Quem não sofre com a crise das livrarias pode gostar de tudo, inclusive de sexo, mas não gosta de livros. O melhor amigo do homem, depois do cachorro e do gato, é o livro, portanto as livrarias
As livrarias são templos para crentes e ímpios. Adquirir livros pela internet é mais fácil, pois não é preciso sair de casa. Mas o frequentador de livrarias é um ser diferente. Eventualmente, até compra obras pelos sites, mas o que gosta mesmo é de andar pelos corredores das livrarias, olhando, folheando e lendo trechos de obras variadas. Busca, por vezes, o conhecido, aquilo que tem certeza que vai adquirir, mas, mexendo nas estantes, acaba descobrindo novidades. O prazeroso desconhecido. Compra, afinal, não apenas um ou dois livros, mas de seis a dez.
A visita às livrarias permite ao leitor o contato com o inusitado. Recentemente, estive na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo. Havia pensado em comprar apenas uma obra, “Livrarias — Uma História da Leitura e de Leitores” (Bazar do Tempo, 296 páginas, tradução de Silvia Massimini Felix), de Jorge Carrión. O livro menciona inclusive a bela livraria de Pedro Herz. Acabei por folhear uma biografia da excelente escritora escocesa Muriel Spark (1918-2006) — “Muriel Spark: The Biography” (Northwestern University Press, 627 páginas), de Martin Stannard —, que Paulo Francis ajudou a divulgar no Brasil, e uma biografia do escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009). Não levei, porque os preços são impraticáveis, mas depois me arrependi. Ao lembrar que estava lendo “Tantos Caminhos — Autobiografia” (Martins Fontes, 458 páginas, tradução de Hildegard Feist), de Paul Bowles, que adquiri em 13 de outubro de 2001 — há dezessete anos —, pensei: os livros sobre Muriel Spark e Mario Benedetti podem aguardar.
Enquanto esperava Candice Marques de Lima, minha companheira que participava de um seminário na USP, li cerca de 50 páginas de “Mario Benedetti: Un Mito Discretísimo — Biografía” (Alfaguara, 376 páginas), de Hortensia Campanella. Trata-se de uma edição em espanhol. O levantamento da vida do escritor é excelente. Tanto que não percebi, de imediato, que se tratava de um livro “usado” (não sei se lido). A Livraria Cultura estaria colocando livros usados em suas estantes? Não sei. Sugiro ao leitor, ao visitar a unidade da Avenida Paulista, que dê uma olhada. A edição que tive nas mãos é velhíssima, amarelada. Não é nova. Coisas da Estante Virtual? Não se sabe. Afinal, livros novos também, um dia, ficam velhos, amarelados, ressequidos, com aquele cheirinho que irrita as narinas.
Depois da Livraria Cultura, próxima do Mercure onde estava hospedado, visitei e “orei” na Livraria da Vila, na Alameda Lorena, e na Livraria Martins Fontes, na Avenida Paulista. Se a Livraria Cultura quase não tinha lançamentos (agora tem de pagar à vista para as editoras), optando por divulgar best sellers, as outras duas, que estão escapando da crise, são verdadeiros manás-oásis em termos de novidades — inclusive a edição especial do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. O livro completou 80 anos e reli cerca de 20 páginas, saboreando o cheiro da belíssima edição especial (a Record caprichou). Pode anotar: em termos de permanência literária, pensando mais em qualidade do que em sucesso, “Vidas Secas” continua sendo uma obra-prima poderosa. Parece ter nascido ontem, ou melhor, se disserem que completou 18 anos, e não 80 anos, quem há de duvidar? A prosa é vivíssima, as personagens são ricas, apesar da pobreza em termos materiais.
Folheando “Vidas Secas”, a edição comemorativa, pensei, fissurado por livros e, sobretudo, pela prosa de Graciliano Ramos: “Não há a menor dúvida de que a edição é fantástica, mas, pô, tenho duas edições, ambas devidamente anotadas, inclusive uma edição especial em capa dura. Por que levar mais uma?” Acabei não levando, porque estava com pouco dinheiro, mas senti comichões de Alexandria. Ao reler a prosa desenxabida de Graciliano Ramos — sabendo que desenxabida não é o mote justo para nomeá-la —, lembrei-me de um motorista da Uber, que, sergipano, mora em São Paulo há vários anos. Mas não perdeu a linguagem de seu Estado, de sua cidade. Ele disse a mim e a Candice que um xingamento forte no pequeno Estado do Nordeste é: “Ô seu filho de um cabrunco”. Olhei seu rosto e percebi que não parecia com Fabiano, e sim com Riobaldo.
