A overdose de notícias, opiniões e depravações decorrentes da campanha eleitoral em curso faz o cidadão ter saudade do tempo em que os jornais faziam uma cobertura digna da vida cultural brasileira. Época em que opiniões sensatas (ou não) sobre livros, filmes, peças e shows tinham espaços garantidos na chamada “mídia”. Hoje, o colunismo cultural, por exemplo, está extinto. Seu último grande representante no Brasil foi o jornalista Telmo Martino, que nos deixou em setembro de 2013. Paulo Francis e Nelson Rodrigues tangenciaram esta arena, mas suas preocupações maiores eram, essencialmente, políticas e sociológicas. Apesar de bastante útil em tempos de crises políticas e divisões ideológicas acirradas, como os que vivemos, Telmo não teria espaço na chamada grande mídia de hoje, mais pasteurizada do que iogurte e mais politizada do que centro acadêmico dominado pelo PCdoB. Se vivo fosse, talvez Telmo tascasse em Bolsonaro o carimbo de “recruta Zero” e em Haddad o de “professor Pardal” da política brasileira. Quem sabe? A seguir, uma mostra singela daquilo que Telmo Martino aprontava com ferocidade, elegância e regularidade.
Como se faz uma serpente
Nos bons tempos, ele era chamado de “a velha senhora” pelos muitos desafetos. Até os seus últimos anos de atividade, já afastado dos refletores e da vida social, o jornalista e cronista Telmo Martino não perdia a chance de exercer a sua arte de alfinetar. Na apresentação da festa de entrega do Oscar em 2004, recomendou ao crítico de cinema Rubens Ewald Filho que “renovasse o visual facial para evitar ser confundido com o personagem Zé do Caixão” (do ator José Mojica Marins).
Os bons tempos foram os anos entre 1971 e 1986, quando a sua famosa e enorme coluna saía sem falta às terças, quintas e sábados no paulistano “Jornal da Tarde”. Fazer sensação era com ele. Reproduziu certa ocasião o que dissera ter ouvido (mentira, era invenção sua!) num show de Caetano Veloso, vindo de madames chiques na plateia a fazer comparações exóticas entre a cultura francesa e a baiana: “Ele é o Mallarmé do afoxé! O Cocteau do agogô! O Rimbaud do bongô!”
A exemplo do jornalista e escritor americano H. L. Mencken, de quem era admirador, não costumava pegar leve com quase ninguém, mas tinha lá as suas exceções: Nelson Rodrigues, Beatriz Segall, Rita Lee, Tom Jobim, Costanza Pascolato, Ivan Lessa e Millôr Fernandes. De acordo com o jornalista Ruy Castro, que conhecia bem quase todos os citados, estes eram “bonitos, chiques, finos, criativos e bem-sucedidos”. O resto da humanidade, principalmente os artistas medíocres, os alpinistas sociais e as celebridades momentâneas, Martino classificava de “jecas, feios e fracassados”, e a eles destinava cobras, lacraus e aracnídeos de todos os gêneros. Quanto mais peçonhentas as suas tiradas, melhores, como na frase que ficou famosa: “Cecília Meireles é uma poetisa à prova de Fagner”. O cearense, no disco “Canteiros” (1973), musicara o poema “Marcha” sem o devido crédito à poetisa carioca, distração retificada anos depois na Justiça; o danado é que, posteriormente, reincidiu no erro de musicar e gravar outros poemas da coitada que, já morta, não podia se defender à altura de tais investidas. Foram os casos de “Epigrama nº 9” e “Motivo”, lançados com os devidos créditos, mas de resultados no mínimo duvidosos e, no máximo, desastrosos.
Outra influência marcante na formação intelectual da “serpente” foi o escritor, músico, diretor e comediante britânico Noël Coward, o mestre da comédia sofisticada, dita wit, entre os anos 1920 e 1940 (“The Vortex”, “Blithe Spirit”, “Private Lives” e muitas outras). Em crônica na “Folha de S. Paulo”, Ruy Castro contou como conheceu Martino em 1968 na redação da prestigiada revista “Diners”, editada por Paulo Francis: “Telmo acabara de voltar de Londres, da BBC — suas roupas ainda recendiam a Savile Row. (…) Telmo era uma escola. Sabia de cor as letras das canções americanas, citava diálogos inteiros de romances, filmes e peças, e tinha uma frase fatal e hilariante sobre tudo e todos, inclusive amigos — por uma delas, Francis deixou de falar com ele por dez anos”.
