Assim como existem filmes superestimados, que ganham prêmios, arrebanham grandes audiências e depois desaparecem sem deixar sinal, há também aqueles que não recebem a atenção que merecem. Pesquisando-se com boa vontade, encontram-se dezenas de filmes injustamente esquecidos, principalmente entre as produções de Hollywood. Em geral, temos a predisposição para valorizar tudo, ou quase tudo, que vem da Europa e menosprezar o que vem dos Estados Unidos. Os cineastas europeus seriam artistas; os de Hollywood, meros comerciantes. Destes, só se salvariam os autores bafejados pela crítica francesa. A realidade, porém, não é tão simples. Os dez filmes comentados a seguir são, por suas qualidades éticas e estéticas, preciosidades que não merecem a obscuridade a que foram relegados.
Paul Newman faz um sessentão rusguento às voltas com problemas que criou para si mesmo ao longo da vida, por causa do temperamento difícil. É a última variação do tipo inadequado simpático que o ator encarnou vez por outra desde a juventude. Em contato com o filho, que abandonou criança, e com um neto da idade que o filho tinha então, ele toma consciência dos erros e decide enfrentar os fantasmas de seus antepassados. Só assim poderá ajudar o filho, que vive um momento difícil, e contribuir para a formação do neto. Na cidadezinha coberta de neve, com poucas oportunidades de trabalho, sobreviver exige heroísmo. Ele se defende como pode e acalenta pequenos sonhos. Quando não tem trabalho, ganha uns trocados apostando no carteado ou em disputas a propósito de qualquer assunto. O que acontece de mais interessante no filme se passa no interior da personagem — e não é verbalizado. Donde só um ator experiente e talentoso como Newman poderia dar vida a tal figura. O resultado é um drama intimista para corações sensíveis.
O melhor momento, talvez, do existencialismo no cinema. Alain Delon encarna um homem maduro destituído de vínculos e obcecado pela pureza desde a morte de seu amor da juventude. A ligação que lhe resta é uma amante pela qual já perdeu o interesse. À deriva, desleixado, ele arranja trabalho temporário como professor de literatura, numa cidade litorânea, e se apaixona por uma aluna. Na bela jovem ele vê representado o seu ideal de pureza. Seu escape se frustra, porém, quando vem à tona a verdade de cada um. A aluna, que disputa com um companheiro de jogatina, é filha da corrupção, com muito passado, pouco presente e nenhum futuro. A decisão desesperada de largar tudo para salvar-se do tédio esbarra no seu último vestígio de humanidade, quando se preocupa com o destino da amante. O tênue fio que os une se transforma no liame que o conduzirá à perdição. Zurlini, que tinha alma de poeta, sabia retratar personagens existencialmente vazias sem ser chato: o filme é puro encantamento. Pena que foi eclipsado por Visconti, Fellini, Antonioni e “tutti quanti”.
Este filme desfez duas crenças: que Hollywood não admitia experimentos, e que Tony Curtis era apenas um galã. Ele apresentou uma interpretação magistral, na pele de um assassino serial de mulheres, e a história agasalhou experimentações bastante ousadas. Até a metade do filme, vê-se, de um lado, uma sucessão de crimes brutais e, de outro, a investigação policial. Com base em premissa equivocada, são investigados indivíduos cujas condutas extravagantes são escancaradamente suspeitas. Mas o assassino, ao contrário, aparenta ser o homem mais equilibrado do mundo. Não se faz alusão à sua vida pregressa, nem se erige teoria sobre a motivação dos crimes. O objeto em questão é a alma do assassino, o qual concilia uma vida de pai de família afetuoso e trabalhador com uma carreira de crimes atrozes. Frequentemente a tela se divide em múltiplos quadros, para mostrar tanto a mesma cena de outro ângulo, ao estilo cubista, como cenas simultâneas em espaços diversos. E, no clímax, quando se expõe a fratura na alma do assassino, há um “close-up” de Tony Curtis que dura quatro minutos — um possível recorde do cinema mundial. Talvez o filme mais experimental de Hollywood nos anos 1960.
