Um dia como outro qualquer no país com a maior concentração de hipócritas por metro quadrado

Um dia como outro qualquer no país com a maior concentração de hipócritas por metro quadrado

— Se tem uma coisa que me mata de raiva são esses velhos decrépitos em fila de lotérica — fez o comentário para o boy que estava atrás dele segurando no sovaco uma pilha de duplicatas, mas, ele nada respondeu. Não entrava na sua cabeça o fato de a legislação vigente garantir um guichê exclusivo para o atendimento aos idosos, sendo que eles tinham todo o tempo do mundo para sentar e esperar a sua vez, pois estavam aposentados e a um passo de se lascarem e partirem para “a grande travessia”.

— Grande bosta — grunhiu. Gente como ele era diferente. Gente como ele ainda estava na lida cotidiana, na correria agonizante para garantir um trampo, colocar comida na mesa da família e sobreviver a uma profunda crise econômica que já durava tempo suficiente para que se odiassem negros, velhos, bichas, professores, ambientalistas, gestantes, comunistas, mulheres com crianças de colo, meninos de rua, malabaristas de semáforo, escritores medíocres, pais de família e portadores de necessidades especiais, os quais ele insistia em tratar pela alcunha aleijados.

Para o momento, sentia a necessidade especial e premente de possuir uma amante, uma Jacuzzi e um pau-de-fogo para fuzilar toda aquela gente que estava à sua frente na fila, exceto, uma branquela suculenta ao extremo que tinha saltado de uma Land Rover trajando um short tamanho PQP e uma tornozeleira eletrônica customizada na canelinha-de-louça, o melhor rabo de todos os tempos, em cujo dorso ia tatuada em letras cursivas-garrafais a seguinte frase “Mantenha distância, seu maldito”. Benzeu-se. Apreendeu a gravidade da expressão, mesmo assim, sentiu uma forte atração pela potranca, tendo uma ereção robusta que o forçou a deslocar a tromba dentro da cueca, como se fora um maço de dólares.

— Se eu fosse político, roubava também. A gente paga um monte de impostos pra esse governo miserável que não faz nada por nós — Estava um dia tórrido, abafado e todos pareciam impacientes demais para lhe dar ouvidos. A maior preocupação para a maioria dos apostadores ali (negros, velhos, bichas, professores, ambientalistas, gestantes, comunistas, mulheres com crianças de colo, meninos de rua, malabaristas de semáforo, escritores medíocres, pais de família e aleijados) era concluir logo o jogo, sair daquele forno para humanos, ficar milionário e mudar de país.

— O que um velhote espera fazer se ficar rico? Comprar a fonte da juventude? — fez uma piada, mas, ninguém riu. Contava 30 anos de idade e trabalhava como soprador de fumaça numa empresa de fabricação de chifres. Morava de favor no lote da sogra, barraco número 2, puxadinho-nos-fundos, a qual odiava com todas as forças. Tinha que se virar com um salário irrisório, mais os recursos de uma bolsa governamental que a esposa recebia indevidamente todo dia 30. Fraudavam a previdência social com a ajuda de um sujeito que trabalhava no Instituto da Seguridade, o qual cobrava comissão mensal de 30% sobre o valor do benefício. Nada mal. Longe de ser maléfica, parecia uma combinação justa. Injusto mesmo era ter que deixar 10% de tudo o que ganhava para a igreja. Os pastores tinham perdido a noção. Tava mais barato comprar acres no céu do que na Terra.

Rodava feito louco numa moto em estado geral tetânico, cujo chassi fora adulterado gratuitamente pelo satânico vizinho do bloco A, um mecânico aposentado, o mesmo cara que tinha feito o favor de puxar um gato da rede elétrica e da TV a cabo. Devia levantar as mãos para o alto e agradecer. Não, não era um assalto. Pessoas bacanas como o vizinho do bloco A eram uma raridade hoje em dia. A próxima meta era meter numa cunhada recém-chegada do Maranhão que tinha sido mãe aos 12. Sentia especial atração por adolescentes, principalmente, pelas parentes da esposa. Planejava arrematar um smartphone seminovo, sem nota, destravado por um hacker experiente, para presentear a enteada que completaria 15 anos em breve. Se tudo corresse bem, não demorava muito, dobrava a moça e lhe passava a pica. Valia o investimento de tempo e dinheiro.

Por falar em grana, a fila da lotérica não parava de crescer. Todos pareciam exaustos da vida. O calor cozinhava testículos e miolos. A agonia era grande. De repente, uma motoca com dois ocupantes estaciona sobre a calçada. Até aí, em matéria de falta de cidadania, nada de mais. Todos os cidadãos já estavam acostumados uns com a falta-de-modos dos outros. O garupa, que vestia uma camiseta com a cara risonha do Presidente Mojo Filter fazendo pose de pistoleiro com os dedinhos das mãos, saltou para dentro da lotérica com um trabuco enorme anunciando o assalto.

A fila se desfez que nem urubu da carniça. Não deu tempo pra eu contabilizar bem ao certo, mas, cerca de oito pessoas sacaram simultaneamente as armas da cintura e, inspirados por um clamor coletivo de justiça-com-as-próprias-mãos, fuzilaram o camarada ali mesmo dentro do estabelecimento. O comparsa que estava na moto tentou fugir, mas, foi alvejado por um pipoco certeiro na cabeça que levantou os aplausos da turba.

Naqueles dias, a ordem era atirar para matar. E Deus, acima de tudo e de todos, só observando a lambança que fez.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.