Existem histórias que a gente acha que não passam de lendas criadas no imaginário de alguém que amargava uma tarde tediosa e repassadas ao longo dos anos como verdade. Já ouvi sobre o homem que conseguia correr 300 quilômetros sem parar, sobre a mulher que viveu 172 anos em uma vila da Ásia, sobre crianças superdotadas do Canadá que calculam aritmética antes do quarto aniversário.
Até pouco tempo atrás se me contassem sobre um senhor que vive há 20 anos com seu cachorro numa ilha deserta me soaria, apesar de plausível, como mais uma invenção que percorre as bocas e mentes dos que gostam de sacudir a rotina com realidades possíveis somente em universos pitorescos. Mas numa pequena cidade no interior de Portugal peguei um barco que me levou a uma casinha azul, com rede pendurada na porta.
Lá estavam seu Alves e o cão Bolinha de rabo abanando, dando cara e contorno para a história que o guia do passeio havia narrado em tom de conversa fiada para entreter turista. A maioria não dá bola e, quando desce do barco, procura logo um lugar para estender a canga e esticar as pernas. Para casa de seu Alves vão alguns jornalistas em busca do personagem emblemático e uns poucos curiosos, como eu.
Foram duas horas de conversa entre o “pode entrar” e o “volte sempre”. Cheguei com olhar desconfiado, saí com o coração recarregado. Aquele senhor de 70 ou 80 anos (toda essa margem de erro porque me pareceu irrelevante conferir quantas décadas o levaram até ali) falou comigo com a doçura de um avô e a firmeza de um pai. Desejou que eu seguisse meus sonhos estruturada na essência que me move e puxou minha orelha por estar tão longe de casa apenas com minha mochila como companhia.
A pergunta clichê não faltou. Eu o questionei se precisava lidar com a solidão, apesar de ter Bolinha o acariciando com o focinho. A resposta veio carregada de obviedades que minha petulância urbana me leva a esquecer. “Não importa o que você tenha, onde esteja ou até com quem esteja. Importa quem você é e como se sente com o que se tornou”, disse ele com uma simplicidade que não deixava a frase parecer tirada de um folhetim barato de autoajuda.
Era a sabedoria de quem entende que ter basicamente árvores e barcos por perto não é mais solitário que flertar com arranha-céus durante horas de tráfego lento. Mencionou com orgulho que o coração está em dia, enquanto conhecidos da capital se amparam em comprimidos para estresse e tristeza. Desconstruindo a ilusão de que homens da natureza não possuem agruras, falou sobre a mulher que mora na cidade por precisar de cuidados médicos e da falta que sente dela. Quando saiu da ilha para ficar ao seu lado teve a casa saqueada e resolveu voltar para a pesca, as estrelas em céu limpo e a saudade amenizada por visitas mensais.
Escancarou a escolha sem medo de ser julgado, revelando que em Nova York ou em mares distantes, todos passam por dilemas. Ele encontrou o meio termo que lhe pareceu mais próximo da felicidade. Discorremos sobre angústias e alegrias, anseios e realizações, medo da liberdade e também da falta dela. Ficou claro como as inquietações são humanas e não categorizadas por território ou saldo bancário. No fim, estamos todos procurando mais ou menos as mesmas coisas. Numa sala de cinema, num colo amigo, numa panela de doces, num avião para longe, num festival eletrônico, no quarto da mãe, nos braços do pai, na igreja lotada ou numa ilha deserta.
Pode ser que o oceano e o vinho do Porto que seu Alves me ofereceu fizeram-me encarar aquela conversa como mágica. Talvez realmente fosse, por colocar frente a frente dois estranhos dispostos a ouvir e falar sem atropelos, inebriados pela pretensão de decodificar o que leva à paz. Não conseguimos. De comum acordo, só a convicção de que ter a quem amar cauteriza solidão. Ser amado também. Ainda assim, garantido nada é… em lugar algum. Mas ao pegar o caminho de volta pensei nos que sofrem por sentirem-se perdidos na multidão, enquanto aquele senhor estampava tranquilidade em ter a si próprio como bom parceiro. Pensei no poder do mundo construído por dentro, maior que o do mundo edificado do lado de fora.