De lá foi para o “Última Hora” e em seguida para o “Correio da Manhã”, onde trabalhou e fez parceria com Daniel Más, outra cascavel, na polêmica página “Balaio”, onde os repórteres tinham liberdade para publicar o que quisessem, o que obviamente iria criar (e criou!) problemas. O passo seguinte foi o “Jornal da Tarde”, no início dos anos 1970, onde as suas colunas deram espetacular sequência à montagem do mito formado em torno de suas frases mordazes. Nascido no Rio de Janeiro, Telmo estudou num colégio francês e dominava a língua desde a infância, apesar da preferência explícita pela cultura e literatura inglesas. Formou-se em Direito e Jornalismo na USP, morou uns meses em Paris e depois cinco anos em Londres. Na volta à província paulistana, encontrou o terreno propício às suas imagens e comparações sofisticadas, com lastro tanto na cultura clássica quanto na popular, e inteligentes o bastante para serem reconhecidas, a contragosto, claro, até pelos seus incontáveis inimigos.
Suas definições para algumas conhecidas turminhas (patotinhas, na época) da vida paulistana se tornariam clássicas: “poncho e conga” para os gatos-pingados trotskistas; “barba e bolsa” para a multidão de stalinistas; “Scala e escarola” para os riquinhos da colônia italiana assíduos dos eventos de música erudita; “quibe e quilate” para os milionários de origem síria e libanesa; “Fendi e funghi” para os descendentes endinheirados de italianos que lotavam os restaurantes com os preços mais extorsivos de São Paulo; “tempura e mesura” para a roda de intelectuais inteligentinhos reunida em torno de Tomie Ohtake; e “kosher-kibutz” para a comunidade judaica ampla e endinheirada.
Certa vez, Martino ofereceu o seguinte conselho aos contistas mineiros, famosos nacionalmente pela prolixidade desde o início dos anos 1970: “E basta também que os contistas mineiros jurem que só escreverão um próximo conto depois de terem escrito um romance policial. Todos cumprindo a obrigação de muitos personagens bem caracterizados, muitas voltas no enredo e a espantosa surpresa final”.
Luiz Carlos Merten, crítico de cinema de “O Estado de S. Paulo”, conta uma história saborosa que envolveu a “serpente” e a atriz Miriam Mehler: “Por ocasião de uma remontagem de ‘Bonitinha, mas Ordinária’, da qual ela foi excluída, ele dizia que a dúvida da atriz era saber se tinha sido excluída por não ser mais bonitinha ou por não ser mais ordinária. No quesito bonitinha, ele insistia que ela podia ficar tranquila porque a substituta não era nenhuma belezinha”.
No fim da carreira, ainda destilou suas doses poderosas de veneno por algum tempo na revista “Vogue” e no site “Babado”. Era a época de popularização da internet e obviamente a sua belle époque já tinha passado. Sobre ela, Ignácio de Loyola Brandão escreveu em 2004: “O ‘Jornal da Tarde’ era dos mais lidos de São Paulo. Design descolado, uma equipe brilhante. Somente ele poderia abrigar Telmo e sua artilharia. Vi gente chorando por causa de uma nota. Vi gente querendo sair do ‘Gigetto’ — o restaurante da classe teatral — de arma na mão. Vi maridos, namorados, amantes, diretores, atores, escritores, pintores e políticos furiosos querendo bater, processar, linchar. Vi mesas rancorosas, se movimentando para protestar junto aos Mesquitas, do ‘Estadão’. Se Telmo entrasse num momento daqueles, seria trinchado como peru de Natal”.
