Se Olavo de Carvalho está certo, Mano Brown também está

Precisamos falar sobre Olavo de Carvalho. Ele é o elefante branco na sala de estar da cultura e da política brasileira. No distante ano de 2012 publiquei o ensaio Por Que Felipe Neto é o Intelectual Mais Influente do Brasil. Minha tese gerou memes, choro e ranger de dentes, mas não foi refutada. Infelizmente, o youtuber Felipe Neto mudou os rumos da carreira e passou a se dedicar ao público infantil. O jogo mudou e o filósofo Olavo de Carvalho ocupou seu lugar. Mas ser o intelectual mais influente de um país significa ter razão? Desde as jornadas de junho, as manifestações que tomaram conta do Brasil em 2013, passando pelo processo de impeachment da presidenta Dilma, seus seguidores e simpatizantes não se cansam de repetir, em gritos de guerra, cartazes, camisetas e fóruns na internet que “Olavo tem razão”. Tem mesmo?

Fugir do assunto dizendo que ele é apenas um zero à esquerda (esquerda não!), um ressentido boca suja, um teórico da conspiração, um autodidata sem diploma, que é um astrólogo louco, um islâmico infiltrado no catolicismo, nada disso adianta mais. O elefante está na sala, fumando e xingando, e mais cedo ou mais tarde o paquiderme vai acabar trombando em você. Ou coisa pior.

O fato objetivo é que Olavo de Carvalho representa o novo norte intelectual do poder executivo brasileiro. Claro, você pode radicalizar sua militância autista e responder que Jair Bolsonaro não tem sul, nem leste, nem oeste e muito menos norte intelectual. Não deixa de ser uma boa piada, mas nem só de humor vive o homem. Não se pode ignorar que não é todo presidente eleito que faz seu primeiro pronunciamento à nação com um livro de filosofia em cima da mesa.

Olavo de Carvalho deu um nó tático em seus adversários. Mesmo vivendo fora do país, soube ler o Brasil enquanto todos estavam ocupados em defender seus políticos de estimação. Foi tratado como piada pela elite intelectual brasileira durante décadas. Os mesmos que agora estão desesperados diante do crescimento de sua influência. Foi acusado de não ser filósofo pelos filósofos catedráticos, mas muitos de seus livros são best-sellers, lidos por pessoas que, em outras circunstâncias, jamais pegariam em um livro de filosofia, como talvez seja o caso de Bolsonaro. Olavo de Carvalho virou tema de filme. Muitas pessoas brigaram para assistir ou para impedir a exibição do filme. O mais importante: Olavo de Carvalho virou tema de camiseta. Entrou para o time de Che Guevara, John Lennon, Gandhi, Homem de Ferro e Seu Madruga. Quando um cidadão paga para usar a foto de alguém no peito é porque essa figura ultrapassou a condição de famosinho, subcelebridade, celebridade ou mesmo estrela; tornou-se um ícone. A conta é simples: virou camiseta com valor de mercado (trapos de candidatos distribuídos gratuitamente não contam), virou ícone. Ainda não vi camisetas do Karnal, do Cortella, do Clóvis ou do Pondé. Do Olavo já vi muitas.

Não precisamos necessariamente apreciar ou concordar com a mensagem de um ícone. Não simpatizo, por exemplo, com Che Guevara. Li seu diário e sei que ele foi um assassino frio, racista, homofóbico e sexista. Era tão psicótico que até Fidel Castro achava que Che “matava demais”. Mas posso negar sua condição de ícone? Claro que não. Está muito acima de opiniões pessoais ou mesmo dos fatos históricos. Ícones não surgem de atividade cerebral, surgem das entranhas. Se quisermos analisar e compreender a realidade, não podemos começar negando a realidade só porque ela não é agradável. O que se pode fazer é crítica abalizada. Mas é muito difícil discutir com camisetas.

Concluí que a candidatura de Bolsonaro era mesmo séria e tinha chances reais de vitória quando, na época da Copa do Mundo na Rússia, o assunto do momento era o número pouco expressivo de uniformes da Seleção Brasileira que estavam sendo vendidos. Para minha surpresa, um dia vi uma senhora vendendo camisetas com o rosto de Bolsonaro, trazendo os dizeres: “Melhor Jair se acostumando”. Será que essa senhora leu Olavo de Carvalho? Seria ela a vanguarda? A vanguarda do atraso? Uma comerciante sagaz? Ou apenas uma idiota útil?

Tenho percebido que grande parte da elite letrada tupiniquim está tão furiosa com a vitória de Bolsonaro nas urnas que nem mesmo tenta entender o que aconteceu. Cegos de fúria, preferem xingar, participar de campanhas on-line de resistência e acusar eleitos e eleitores de fascismo. Destilar bílis parece ser o suficiente para aliviar suas dores democráticas. Mas a realidade é bem mais complexa.

