António Lobo Antunes é apontado como o maior escritor vivo de Portugal. É uma espécie de Samuel Beckett do país. Escritor de uma prosa por vezes difícil, que exige uma leitura tão atenta quão paciente, sua língua, quando fala de outros autores, é quase sempre corrosiva. Ele acaba de lançar, em Portugal, o romance “A Última Porta Antes da Noite” (Dom Quixote, 456 páginas). Entregou outro romance, “A Outra Margem do Mar”, à editora. Numa entrevista polêmica ao jornalista João Céu e Silva, do jornal “Diário de Notícias”, soltou os cachorros literários, mas, desta vez, também elogiou colegas de ofício. O título é: “António Lobo Antunes: ‘Quero que o Nobel se f*da”. Ele praticamente exigiu que a palavra “f*da” fosse transcrita. O jornal português a colocou no título — trocando a vogal “o” por um asterisco, o que, no lugar de disfarçar, chama a atenção para a palavra “foda-se”. A repercussão foi imediata na Europa, notadamente nos países de Gonçalo Tavares e Javier Marías.
O entrevistador, segundo o entrevistado, quase não falou, exceto ao perguntar sobre o Prêmio Nobel de Literatura. É uma das primeiras entrevistas-monólogos da história. Lobo Antunes, que fala por uma alcateia, ataca acima da linha de cintura: “Estou farto de ouvir falar do Nobel, é apenas um prêmio literário em que as últimas pessoas que o têm ganho não me agradam. Os vencedores dos últimos anos não interessam. Estou tão ocupado a escrever”. O autor de “Memória de Elefante” diz que ser incluído na Biblioteca Plêiade agradou-o mais do que se tivesse ganhado o Nobel de Literatura. Depois de citar o escritor americano William Faulkner — “descobri que escrever faz-nos erguer sobre as patas de trás e projetarmos uma enorme sombra” —, o autor de “Os Cus de Judas” (o título não é bem o que parece, leitor) retoma o ataque: “Não me venham falar em Nóbeis, que o Nobel se foda — ponha assim mesmo —, ou na grandeza de uma obra de tantos grandes escritores no mundo depois de [Lev] Tolstói”.
Charles Dickens e Antero de Quental
O Fla-Flu literário de Portugal envolve José Saramago versus Lobo Antunes. Este, a quem não agrada o “confronto”, bate abaixo da linha de cintura: “Saramago é uma merda… Se me quiserem comparar com alguém ponham lá o Antero [de Quental], o [Alexandre] Herculano, ponham assim um escritor. Porque não falam dos dois romances que o Almada [Negreiros] deixou?” Saramago não me agrada como escritor, mas claro que não é uma merda. A crítica de Lobo Antunes é uma, digamos, boutade, ou melhor, a posição de um escritor que escreve muito diferente de outro e não o aceita. Idiossincrasia? Sim, mas todos temos o direito de tê-las. Há os que assumem e os que não assumem que as têm. Lobo Antunes ao menos diz o que pensa.
Lobo Antunes revela que só vai publicar mais três romances e, depois, vai se dedicar à poesia, embora não se julgue um bardo de qualidade. Sobre “A Última Porta Antes da Noite”, o escritor assinala: “Estava cheio de hesitações a cada revisão e só larguei o livro quando ele já não queria que lhe tocasse”.
Ao mencionar escritores portugueses que aprecia, Lobo Antunes é econômico: “Nos prosadores que eu gosto começava por Fernão Lopes, o grande escritor, D. Duarte e Fernão Mendes Pinto. Depois passava para os séculos 17 e 18, com D. Francisco Manoel de Melo e Matias Aires. A prosa do Antero [de Quental] é maravilhosa, vem como a do grande Herculano, que quase não tem ‘ques’, o que é muito difícil de evitar. Temos sobretudo grandes poetas, e é nisso que mais penso em termos de literatura portuguesa”. Mas não cita os poetas, como Fernando Pessoa, José Régio, Mário de Sá Carneiro e Heberto Helder. Nenhuma vez. Adiante, afirma apreciar os escritores Agustina Bessa-Luís, portuguesa, Juan Marsé, espanhol, e Claudio Magris, italiano. Sublinha que gosta “muito” do autor de “Danúbio”.
“Livros de que gosto muito e considero bons: ‘Décadas’, do João de Barros, [padre António] Vieira, uma prosa magnífica, embora um pouco repetitiva, ou [Almeida] Garret, outro magnífico… Não estamos mal servidos”, afiança Lobo Antunes.
