Agradeço sinceramente por todas as manifestações de ódio e juras de maldição postadas pelos leitores desta ilibada revista literária, sem as quais eu não seria requisitado pelos editores da mesma a redigir mais um de meus desedificantes textos sulfurosos. Enviei a minha carta anterior por pura diversão, provocação da grossa, escamoteação premeditada, pegadinha marota, armadilha pra se pegar ignaros, como faz um caçador doméstico ao armar uma ratoeira.
E posso lhes assegurar que comemorei efusivamente, pois a maior parte dos roedores, quer dizer, dos leitores de “As 10 Piores Canções dos Beatles” não passou no meu teste. Feito cobaias a serviço da ciência e da literatura ficcional, eu demonstrei, por a + b, que o analfabetismo da paixão cega e do fanatismo é ingrediente infalível para se montar um exército motivado e trucidar meio mundo em nome do amor.
Não escrevo por dinheiro, até porque toco muito bem o fagote e não sou uma putinha em decadência. Após aparecer na Revista Bula e ser virtualmente fuzilado por dezenas de fanáticos defensores dos Fab Four, nada recebi, senão pragas, admoestações, xingamentos, trabalhos em terreiros de macumba, ameaças de morte e um pedido de namoro do qual me esquivei de imediato, pois — macaco velho que sou — pressenti que se tratava de uma beatlemaníaca disfarçada de amor da minha vida prestes a tirar proveito daquela sesta pós-orgasmo para plantar nitroglicerina entre os meus testículos. As mulheres, quando explodem de raiva, sabem também ser malvadas. Por isso, nunca me casei, a não ser com a música, com a boa música, diga-se de passagem.
Fiquei tão puto por ter luxado o meu cotovelo ao cair no calçadão esburacado e sujo da Ponta Negra que jurei nunca mais retornar àquela praia enquanto tivesse plenos pulmões para soprar o meu fagote noutras plagas. O tombo se deu porque me distraí com o grotesco assédio de uma prostituta adolescente, e acabei por enfiar o pé na jaca, digo, o pé numa cratera e desabar feito um barraco de favela carioca numa tempestade de verão. Além de possuir uma cara de europeu endinheirado, eu devia estar também com uma cara de palerma no cio para cair nas pretensões daquela fornicadora profissional de Ensino Médio.
Não, baby. Eu não sou caucasiano. Apesar de branquelo, eu nasci no Maranhão e conheço muito bem o que são a pobreza e a faxina étnica disfarçada. Escapei da diarreia, da desnutrição, das lombrigas, e da oligarquia política do meu Estado. Portanto, somos farinha do mesmo saco: eu e aquela quenga colegial. Posso até possuir cara de gringo, mas eu garanto: nasci e fui criado sobre palafitas, tomei coliformes fecais contaminados com água potável e decepcionei os urubus ao não padecer de desnutrição ou hepatite tipo A ainda na primeira infância.
Se eu não fosse ateu, poderia até supor que minha genitora fosse uma criatura abençoada por Deus, pois ela foi bastante diligente ao obrigar que eu e meus seis irmãos estudássemos o suficiente para escapulirmos da miséria e da criminalidade. A vivência em meio a tanto caos deixou-me um ser humano um tanto amargo, solteiro e sem amigos, é certo. Mas escapei fisicamente ileso e isto é o que importa para quem não faz a menor ideia do por quê Deus criou o mundo.
Era a terceira vez que eu visitava Natal, a qual me pareceu bastante suja e mal cuidada. Então contratei um bugueiro sindicalizado (favor, não confundir com blogueiro siliconizado), que eu soube mais tarde, não somente era clandestino, mas, alcoólatra e enxerido: muito a contragosto, ele insistia em contar-me a respeito da sua vida, sua modesta e fracassada vidinha de frequentador dos AA. Mesmo com o cotovelo imobilizado numa tala do SUS, catei o meu fagote e fui conhecer praias do litoral norte e do litoral sul.
Após exaustiva pesquisa, fui parar em Camurupim, um lugar bonitinho, não posso negar. Sentado na areia fofa era possível vislumbrar uma gigantesca piscina natural cercada por arrecifes, na qual adultos e crianças se divertiam como se não houvesse amanhã. E eles é que estavam certos. Acordo todos os dias com aquelas migalhas de esperança de que o homem um dia melhore, mas nada de novo acontece.
A despeito de vendedores ambulantes a me encherem o saco todo o tempo, tudo parecia correr bem, até que um corno encostou sua picape importada na barraca, sacou um CD pirata infectado com clássicos da música da péssimo gosto e ligou o som automotivo no volume máximo. Por que, em situações como aquela, não se ouvia um Mozart ou um Wagner, eu não saberia dizer. Por que ninguém nunca se excede em decibéis para tocar um Tom Jobim, um Milton Nascimento ou um Edu Lobo? Aquela sequência de batidões com letras onomatopeicas de apelo sexual exuberante ecoava na paradisíaca praia potiguar, espantando gaivotas, turistas e os derradeiros vestígios de bom humor no meu peito.
Enquanto um punhado de mulheres flácidas, feias e ornamentadas com cicatrizes cirúrgicas de todos os calibres balançavam os seus traseiros artificiais esburacados de tanta celulite ao som daquele estorvo de notas musicais que muitos chamam “música”, eu saquei o meu bugueiro fake e só não enfiei o fagote no próprio traseiro — como foi fartamente recomendado por meio mundo de leitores fascistas da Revista Bula — porque teria que soprá-lo outras vezes.
Ao retornar ao hotel, a sacolejar no interior de um buggy com motor retificado e a ouvir estorinhas desinteressantes pra boi dormir provenientes de um piloto viciado ignorante movido a Velho Barreiro, fiquei concatenando uma nova crônica, um texto no qual eu me vingaria do maníaco da camionete.
Defronte a Barreira do Inferno, que é uma base militar da FAB em Parnamirim, pertinho de Natal, concluí que aquela seria, sim, a trilha sonora ideal para os energúmenos analfabetos musicais do planeta ouvirem, por toda a eternidade, mergulhados num caldeirão quente com merda até o pescoço. Ficou com peninha? Arrocha e leva pra sua casa, então.
P.S — Cartas anônimas endereçadas a minha pessoa, e contendo Anthrax, você poderá enviar para o endereço da sua mãe, por favor. Estarei por lá aguardando.