Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Martin Amis e Michel Onfray são alguns dos autores criticados por John Gray
Sou ateu. Ateu católico. Porque, embora ímpio, delicio-me com música de igreja (desde que de qualidade) e com os sermões (Antônio Vieira, afinal, era padre) — em geral, um mix do secular, a moralidade dos homens, com o religioso, a espetacularização de Deus, mas também o mistério da vida e da, digamos, alma. Agrada-me a pregação de um mundo melhor, por meio da paz, da harmonia (talvez impossível) entre os homens, contra a violência pregada pelos herdeiros do Iluminismo. Por isso sou contrário ao ateísmo militante, contra a pregação de que é possível mudar a “natureza” dos homens pela força, pela planificação, pela ciência. Como escreveu o bardo britânico, há mais entre o Céu e a Terra do que imagina a nossa vã filosofia. A religião, o místico, permite-nos navegar pelo incognoscível. As religiões seculares, como o marxismo, não têm dúvidas — só certezas. Em nome do “certo” (o paraíso) fizeram o errado: mataram milhões de seres humanos. Ióssif Stálin mandou assassinar cerca de 30 milhões. Mao Tsé-tung teria mandado matar 70 milhões. Historiadores dizem que a estatística pode estar subestimada. Hitler matou milhões — só judeus foram 6 milhões. O ateísmo está na moda, especialmente por conta de um vulgarizador científico, o zoólogo inglês Richard Dawkins, com o livro “Deus — Um Delírio”, e de um vulgarizador popular, o jornalista inglês Christopher Hitchens, que morreu em 2011, com a obra “Deus Não É Grande”. Ultimamente, a demonização dos religiosos e da religião tem sido criticada, em geral de forma satírica, sobretudo nas entrevistas, pelo filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton. Antes dele, o filósofo britânico John Gray, talvez com mais precisão, mas sem perder o matiz sardônico dos ingleses, examinou as ideias de Dawkins, Hitchens (ex-trotskista), Daniel Dennet, Martin Amis, Michel Onfray e Philip Pullman (“A Bússola de Ouro”). O livro “Anatomia de John Gray — Melhores Ensaios” (Record, 515 páginas, tradução de José Gradel) contém um de seus melhores textos, “Ateísmo evangélico, cristianismo secular” (até o título é expressivo).
Deus está na moda — como saco de pancada dos intelectuais herdeiros do Iluminismo, não necessariamente socialistas ou comunistas. Gray não faz exatamente a defesa da religião, e sim uma crítica corrosiva dos “ateus-religiosos”, de como, ao trocarem Deus pelo homem e pela ciência, se tornaram porta-vozes de tiranias jamais vistas na história das sociedades. O filósofo registra que os ímpios devem mais à religião do que pensam. “A era secular foi ilusória. Os movimentos políticos de massa do século 20 foram veículos de mitos herdados da religião, e não é por acidente que a religião revive agora que esses movimentos [socialismo, nazismo] entraram em colapso. A atual hostilidade à religião é uma reação contra essa reviravolta. A secularização está em retirada, e o resultado é a aparição de um tipo evangélico de ateísmo, que não se via desde os tempos vitorianos.”
O proselitismo do ateísmo, aponta Gray, “é um projeto de conversão universal”. No pedestal de Dennet e aliados, religião é atraso, e a ciência, deusa. “A ciência é a melhor ferramenta para formar crenças confiáveis sobre o mundo, mas não difere da religião ao revelar uma verdade crua que a religião vela em sonhos”, diz Gray. “Dawkins parece convencido de que, se não fosse inculcada nas escolas e pelas famílias, a religião desapareceria. Essa é uma perspectiva que tem mais em comum com certo de tipo de teologia fundamentalista do que com a teoria darwiniana.” No caso brasileiro, não analisado por Gray, é um pouco diferente. Porque a religião inculcada na cabeça dos alunos é a marxista — daí que os estudantes são marxistas mesmo quando não sabem. Dawkins aponta as atrocidades cometidas por movimentos religiosos, mas, ressalva Gray, “dá menos atenção ao fato de que algumas das piores atrocidades dos tempos modernos foram cometidas por regimes que reivindicavam sanção científica para seus crimes. O ‘racismo científico’ dos nazistas e o ‘materialismo dialético’ dos soviéticos reduziram a insondável complexidade das vidas humanas à mortífera simplicidade de uma fórmula científica”.
Ao examinar as ideias de Dawkins, Gray nota que “a constituição secular dos Estados Unidos não assegurou uma política secular. O fundamentalismo cristão é mais poderoso nos Estados Unidos do que em qualquer outro país e exerce muito pouca influência na Inglaterra, que tem uma Igreja oficial. (…) Dawkins quer eliminar todos os traços de religião das instituições públicas. Desastrosamente, muito dos conceitos que emprega — inclusive a própria ideia de religião — foram modelados pelo monoteísmo. Subjacente ao fundamentalismo secular está uma concepção da história que deriva da religião”.