Na verdade, o Coiso, ou, se preferirem, o Mito, provou ser politicamente mais esperto do que esperavam. Não é apenas o sujeito errado na hora errada de que seus detratores o acusam. Possui inclusive mais similaridades com Lula do que muitos gostariam de admitir. Os dois não são homens de livros, mas ambos possuem a inteligência do vendedor de carros usados. Como se sabe, é impossível enganar um vendedor de carros usados. Não há filósofo, economista, jurista, neurocirurgião, astronauta ou ganhador do Prêmio Nobel que consiga passar um vendedor de carros usados para trás. O único limite para um vendedor de carros usados é sua própria ambição. Se for picado pela mosca azul da vaidade, pode acabar exilado nos labirínticos pátios do DETRAN, se é que me entendem. A habilidade de vender carros usados pode levar ao Palácio do Planalto.

Neste cenário inusitado que tomou conta do Brasil, talvez o aspecto mais impressionante seja o fato quase inédito de vermos um intelectual tendo influência real sobre o governo. Olavo de Carvalho indicou, até o momento, dois ministros — o de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez —, e ele mesmo recusou dois ministérios: o da Cultura e o da Educação. Prefere ficar sossegado nos Estados Unidos, dando aulas, escrevendo e caçando ursos. Esnobou legal o Coiso do corpo fechado…

Historicamente, os intelectuais brasileiros sempre foram subservientes aos políticos que os apadrinham, concedendo-lhes cargos públicos, verbas, patrocínios e similares. Intelectual aspone precisa manter a boca fechada e a caneta domada para não perder as benesses. As exceções confirmam a norma. Durante o regime militar, Golbery, chamado de “gênio da raça” por Glauber Rocha, tinha influência, mas ele mesmo era um militar de alta patente. O economista civil Delfim Netto (não confundir com Felipe Neto) também tinha voz, mas seu bolo nunca cresceu substancialmente. Lula reciclou Delfim, mas a massa do bolo já estava vencida.

Por outro lado, a esquerda que importa sempre se cercou de intelectuais, mas eles raramente galgaram postos de relevância nas estruturas partidárias; serviam mais para dar certo verniz de sofisticação aos projetos políticos. Intelectuais falam demais e querem fazer revoluções demais. Às vezes é preciso colocá-los em seus devidos lugares de bibelôs de palanque. O próprio Fernando Henrique Cardoso, que foi sim um intelectual respeitado, governou como o político pragmático que também era. Não sei se é verdade que FHC disse “esqueçam o que escrevi”, mas se não disse poderia ter dito.

Caso emblemático é o da filósofa Marilena Chauí. Todos se lembram de seus gritos performáticos contra a classe média durante um evento do PT. “Eu odeio a classe média”, bradou. Poucos se recordam de que Lula discursou logo em seguida e despejou água na fervura. Com sua sagacidade política e habilidade para vender carros usados, Lula disse algo como: “eu lutei tanto para ser classe média e colocar milhões de brasileiros na classe média, para vir a companheira Marilena e dizer isso!”. Risos na plateia. Desautorizada, a belicosa Marilena Chauí, mesmo portando todos seus diplomas e títulos acadêmicos, não poderia retrucar. Ela mesma já havia declarado que quando Lula fala o mundo se ilumina. Lula falou e ofuscou dona Marilena. Normal. Ossos do ofício para um intelectual orgânico.

Mais recentemente, na mesma eleição do Coiso mitológico, a escritora, psicanalista e filósofa pop Márcia Tiburi, então candidata do PT ao governo do Rio de Janeiro, foi literalmente abandonada pelo partido no meio da campanha. Acabou reduzida a um desses candidatos folclóricos que só servem para gerar memes.

E Olavo de Carvalho? O que o torna diferente? Por que não foi devorado pela máquina política? Sua filosofia tem razões que a própria razão desconhece?

É fato documentado pelo Youtube que há anos Olavo de Carvalho vaticinou que o primeiro político que adotasse um discurso conservador sem meias palavras, sem medo de ser politicamente incorreto, seria presidente do Brasil. Para o bem ou para o mal, Bolsonaro foi esse político. O Coiso percebeu que o Brasil precisava trocar de carro, foi lá, fez uma oferta e fechou negócio. Se o carro vai andar ou se o motor vai fundir só o tempo dirá, mas é inegável que, nesse caso, Olavo tinha mesmo razão.

As eleições de 2018 praticamente não foram influenciadas pelos tradicionais formadores de opinião. Foi a eleição do homem comum. Não creio que a maioria dos homens comuns tenha lido Olavo de Carvalho, mas, aparentemente, Olavo de Carvalho leu o homem comum. E também deve ter lido Roberto Da Matta. Faz décadas que o antropólogo Da Matta defende a tese do conservadorismo inato do brasileiro. Suas ideias foram comprovadas estatisticamente no livro “A Cabeça do Brasileiro”, de Alberto Carlos Almeida. Está tudo lá. Olavo de Carvalho viu, entendeu e vaticinou. Quem tivesse ouvidos, que ouvisse. A maioria preferiu ignorar o (aparentemente) louco que gritava no deserto da internet.