Portugal não fala de Charles Dickens, segundo Lobo Antunes. Mas é um grande escritor. “Dickens descreve uma cena num livro que me comoveu: um homem tem a mãe internada e muito doente num hospital. Vai visitá-la e pergunta-lhe: ‘Tens dores, mãe?’ Ela responde: ‘Tenho a impressão de que há uma dor aqui no quarto, mas não sei se sou eu que a tenho’. Isto é extraordinário, isto é um escritor e há muito poucos assim”.
Não há dúvida de que Eça de Queirós, autor de “Os Maias” e “O Crime do Padre Amaro”, é um dos principais escritores de Portugal. Lobo Antunes não corrobora tal avaliação. “Eu não partilho desse amor por Eça de Queirós, de quem gostei muito até aos 17 anos, depois comecei a escrever mais a sério e a minha admiração foi diminuindo. Não quero entrar em linguagem técnica, mas é a maneira como repete os personagens. São sempre as mesmas: o conde de Abranhos noutro livro chama-se conde de São Romão, noutro conselheiro Acácio, noutro Gouvarinho, e as mulheres são todas iguais. Comparado com Dickens ou Tolstói existe uma grande distância”, anota. Em seguida, contraditando o que disse a respeito do autor de “O Primo Basílio”, ressalva: “Esta história de classificar os escritores em primeiro, segundo ou terceiro lugar não se aplica à arte”. Como crítico, Machado de Assis, morto em 1908, fez melhor, ao notar a influência do francês Émile Zola na prosa do escritor português. Quanto às personagens que aparecem em vários livros, com nomes modificados, o estilo não é unicamente de Eça de Queirós. A implicância teria a ver com a possibilidade, quiçá inconsciente, de Lobo Antunes perceber Eça de Queirós como uma espécie de antecessor direto de José Saramago? Os dois são palavrosos e a literatura do autor de “Memorial do Convento”, um belo romance, às vezes parece a prosa do século 19 — uma mistura de Balzac, Stendhal, Émile Zola e um cadinho da criação dos modernistas. Mas é curioso um escritor-crítico que, apreciando Dickens, despreza Saramago. Os dois são escritores, digamos, “sociais”.
Theophile Gautier foi levado por amigos para ver “As Meninas”, do pintor espanhol Diego Velázquez. Depois de um silêncio prolongado, quiseram saber o que o escritor havia achado. “Onde está o quadro?”, indagou. Lobo Antunes considera que “é a melhor crítica de pintura” que conhece. “O ideal seria que me dissessem: onde está o seu livro? Tem de me devolver o dinheiro porque comprei o livro e afinal não estou a ler um. (…) A arte é trabalho. O que distingue um grande escritor dos outros é que trabalha mais. Dantes, pessoas que estavam a começar vinham ter comigo e pediam opinião. Eu dava e dizia que ainda havia bastante trabalho a fazer, mas voltavam dois dias depois e diziam ‘já emendei tudo’. As pessoas não têm sentido crítico. O que é um livro bom? Porque acho que ‘Guerra e Paz’ é um livro bom e um livro de Odette de Saint-Maurice é mau? Os livros bons são maiores do que a vida. Se lermos ‘Os Demônios’, de Dostoiévski, perguntamo-nos como é que aquele homem conseguia encher os livros de grandes trevas vivas? Se o escritor não as tem não é bom…”.
Joseph Conrad empolgou Lobo Antunes por certo tempo, mas hoje não o admira tanto. Mas, em “O Coração das Trevas”, tem uma frase que o português avalia como verdadeira: “Tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega sempre tarde demais”.
“Nunca fico seguro”
Ao comentar sobre o câncer e a luta das pessoas para ficarem vivas, Lobo Antunes sugere que “nós fomos feitos para a morte e não para a vida, mas, enquanto estou vivo, devo tirar alguma alegria disso”. Quando o neurocirurgião João Lobo Antunes, irmão do escritor, estava muito doente, os dois conversaram sobre a vida, numa espécie de despedida não-dita (o médico morreu em 2016). Eles se entendiam até pelo silêncio. Ao final, se abraçaram e João Lobo Antunes chorou. Depois, disse: “Não digas a ninguém que me viste chorar”. “Se conseguirmos escrever assim, com esta economia, transmitimos todos os sentimentos de quem quer viver e não vai conseguir.”