Na Martins Fontes, descobri, na parte de cima da livraria, que havia uma promoção de livros. Promoção de verdade, parecendo aquelas de sábado na Livraria Bertrand (citada por Jorge Carrión como a mais antiga em funcionamento), a do Chiado, em Lisboa. Pensei: deveria comprar alguns livros e pagar com o cartão de crédito — afinal quem visita livrarias e não compra livros não sai de lá feliz; sai acabrunhado. Acabei adquirindo dois livros, por considerar que ia começar a ler “Jane Bowles — Un Pecadillo Original” (Circe, 413 páginas, tradução de Ángela Pérez), de Millicent Dillon. A autora menciona como amiga de Jane e Paul Bowles a cantora brasileira Elsie Houston, que morava nos Estados Unidos e havia sido casada com um poeta francês. Numa carta, Jane Bowles fala da farofa brasileira (página 79). Leio minha anotação: “17 de julho de 2014, quinta-feira, frio mas sem chuva, sebo da Avenida Corrientes, Buenos Aires”. Pois o livro foi adquirido há quatro anos e só agora está sendo lido. Por isso recomendei-me, contra minha vontade, que comprasse menos livros.
As livrarias são eternas como os diamantes
E se as livrarias acabarem? Felizmente, não acabarão. Ficarão menores, por certo, mas resistirão. A tendência é que as grandes lojas fechem suas portas e seus donos, adiante, abram livrarias menores. Em Goiânia, no Setor Universitário, há uma livraria pequena, mas de excelente qualidade — a Palavrear. O acervo, embora nada amplo, é ótimo. Porque prima-se pela qualidade, não pela quantidade. Encontrei inclusive boas edições de livros publicados em Portugal. Recomendo apenas um espaço mais adequado para poesia, por exemplo, com as ótimas traduções da Editora Iluminuras.
O que acontecerá com a Livraria Saraiva e com a Livraria Cultura? A minha torcida é para que resistam. Os apaixonados por livros preferem a Livraria Cultura, a Livraria da Vila, a Livraria Travessa (no Rio de Janeiro) e, pelo acervo diversificado, a Livraria Martins Fontes. A Livraria Saraiva aposta muito em best sellers, até para tentar sobreviver, mas não é ruim. Pelo contrário, é uma boa livraria. O atendimento nunca foi perfeito, nenhuma livraria tem mais atendimento de alta qualidade — salários baixos e rotatividade impedem a qualificação. Mas o que importa mesmo é o acervo e, no geral, o da Livraria Saraiva nunca foi ruim, embora não seja como o das outras livrarias arroladas.
Por que as grandes livrarias estão em crise no Brasil (nos Estados Unidos também)? Porque o capitalismo “diz” ao empresário: “Você precisa crescer”. Para expandir os negócios, é necessário pegar dinheiro nos bancos e, depois de certo prazo de carência, é obrigatório começar a pagar as parcelas dos empréstimos. Pode-se falar que, no capitalismo, há uma espécie de “armadilha do crescimento”. Uma vez enredado, no abraço da sucuri, não há escapatória. As sedes gigantes, instaladas em shoppings nos quais os preços dos alugueis são estratosféricos e que exigem mão de obra farta, estão com as finanças em frangalhos. Com a recuperação judicial, as livrarias não têm de pagar seus credores — momentaneamente —, sejam editoras, sejam bancos, sejam donos de imóveis.
Os brasileiros estão lendo mais, tanto que editoras portuguesas estão interessadas no mercado do país de Machado de Assis. O Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes, enquanto Portugal tem pouco mais de 10 milhões.
Uma livraria que deve 674 milhões de reais, caso da Livraria Saraiva, tem como escapar da falência? Talvez sim. Talvez não. Minha aposta é pelo “sim”, mas a razão sugere que a chance de prevalecer o “não” é muito maior. Se rolando a dívida com a barriga, pagando juros, quando era possível, não estava dando para tocar o negócio de maneira qualitativa — tanto que a dívida chegou a mais de meio bilhão de reais —, como, em recuperação judicial, vai escapar da crise? Com o processo judicializado, fica mais fácil negociar com os credores, que têm de aceitar determinadas regras (não podem pedir bloqueio de contas, por exemplo). Entretanto, como a Livraria Saraiva fará para ter acesso a novos produtos? Basta uma visita à Livraria Saraiva para verificar que praticamente não há lançamentos. A falência não é positiva para ninguém, notadamente para as editoras. A livraria deve R$ 18.638.315,67 para a Editora Companhia das Letras e R$ 18.241.167,49 para a Editora Record. Impagável, praticamente. Bancos sabem contabilizar à perfeição suas perdas (se brincar, viram lucros).
A Livraria Cultura deve menos — 285 milhões de reais. Mesmo assim, é um valor muito alto. Dificilmente terá condições de pagar a dívida e, aparentemente, a família não tem patrimônio suficiente para usá-lo para abatê-la.
Falência à vista? Não é o que espero. Mas o setor livreiro, o que se agigantou, dificilmente terá escapatória se não mudar o modelo de negócio — tornando-se menor e escapando do gigantismo dos shoppings. As livrarias decerto continuarão, ainda que menores, e com a expansão do negócio pela internet — seguindo o trabalho bem-sucedido tanto da Livraria Cultura quanto da Amazon.
Mas diga, leitor: quem não sofre com a crise das livrarias pode gostar de tudo, inclusive de sexo, mas não gosta de livros. O melhor amigo do homem, depois do cachorro e do gato, é o livro, portanto as livrarias.
Fotografia da capa: Publish News