Olavo de Carvalho é mais ou menos como o padre Quevedo e Paulo Francis. Os três se tornaram conhecidos pelos personagens histriônicos que encarnam em suas aparições midiáticas, mas, na verdade, são respeitáveis, embora excêntricos, eruditos. Quevedo possui livros indicados como leitura obrigatória em universidades romanas pelo próprio papa emérito Bento XVI. Paulo Francis foi um ótimo crítico de arte e um ficcionista que precisa ser reavaliado pela crítica. Da mesma forma, Olavo de Carvalho, um internacionalmente reconhecido especialista em Aristóteles, escreveu, além de centenas de textos ligeiros, obras sofisticadíssimas. “O Jardim das Aflições” foi composto a partir de uma estrutura sinfônica. Seu ensaio crítico “Símbolos e Mitos no Filme ‘O Silêncio dos Inocentes’” é uma pérola em termos de análise fílmica. A publicação em livro do debate com Aleksandr Dugin, guru de Vladimir Putin, mostrou que Olavo foi o vencedor. Sim, parece inacreditável, mas o pretenso guru do Coiso venceu o guru do ex-chefe da KGB. Como se vê, estamos longe do bufão boca suja da internet.

Independentemente de se concordar ou não com suas ideias, é inegável que Olavo de Carvalho é um ótimo escritor. Seu texto é erudito, sofisticado e polifônico, mas ao mesmo tempo didático e, muitas vezes, hilário. Esse é outro ponto importante. Se muitos recusam o título de filósofo para Olavo de Carvalho pelo fato de ele não ser doutor de anel no dedo, não podem negar que ele é um dos maiores cômicos do Brasil. Do nível de um Guilherme Zaiden ou de um Sikêra Júnior. Alguns de seus vídeos são verdadeiros shows de humor demolidor, não indicados para menores de idade ou fãs do “humor do bem”. E, sim, pensadores sérios podem ser engraçados, vide Voltaire, Erasmo de Roterdã, Chesterton ou Bernard Shaw.

Mas é preciso admitir: realmente existe perigo em ler Olavo de Carvalho sem a couraça preconceituosa do “não li e não concordo”. O perigo é que você, pessoa engajada e sem preconceitos, concorde com uma frase solta aqui, outra ali, ria de uma piada lá, de outra acolá e pronto, quando menos espera, fecha o livro desesperado, rasga suas vestes, joga cinzas na cabeça e brada para os céus: estou virando um reaça! Estou virando um fascista! Estou virando um olavete!

Sim, pode acontecer. Em algum momento aconteceu com Caetano Veloso. Na década de 1990, em uma entrevista no “Roda Viva”, Caetano citou elogiosamente Olavo de Carvalho, validando sua posição sobre a responsabilidade individual das pessoas sobre seus atos, independentemente de fatores externos ou pressões coletivas. Hoje em dia, provavelmente, Caetano nega essa concordância, talvez usando a expressão de outro reacionário, Nelson Rodrigues, que afirmava que “o videoteipe é burro”. Coisas de Caê, essa pessoa linda e maravilhosa!

Olavo de Carvalho tornou-se um paquidérmico problema. Discordar quando ele está flagrantemente errado, destilando anacronismo, sendo paranoico ou exagerado é fácil. Até porque acontece com frequência. Mas concordar quando ele está certo não é tão simples. É quase um teste de honestidade intelectual.

Faça um teste no espelho: você, que odeia Olavo de Carvalho, é capaz de admitir que Olavo de Carvalho está certo se ele estiver mesmo certo? Esqueça as repercussões de tal declaração em sua turma de amigos engajados e sem preconceitos, apenas seja sincero em sua resposta. Não se preocupe, somente seu espelho vai saber.

Para ajudar você a se decidir, vide o caso relativo ao debate sobre o polêmico projeto Escola Sem Partido. Olavo de Carvalho, contrariando a expectativa de muitos que esperavam que ele usasse o projeto para virar um Torquemada da educação, deu uma bronca pública nos autores da proposta. Sugere o muito mais crível Escola Sem Censura, que, racionalmente, exclui qualquer perigo de totalitarismo e perseguição no ambiente escolar. Puro bom senso.

Enfim, apesar de tudo, ainda não é possível saber a real extensão da influência de Olavo de Carvalho no governo ou nos corações e mentes da parcela conscientemente conservadora da população. Ele mesmo nega ser guru de Bolsonaro. Mas é fato que conseguiu o que parecia impossível. Passou de Gato Borralheiro para Cinderelo da filosofia. Seus detratores gostando ou não.

Espelho, espelho meu, só sei de uma coisa: se Olavo de Carvalho está certo, Mano Brown também está.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.