Os filhos do Iluminismo (e do positivismo), como os comunistas, acreditam numa visão progressiva da história. Aconteça o que acontecer, a história segue em frente, rumo a melhores dias, noutras palavras ao socialismo, ao comunismo, ou, para os capitalistas, ao fim da história, à vitória final do liberalismo (a balela de Francis Fukuyama), do mercado. Gray, ao contrário, não percebe a história de modo linear, sempre seguindo adiante, sem recuos. Ele prefere a ideia de uma história circular. “A crença de que a história é um processo direcionado é tão baseada na fé como qualquer outra coisa do catecismo cristão. (…) A história era vista [na Europa pré-cristã] como trágica ou cômica, mais do que como redentora. Com o advento do cristianismo, chegou-se a acreditar que a história tinha um objetivo predeterminado: a salvação humana. Apesar de terem suprimido seu conteúdo religioso, os humanistas seculares continuam a agarrar-se a crenças similares. (…) A história de progresso na história é um mito criado pela necessidade de ver significado nas coisas. O problema da narrativa secular não é sua convicção de que o progresso é inevitável (em muitas versões, ele não é), mas antes a crença de que o avanço alcançado pela ciência pode ser reproduzido na ética e na política. (…) O conhecimento cresce, mas os seres humanos continuam os mesmos. A crença no progresso é uma relíquia da concepção cristã da história como narrativa universal”.
Os críticos modernos da religião conectaram ateísmo e ideário liberal. Gray afirma que, embora tenha feito a crítica do cristianismo, Nietzsche não é o inspirador de Dawkins e “seguidores”. “Nietzsche não assumiu qualquer conexão entre ateísmo e valores liberais.” O filósofo alemão “considerou os valores liberais como uma cria do cristianismo e os condenou em parte por isso”.
Dos polemistas ímpios, Gray tem mais consideração pelo francês Michel Onfray (o tradutor grafa, uma vez, “Michael”). “Onfray reconhece que o ateísmo evangélico é uma imitação sem graça da religião tradicional: ‘Muitos militares da causa secular se parecem admiravelmente com o clero. Pior: com caricaturas do clero’. (…) Onfray compreende a influência formadora da religião sobre o pensamento secular” mas “parece não notar que valores liberais que admite como corretos foram parcialmente modelados pelo cristianismo e pelo judaísmo”.
Gray insiste num ponto ignorado olimpicamente pelo “clero secular”: “A maior parte da violência baseada em fé do século passado era secular em sua natureza”. Em seguida, diz algo heterodoxo: “Os islâmicos devem tanto, se não mais, à extrema esquerda, e seria mais exato descrever muito deles como islamo-leninistas”.
Ao examinar o “pensamento” de Hitchens, Gray nota que o jornalista, defensor da intervenção americana no Iraque, não quer perceber que os Estados Unidos instalaram no país “uma teocracia islâmica eletiva, na qual mulheres, homossexuais e minorias religiosas estão mais oprimidos do que em qualquer outra época da história do Iraque. A ideia de que o Iraque pudesse se tornar uma democracia secular — que Hitchens promoveu ardentemente — era possível apenas como um ato de fé”.
O escritor Martin Amis, autor de “O Segundo Plano” e alinhado com a estirpe “neocon”, também é criticado por Gray. “Os intelectuais, cuja loucura Amis disseca, voltaram-se para o comunismo, de algum modo, como um substituto para a religião e terminaram criando desculpas para Stálin. Será que não existem loucuras comparáveis hoje em dia? Alguns neoconservadores — como Tony Blair (…) — combinam seu progressismo beligerante com um tipo de crença religiosa que Santo Agostinho e Pascal poderiam achar difícil de reconhecer. A maior parte deles é de utópicos seculares que justificam a guerra preventiva e desculpam a tortura porque ambas levam a um futuro radiante, no qual a democracia será adotada universalmente. (…) A religião não foi embora. Reprimi-la é como reprimir o sexo, uma empresa destinada ao fracasso.”
Ao criticar os ateus militantes, que criaram uma nova religião, Gray não sugere a defesa da religião. “Nem tudo na religião é precioso ou merecedor de reverência. Existe uma herança de antropocentrismo, a feia fantasia de que a Terra existe para servir os seres humanos, que a maioria dos humanistas seculares compartilha. Há a pretensão das autoridades religiosas, também enunciada por regimes ateus, de decidir como as pessoas podem expressar sua sexualidade, controlar sua fertilidade e terminar suas vidas, que deve ser rejeitada categoricamente. A ninguém deveria ser permitido restringir a liberdade dessa maneira, e nenhuma religião tem o direito de romper a paz.”
Aos ímpios radicais, que movem uma cruzada antirreligiosa, Gray aconselha: “A tentativa de erradicar a religião somente leva à sua reaparição sob formas grotescas e degradadas. A crença crédula na revolução mundial, na democracia universal ou nos ocultos poderes dos celulares é mais ofensiva à razão do que os mistérios da religião, e tem menos probabilidades de sobreviver nos anos que virão”.
Afinal, Gray exagera nas suas críticas aos ateus intelectuais, ou novos religiosos? Pode ser. Noutro ensaio, o filósofo sugere que a tolerância é fundamental. Ele está sugerindo isto: mais tolerância — tanto da parte dos ímpios militantes quanto dos religiosos radicais. O ensaio de Gray é de 2008 e não li as possíveis réplicas. É possível que tenham dito que é um teólogo disfarçado de filósofo.