Escritor de primeira linha, admirado em todo o mundo, notadamente na Europa — sempre cotado para ganhar o Nobel de Literatura —, Lobo Antunes diz que está “coberto de glória, mas isso não interessa nada, queria era fazer livros bons. Acho que tenho vindo a conseguir estar mais perto daquilo que considero ser um bom livro. Não sei se chegarei a fazer um bom, e não estou a ser falsamente humilde, pois sou bem vaidoso [“gênio — que é uma coisa que acho que tenho”). (…) Agora é que vejo bem que ninguém escreve como eu, mas ainda me falta alguma coisa”. O criador de “Eu Hei-de Amar uma Pedra” renega a ideia de angústia da influência, ao menos a respeito de si? Não há uma pitadinha de Faulkner e Beckett na sua prosa complexa? O escritor modernista de Portugal existiria sem Joyce, Proust, Virginia Woolf, Beckett, não citados na entrevista, e Faulkner?
Aos 76 anos, tendo escapado de um câncer e perdido dois irmãos (“Um dos problemas de a gente não morrer é que a morte de quem gostamos é horrível”), Lobo Antunes pergunta: “O que foi a minha vida? O que fiz dela? O que vou fazer nos anos que faltam? Que espero não sejam muitos porque não quero assistir à decadência. A partir dos 40 [anos] começa-se a notar e a vida passa a ter um peso que não havia, parece que nos empurra para baixo e temos menos paciência para certas coisas. Como naquele verso do [António] Nobre: ‘Olha, acolá, tantos Estúpidos! Meus Deus. Morrendo, diz-se, vão para o reino dos céus’. (…) Eu tinha imensa paciência para estúpidos e deixe de a ter”. O escritor frisa que os jornais estão cada vez mais mal escritos: “Vejo os jornais, meu Deus, e as pessoas que escrevem lá”.
Escritores escrevem, revisam e reescrevem — é um trabalho quase sem fim. Entregar o livro à editora é um sacrifício para quase todos. Lobo Antunes figura entre aqueles que se sentem absolutamente seguros? Ele tem plena consciência de seu talento, mas… “Enquanto estou a escrever nunca fico seguro, e há muitas versões do livro; as primeiras são imperfeitas, se calhar as últimas também… Sendo sincero, não vejo ninguém que escreva como eu, mas, sendo ainda mais sincero, eu também não escrevo como eu. Tenho de o fazer melhor, livros mais fortes e que estejam mais perto dos homens. (…) Para escrever um livro faço um plano muito detalhado, mas a mão acaba por fugir e torna-se uma entidade autônoma. (…) Os outros escrevem, eu faço outra coisa. E se o conseguir fazer, então é bom”.
O poeta Manuel Alegre
No melhor estilo de Paulo Francis — que sempre repetia a piada de que havia 315 críticos de cinema em cada redação —, Lobo Antunes conta que 45 artistas portugueses foram convidados a participar da Feira do Livro de Guadalajara. “Mas há 40 artistas em Portugal? Extraordinário! E eu no meio daquilo sou convidado de honra, entre todos aqueles gênios.”
Após depreciar gênios portugueses, Lobo Antunes admite que “o último livro do Manuel Alegre é muito bom, fiquei tão contente porque cada vez que aparece uma pessoa a fazer bem também sou eu que faço”. Aos 82 anos, Manuel Alegre, poeta, é autor de “Todos os Poemas São de Amor” (Dom Quixote, 136 páginas). Lobo Antunes não menciona escritores mais jovens, como Gonçalo Tavares e Valter Hugo Mãe. Africanos de Língua Portuguesa — como Mia Couto e José Eduardo Agualusa — não são lembrados. O autor de “O Manual dos Inquisidores” prefere citar escritores mortos ou, se vivos, bem mais velhos (talvez autores de prosa e poesia “quase” concluídas, e não em evolução).
No Brasil, no lugar de incentivar a leitura, bestas quadradas implicam até com romances infantis e infanto-juvenis, sugerindo que ao menos um deles, de Ana Maria Machado, uma das mais notáveis autoras patropis, “promove” o suicídio. Livros politicamente corretos são, em geral, de uma chatice infinita (Tolstói e Dostoiévski, se fossem brasileiros, seriam denunciados e, possivelmente, até presos).