Aborda problemas da sociedade norte-americana no pós-guerra, tratando-os com a delicadeza de quem lida com cristais. Tudo se passa num microcosmo familiar. Gregory Peck é um veterano da Segunda Guerra Mundial em dificuldade para administrar a própria vida. Pai de três crianças, ele se desdobra para superar os traumas da guerra, tendo de lidar com a ambição da mulher, que o coage a ganhar mais dinheiro, e com as demandas do empregador, que tenta fazê-lo dedicar mais tempo ao trabalho. Se não evitar as armadilhas postas no seu caminho, ele terá o mesmo destino do chefe. Este, já divorciado, enfrenta problemas com a filha mimada, criada na abundância sem saber o real significado do dinheiro e as responsabilidades que a posse deste implica. Ressalta-se, ainda que de forma implícita, a questão da educação dos filhos do pós-guerra. Entregues a uma babá de estranhos valores, as crianças ficam expostas à influência direta da televisão e seus programas prenhes de violência. Seu abandono, simbolizado numa boneca “esquecida” sobre o corrimão da escada, paira como uma grande interrogação.
Randolph Scott é um xerife às voltas com facínoras em busca de vingança, por conta de seu trabalho na última cidade por que passou. Ele liquida um e surge outro ainda mais perigoso. A mulher, que o deixara na ocasião por não suportar o estresse da sua profissão, reaparece e vê que a situação não mudou. E ele, entre o dever e a mulher amada, fica com o dever. Para piorar as coisas, ele se fere em duelo e os malfeitores assaltam a cidade. A ordem só se restaura quando ele reassume a função e completa a tarefa. Os cidadãos compreendem, enfim, que a segurança é uma questão muito importante para ficar a cargo de um só homem, e o procuram para oferecer ajuda. E ele, concluindo que se tornou dispensável, demite-se e parte com a mulher para uma vida sossegada. A trama, como se vê, é parecidíssima com a do filme “Matar ou Morrer” (1952), com uma diferença fundamental. Lá, após mendigar ajuda em vão, o xerife enfrenta os bandidos sozinho e vira um poço de mágoas. Ao partir, atira a insígnia no chão, em sinal de desprezo pela cidade que lhe deu as costas. Aqui, ao contrário, o xerife age sem pedir ajuda e parte apaziguado com a cidade, agora defendida por seus cidadãos. Solução que é uma clara resposta aos valores amesquinhados de “Matar ou Morrer”.
Filme que expõe uma teoria sobre a melhor maneira de relacionar-se com a natureza, ilustrada pelo comportamento de três irmãos e modelada segundo a dialética, com tese, antítese e síntese. No final do século 19, no oeste dos Estados Unidos, uma família de colonos tem problemas com uma pantera que ataca seu gado. Como é inverno, a situação se complica por causa da neve. A pantera, representante alegórica da natureza, nunca é mostrada. Arthur é a expressão da tese: sensível, estabelece uma relação mística com a pantera, ao modo indígena. Curtis é a antítese: agressivo, vê nela um inimigo a ser combatido por todos os meios. Harold é a síntese: equilibrado, lida bem com os extremos e é o único bem-sucedido. Em interessante experimento com as cores, estabeleceu-se uma relação de oposição e similitude entre as personagens e a natureza. O caráter dos irmãos reflete-se nas cores de seus casacos. O de Arthur, de pele em preto e branco, confunde-se com os tons da natureza, desaparece nela. O de Curtis, vermelho vivo, agride-a. E o de Harold, em cores neutras harmoniosamente combinadas, sobressai sem agredi-la.
