A felicidade é uma meia cinza

A felicidade é uma meia cinza

Era segunda-feira. O dia amanheceu cinza. Eu estava um trapo. Mais parecia um pano de chão sujo, rasgado, pisoteado, cuspido por um dragão medieval com bafo ancestral. A alma encardida, mais densa que nuvem cúmulo-nimbo, mais empoeirada que chão do agreste. Era assim que eu me sentia. Mais um dia, mais uma semana, mais ônibus cheios, mais engarrafamento, mais chefe, mais boletos. Era só mais uma segunda-feira como todas as outras, só que fria e cinza. Eu não sei você, mas nada que é cinza é alegre ou gostoso. Você já viu festa infantil em tons de cinza? Pizza cinza? Vinho cinza?

Tomei meu banho em silêncio. Fiz o café em silêncio. Coloquei qualquer roupa em silêncio. O cachorro abriu os olhos, mas decidiu ficar na cama. Sem fazer festa, sem abanar o rabo, sem lambidas. Ele estava certo. Se fosse eu nem teria me dado o trabalho de abrir os olhos. Invejei o cachorro. Engoli o café sem açúcar. Saí porta afora maldizendo a fatura do cartão de crédito, meu salário injusto, os juros do cheque especial, a infiltração no apartamento, os adolescentes da república do andar de cima, e o cachorro preguiçoso. Enfim, motivos não me faltavam para que a minha vida fosse cinza, independente da cor do céu.

Cheguei em frente ao trabalho. Respirei fundo. Parei na lanchonete ao lado e reparei em um menino. Devia ter uns 8 anos. Comia uma coxinha e vestia um uniforme escolar da rede pública. Suas roupas impecáveis e bem passadas. Levava nas costas uma mochila remendada. Nos pés, um par de tênis velhos que, certamente, ainda seriam folgados para os meus pés maduros. Reparando bem o moleque, um detalhe me chamou a atenção. Ele usava apenas uma meia. No pé direito. E adivinha qual era a cor? Cinza.

Pronto. Eu não conseguia tirar os olhos dos pés daquele garoto. Observei o quanto ele sorria e como parecia feliz dentro daquele uniforme limpo, com sua mochila costurada, seus tênis frouxos e sua única meia cinza. Nós dois estávamos em momentos antagônicos. Ele, sem recursos e faceiro. Eu, vestida com uma roupa que custava um salário mínimo, moradora da zona sul, falava três idiomas, conhecia alguns países, assistia Netflix e tinha vários pares de sapatos. Mas uma coisa eu não tinha: o brilho daquele menino.

Não resisti e fui caminhando atrás dele, como quem segue uma celebridade, à espreita, examinando cada gesto, fixando a retina naquela figura franzina e rogando à memória para que guardasse, com carinho, aqueles pés pequenos que sambavam dentro dos tênis surrados. Parei ao seu lado para atravessar a rua e perguntei, zombeteira, com a intimidade dos amigos de longa data:

— Ei, rapazinho! Saiu atrasado hoje e esqueceu uma meia em casa?

Ele, gracioso, me respondeu com a ingenuidade tamanho 31:

— Não, tia, eu só tenho uma meia para os dias de frio. Meu irmão usa um pé e eu uso o outro!

Eu, constrangida, mas perseverante, prossegui:

— Mas e o outro pé, fica passando frio?

Ele, seguro, astuto, um gigante da sabedoria, proferiu dignamente:

— Uai, quando um pé esquenta, eu passo a meia para o outro pé. Assim, meu irmão e eu não ficamos sem meia, não ficamos doente, e minha mãe pode descansar de noite pra trabalhar de dia.

Ele, olhando para os meus scarpins — sem meia, obviamente — me perguntou, matreiro, com fascinante inocência:

— E você, tia, não tem meias?

Eu ri. Foi o primeiro sorriso do dia. Sincero, puro e consolador. Pensei no meu closet cheio e no quanto a minha vida era vazia. E, em fração de segundos, cheguei à conclusão de que felicidade é tudo e somente isso: uma roupa limpa, uma mochila emendada, uns tênis bambos, uma coxinha e uma meia cinza.

Olhei para aquele corpo miúdo de alma avantajada, que esperava qualquer resposta. Velhaca, lhe respondi:

— Felicidade é uma meia cinza!

Karen Curi

é jornalista.