Um problema grave é apontado por Lobo Antunes: “As pessoas compram cada vez menos livros”. Acrescento: e, quando compram, às vezes nem leem (até intelectuais estão trocando a leitura, que exige tempo e paciência, pelo escapismo prato-feito das séries). Sem contar Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Raquel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, temos, entre os vivos, prosadores e poetas de excelente qualidade, como Ronaldo Costa Fernandes, Miguel Sanches Neto, Cristóvão Tezza, Bernardo Carvalho, Bernardo Ajzenberg, Edival Lourenço, Wesley Peres, Antônio José de Moura, Miguel Jorge, Darcy Denófrio, Heleno Godoy, Adélia Prado, Milton Hatoum e Angélica Freitas. Os brasileiros estão lendo sua prosa e sua poesia, mas menos do que deveriam.
Lobo Antunes recomenda que se dê “grandes livros” aos leitores. “Mas os miúdos são logo ensinados na escola a não gostarem da literatura. Andar a dividir Camões em orações afastou-me dele. Queria lá saber! Não nos ensinam a gostar destas pessoas nem de qualquer forma de arte. Queria escrever como os saxofonistas de jazz, como o Charlie Parker, parece que é Deus que está a falar por ali. Uma vez, numa sessão de improvisação, ele atira o saxofone para o chão e começa a pisá-lo até o amolgar todo e a dizer ‘já toquei isto amanhã’. Ele era um gênio e ainda hoje quando o ouço fico com os pelos todos no ar. É preciso sofrer muito para o leitor ter prazer, o Charlie Parker sofria como um cão.” João Lobo Antunes trabalhou num hospital dos Estados Unidos, como neurologista. Certa vez, estando Charlie Mingus internado, Lobo Antunes convenceu o irmão médico a levá-lo “até ele”.
Livros estão caros e os portugueses “ganham muito pouco”, diz Lobo Antunes. No Brasil não é diferente: livros sobre a Segunda Guerra Mundial, se tiver mais de 500 páginas, estão custando de 80 a 120 reais. Quanto ao escritor português, há outro empecilho: “Os meus livros nem sempre são fáceis; porra, não me apetece estar a dar trabalho aos leitores. Queria que ler fosse uma fonte de prazer como é para mim quando leio um grande livro. (…) Gosto tanto deste objeto, o livro, apetece-me cheirá-lo”.
Escritores releem o que escrevem? Nem sempre, para não encontrar defeitos. García Márquez descobriu — na verdade, descobriram para o escritor — que uma personagem de “Cem Anos de Solidão”, depois de morrer, reapareceu páginas adiante. Erro mesmo. Pois Lobo Antunes não deixa de reler o que escreve. “Estive a ler os livros que escrevi e não me envergonham. Li ‘O Auto dos Danados’ e gostei muito, eles são bons e não estava nada com esta ideia, até ‘Memória de Elefante’, que o [editor francês, Philippe] Bourgois dizia que era o melhor primeiro romance que conhecia.” Bourgois escreveu para o português: “És meu irmão e não há escritor no mundo que admire tanto”. “Vale a pena falar de Nobel depois de receber isto do Bourgois?”, inquire Lobo Antunes ao entrevistador. Aprecio Lobo Antunes, mas não diria o mesmo que o francês. É um par de Ian McEwan e Joyce Carol Oates — talvez a mais notável escritora americana viva —, mas superior, não.
Com inveja dos poetas, Lobo Antunes diz que está pensando em retomar a “carreira” de poeta, embora admita que não tem jeito para a coisa. Durante a conversa com o repórter do “DN”, ele recita Antônio Reis.
No dia a dia, a vida de Lobo Antunes é espartana. “Tenho esta vida estúpida, sem computador, celular, cartão de crédito, nem carro tenho. Sou livre, é ótimo.” Ele ironiza as universidades americanas, que competem para ter seus manuscritos. Gostaria de escapar da “crítica genética”?
Não é qualquer escritor, exceto Scott Fitzgerald, que é capaz de escrever a frase “na noite mais escura da alma são sempre três horas da manhã”. Um haiku de Bashô — “Os quimonos pendurados secam ao sol, ai as mangas pequenas da criança morta” — levou Lobo Antunes às lágrimas. “O’Neil tem razão quando escreve no fim de um poema ‘Só entre os homens e por eles. Vale a pena sonhar’”.
No final da entrevista — que, a rigor, não é entrevista convencional, o entrevistado fala o que quer, sem interrupção —, Lobo Antunes critica, em tom mais irônico do que irritado: “Tirando a pergunta do Nobel não abriu a boca! Não fez pergunta, que chatice…”. Ainda assim, uma auto entrevista sensacional. O grande João Céu e Silva agiu de maneira sábia.