Mais que subestimado, este filme foi renegado em seu tempo pelo crítico Vinicius de Moraes, que escreveu um obituário artístico de John Ford, a quem tachou injustamente de “mumificado”. Na verdade, é um belo faroeste, o último da Trilogia da Cavalaria, formada com “Sangue de Herói” (1948) e “Legião Invencível” (1949). John Wayne comanda um forte em campanha contra os índios e enfrenta ao mesmo tempo uma guerra particular. Há 15 anos, durante a Guerra Civil, ele era oficial das tropas nortistas e cumpriu ordem de queimar a plantação da sulista Maureen O’Hara, sua mulher. Desde então não se falam. Agora têm uma reaproximação provocada pelo filho, que se alistou na cavalaria e foi designado para reforçar o efetivo do forte. O componente intimista abre espaço para a música, que assume um papel sem precedente na filmografia do diretor como lenitivo para as feridas da guerra. Ao final, após a cerimônia de condecorações, ouve-se “Dixie”, um hino sulista. É uma homenagem a Maureen, ordenada pelo general Sheridan, o homem que mandou queimar sua plantação. John Ford usa a guerra contra os índios como moldura para um painel minucioso sobre a vida dos cavalarianos na fronteira.
Numa noite chuvosa, os destinos de quatro personagens se cruzam: um vigarista matando cachorro a grito (Douglas Fairbanks Jr.), uma garota de programa (Rita Hayworth), um dramaturgo fracassado e um funcionário que cometeu desfalque decidido a se suicidar. Juntos, embarcam numa arriscada aventura para salvar o suicida. O dramaturgo bola um golpe contra uma gangue de mafiosos, em que todos terão um papel a desempenhar, como no teatro. O mais difícil é o do suicida, que precisa passar por milionário para ludibriar os gângsteres e aplicar o golpe. Ironicamente, ele é um amador enfrentando profissionais. No final, quando o tempo fecha, os pobres diabos superam a má índole e revelam sua face humana. A capa da velhacaria encobria anjos. Também roteirista, e um dos mais brilhantes de Hollywood, Ben Hecht deu ao dramaturgo falas memoráveis, que vão do mais agudo cinismo (“A dor de ontem é a piada de amanhã”) à mais desesperada declaração de amor (“O único lugar quente em que estive foi no seu coração”).
Todo mundo conhece o filme “Tarde Demais Para Esquecer” (1957), a segunda versão, mas de “Duas Vidas” ninguém jamais ouviu falar. No entanto, McCarey, o diretor de ambos, praticamente limitou-se a refilmar o roteiro deste, com alguns acréscimos e raras supressões. É a história de um casal que se conhece e se apaixona durante uma viagem de navio entre a França e os Estados Unidos. Para ter tempo de pôr suas vidas em ordem, combinam um encontro seis meses depois, no topo do Empire State Building, mas o encontro não acontece porque a moça sofre um acidente e fica paraplégica. McCarey sabia misturar humor e “pathos”, combinação difícil e raramente bem-sucedida como aqui. Quando Irene Dunne diz a Charles Boyer: “Se você pode pintar, eu posso andar”, a frase soa de fato como piada. E, ao invés de chorar, eles riem, tornando a cena ainda mais comovente. O filme tem um lado musical, sustentado por Irene Dunne, dona de bela voz. É ela quem diz uma frase muito repetidas décadas mais tarde: “As coisas de que mais gostamos são ilegais, imorais ou engordam”.
Feito antes do código Hays — código de censura adotado por Hollywood em 1934 —, o filme contém ousadias eróticas e diálogos incisivos que ainda surpreendem, além de narrar “visualmente” uma história complexa. As interpretações impressionam pela leveza, considerada a proximidade do cinema mudo, quando primavam pelo exagero. Greta Garbo é Mata Hari. Em Paris, durante a I Guerra Mundial, a exótica dançarina holandesa, de ascendência javanesa pelo lado materno, usa seus encantos a fim de espionar para os alemães e consegue enganar meio mundo. O par romântico de Garbo, Ramon Novarro, 3 cm mais baixo que ela, usou enchimento no sapato para parecer mais alto. Mas este era um problema insolúvel: os atores sempre ficavam pequenos diante daquele monumento de talento e beleza. De produção modesta — até onde isso era possível nos estúdios MGM e com a supervisão de Irving Thalberg —, o filme é um deleite, graças à competência do produtor-diretor Fitzmaurice. Embora fosse um mestre, ele nem recebeu crédito pela direção, ofício ainda pouco valorizado. Desde então o cinema não evoluiu tanto, mas a espionagem…