Nos anos 1980, sofreu um AVC. Ainda manteve uma coluna semanal sobre televisão na “Folha de S. Paulo” entre 1998 e 2000, quando voltou para o Rio de Janeiro. Em 2004 a editora Planeta lançou “Serpente Encantadora” (com capa primorosa do cartunista e velho amigo Jaguar), uma seleta de seus textos do “Jornal da Tarde” feita por Sérgio D’Ávila. Já emitia sinais de que em breve sairia de cena. Segundo as palavras do velho amigo Loyola Brandão, “ele tornou-se um personagem, virou cult”.
Telmo Martino morreu em setembro de 2013, aos 82 anos, de complicações decorrentes de uma pneumonia. Levou com ele um estilo inconfundível e inimitável, o da crônica sem censura, sem “ordens superiores”, sem politicamente correto, sem ridículos engajamentos partidários ou ideológicos, e cujo humor ferino era um componente indissociável da mesma. Ele registrou um tempo já soterrado pela estupidez e padronização modernas, um tempo em que a cultura, as artes plásticas, a música, a literatura, o cinema, o teatro e a publicidade, além dos ricos e famosos, tinham nele um observador rigoroso, culto, bem-informado e disposto a criticar sem piedade quando o comentário, a nota, a blague ou a boutade inteligente se justificassem. Ficará para sempre como um corajoso desafiador de tabus jornalísticos, panelinhas culturais, artistas egocêntricos e novos ricos da mídia cultural.
Não deixou imitadores ou seguidores, dado o estágio avassalador de pasteurização e das toneladas de abobrinhas fabricadas a cada dia por 95% da mídia cultural “da hora”, a mesma que incensa nulidades, inventa gênios-instantâneos que voltarão ao anonimato dentro de um ano, a mesma que não pesquisa, não procura saber, não se mexe, não investiga ou aprofunda, inclusive porque é na superfície que o seu público nada. Se descer um palmo na piscina, ele se afoga.
Para concluir, uma amostra do estilo inigualável, inimitável e inesquecível de Telmo Martino, de suas frases curtas e certeiras que nos dias atuais provocariam a revolta e o esperneio de muito jornalista e intelectual que adora surfar na onda da esperteza.
A opinião da Telmo Martino sobre…
João Gilberto — É o único brasileiro que aprendeu inglês com Tarzan.
Maria Bethânia — A selvagem da estiagem. A esfinge da laringe.
O meio teatral paulistano — É bom saber qual o restaurante da cidade que os atores de teatro preferem. É saber e evitar. Ator de teatro sempre prefere o pior.
Lula — Lula, o metalúrgico, dá sempre a impressão de que acabou de inventar a revolução industrial.
Betty Milan — A La Goulue do Lacan-can-can.
José Simão — Ele é divertido, mas é jornalista de uma piada só. Mudam os personagens, mas a piada dele é sempre a mesma.
Elba Ramalho — A frajola do flagelo.
O fotógrafo Luis Tripoli — O pivete do tripé, que dá sempre a impressão de que acaba de inventar o motel.
Patrício Bisso — Uma mistura de Betty Boop, Bette Davis, Betty Grable, Betty Ford e Lady Macbeth.
Otto Lara Resende — O contista mineiro com mais ouvintes do que leitores.
Tetê Espíndola — A sirene do apocalipse.
Fernando Henrique Cardoso — O debutante da demagogia. O parvenu do palanque. O pop do populismo.
A revista Nova — Deve estar cansada de ser identificada como o Kama Sutra das estenodatilógrafas.
Roberto Carlos — O frequentador mais assíduo do hit-parade dos motéis.
Elifas Andreatto — O aerógrafo dos oprimidos.
Aracy Balabanian — A primeira atriz da Lassie School of Acting.
Antonio Fagundes — A maior estrela da Cro-Magnon School of Acting.
Othon Bastos — O ator que poderia ter sido Johnny Carson, mas preferiu ser Ferreira Neto.
O programa na tevê de Amaury Jr. — Mas ninguém é mais alarmante entre as auxiliares do Amaury Jr. do que a Socorro Leite. Com esse nome de solução para uma estiagem no berçário, ela é uma paranormal. Amaury diz se sentir energizado por ela.
O título do livro Paulo Francis Nu e Cru (Editora Codecri) — Paulo Francis nu e cru? Nu, ninguém quer comer. Cru, muito menos.