheiro era tão farto que a família do malfeitor era aquinhoada com mesadas. A ex-mulher Susana Neves, sobrinha-neta de Tancredo Neves, recebia 100 mil reais por mês. Os pais do político, Sérgio Cabral e Magaly Cabral, também recebiam 100 mil reais por mês. Os filhos e irmãos do emedebista recebiam um pouco menos. Havia dinheiro para quase todo mundo. A Justiça conseguiu recuperar 100 milhões de dólares, devolvidos pelos doleiros que “lavavam” a fortuna daquele sobre o qual Arnaldo Jabor escreveu: “Hoje, romanticamente, confio no senhor. Confio mesmo; vejo determinação em seu rosto”. O polêmico colunista de “O Globo” não percebeu que “determinação” do torcedor do Vasco tinha a ver com assaltar. A obra de Hudson Corrêa é um “Os Donos do Poder — Corrupção”. Imperdível. (Primeira Pessoa, 223 páginas).
O subtítulo é: “História de uma Europa Quase Esquecida”. Norman Davies, de Oxford e da Universidade de Londres, é autor de livros sobre a Segunda Guerra Mundial e a Polônia. Neste livro, como indica o título, conta a história de vários reinos europeus que desapareceram. Concebido em 1569, a Comunidade Polaco-Lituana “foi o maior Estado da Europa”. Mas “foi destruído de forma tão completa, em finais do século 18, que hoje poucas pessoas ouviram falar dele. E não foi a única baixa. A República de Veneza e o Sacro Império Romano foram destruídos na mesma época”. Outro império devastado, depois de 74 anos de amplo poder, foi o da União Soviética. Sobreviveu de 1917 a 1991. Esta, porém, é uma história mais conhecida. O doutor em História decidiu falar dos reinos desaparecidos porque “são praticamente mudos”. A história deles, embora até recente e poderosa, em alguns casos, está esquecida. No final do livro, o autor escreve um texto interessantíssimo, “Como morrem os Estados”. No final do livro transcreve um poema de um bardo britânico. “William Wordsworth chorou o desaparecimento de um Estado muito mais antigo do que o Reino da Etrúria, mas que também foi eliminado por um capricho napoleônico: “Possuiu o deslumbrante Oriente/E foi a salvaguarda do Ocidente: o valor/De Veneza não caiu abaixo do seu nascimento/Veneza, a mais velha Filha da Liberdade./Foi uma Cidade donzela, radiante e livre;/Nenhuma manha a seduziu, nenhuma força a conseguiu violar;/E quando tomou Companheiro,/Desposou o Mar eterno./Que importa que tenha visto fenecer aquelas glórias,/Desaparecer aqueles títulos, decair aquela força;/Prestemos-lhe uma homenagem pesarosa/Por ter chegado ao fim a sua longa vida:/Somos homens e choramos mesmo quando a Sombra/Do que outrora foi grande desaparece”. (Edições 70, 957 páginas, tradução de Miguel Mata).
No currículo de Bob Woodward, do “Washington Post”, consta a derrubada de um presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. O competente e inescrupuloso gestor americano renunciou pra não sofrer impeachment. De 1974 pra cá, tornou-se um dos repórteres que mais entendem o que ocorre na Casa Branca. Num de seus livros, “Plano de Ataque”, examinou o governo de George W. Bush — criticamente mas sem preconceito. Concluiu que o ex-presidente não é nenhum néscio, ao contrário do que muitos pensam. Quanto a Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos, Woodward decidiu ir além da histeria costumeira de parte da Imprensa e mostra um outro lado dos Estados Unidos que alguns se recusam a conhecer. A leitura de “Medo” sugere que a burocracia desrespeita o presidente e faz o que quer? Não é bem assim. A tecnoburocracia americana percebe a instituição da Presidência da República como, digamos, acima da figura do presidente eventual. Por vezes, quando avalia que há um caminho certo, o que defende a República e o país de maneira global, e um errado, trilhado pelo presidente, fica com o primeiro. Não se está desrespeitando o presidente. Está se respeitando a Presidência e o país. Woodward mostra que nem tudo que Trump diz é fruto de planejamento. Mas, quando usa o medo, como arma de cerco e pressão, é de caso estudado. (Todavia, 432 páginas, tradução de Pedro Maia, Paulo Geiger, André Czarnobai, Rogerio Galindo).
Ilustração: Kenton Nelson