Livro de Ana Maria Machado é vítima da Inquisição da ignorância

Livro de Ana Maria Machado é vítima da Inquisição da ignorância

O livro “O Menino Que Espiava Pra Dentro” provoca polêmica e sugere que redes sociais são areia movediça da razão e adubo do ódio gratuito

“Anna Kariênina” (Companhia das Letras, 840 páginas, tradução de Rubens Figueiredo”), de Liev Tolstói, e “Os Demônios” (Editora 34, 704 páginas, tradução de Paulo Bezerra), de Fiódor Dostoiévski, são dois dos mais poderosos romances do século 19. De tão emblemáticos — e não datados — reverberam nos dias que correm.

Anna Kariênina e Liev Tolstói

“Anna Kariênina”, como o título indica, tem uma mulher como personagem principal. Ela é casada, mas ama não o marido, e sim Vrônski. Trata-se de uma adúltera que faria tudo, inclusive abandonar o marido e o filho, para seguir o homem pelo qual está apaixonada e deseja sexualmente. Acima de tudo, é uma personagem extraordinária, de vigor e viço raros. Poucos escritores, sobretudo homens, construíram uma personagem feminina com tanta vitalidade e vivacidade. Durante a leitura do romance, o leitor fica com a impressão de que a imaginação é a realidade — como se a bela e sofisticada Anna Kariênina estivesse ao nosso lado, dialogando conosco, e como se nós, observando a trama, estivéssemos participando de seu drama, que, no fundo, também é nosso.

Anna Kariênina (Companhia das Letras, 840 páginas, tradução de Rubens Figueiredo)

Ante a, digamos, “suspensão” do que deseja, e o que deseja é ser amada por Vrônski na mesma proporção com a qual o ama, Anna Kariênina se mata, jogando-se na frente de trem de ferro. É provável que ele a amasse, mas de modo diferente. É possível que homens e mulheres amem de maneiras diversas? Talvez sim. Seria machismo sugerir que as mulheres se entregam mais à arte de amar? Talvez sim. O que mais choca em “Anna Kariênina”? Pressuponho que mais o desejo manifesto de uma mulher — sujeito de sua experiência, na vida e na morte — do que o suicídio em si.

Frise-se que, no início do romance, Tolstói assinala, filosófico: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.

Os Demônios e Fiódor Dostoiévski

“Os Demônios” é menos conhecido do que “Crime e Castigo” (Editora 34, 592 páginas, tradução de Paulo Bezerra) e “Os Irmãos Karamázov” (Editora 34, 1040 páginas, tradução de Paulo Bezerra) e não causa o mesmo impacto destes romances. Mas antecipa, de algum modo, a história do totalitarismo soviético, o de Vladimir Lênin e Ióssif Stálin.

Os Demônios (Editora 34, 704 páginas, tradução de Paulo Bezerra)

O livro relata a história de terroristas russos, com um retrato matizado de seu mundo, com um registro preciso da violência articulada. Um dos personagens, Kirilov, se mata. Ao contar a história de dois suicídios, em duas obras de imaginação poderosas, Dostoiévski e Tolstói incentivaram, no seu tempo, as pessoas, infelizes ou não, a se matarem? Não. Como escritores de primeira linha entendiam que a vida — imaginada ou não — merece ser contada com suas nuances, contradições e cruezas. Edulcorar a literatura, relatando somente casos positivos — com mensagens consoladoras —, não contribui para melhorar a vida. Mas ajuda a piorar a ficção. Literatura não é cópia — é invenção, imaginação — e não agente moralizador. Quanto mais ampla possível, apresentando a vida como é — e até como poderia ser —, melhor para os leitores.

Suicídio e a omissão da imprensa

Nós, repórteres e editores, estamos escondendo os suicídios como se isto evitasse mortes. No lugar de escancarar o problema — de enfrentar a verdade das famílias e do lugar comum das boas intenções —, nos omitimos. Parece que aceitamos tacitamente o seguinte: aquilo de que não falamos não acontece, não está acontecendo cotidianamente. O silêncio pode ser mais letal do que certo barulho humanista.

Se deixar de discutir o problema não leva à redução do número de suicídios, a saída, se há, é trazer o tema para perto de nós, como uma questão que merece atenção e a respeito da qual devemos falar um pouco mais. Não se pode deixar de concordar que a discussão sensacionalista — a divulgação com o objetivo de chocar e, daí, conquistar leitura, audiência — não é positiva. Mas debates saudáveis — sem histerias — podem contribuir para as famílias, cada vez mais assustadas, entenderem a si mesmas e aos seus filhos. Entenderem inclusive a complexidade da vida e a questão do livre arbítrio dos indivíduos.

Parece que, com a decadência do socialismo — que propugnava a ideia de uma sociedade de iguais, uma utopia que, no papel, é maravilhosa (só esqueceram que a igualdade é uma fantasia inatingível) —, nós queremos construir a sociedade sem sofrimento e sem dor. A sociedade da felicidade, do acesso facilitado a tudo, é a nova utopia. O suicídio, uma desistência da “fantástica” sociedade “conquistada” (a da abundância), choca as famílias (a minha inclusive, pois uma irmã se matou, há cinco anos, depois de descobrir um câncer de mama; sim, era depressiva, o que não dizer que todo indivíduo depressivo queira se matar). Como o mundo supostamente é “maravilhoso”, ao menos assim é visto por tantos, o suicídio nos espanta e aterroriza. Por isso, há aqueles que buscam culpados para as mortes, especialmente dos jovens. Até livros, de repente, são apontados como “responsáveis” pela “extinção” dos que se recusam a viver, que não querem continuar.

O suicídio, literatura e Ana Maria Machado

A mais recente vítima da Inquisição da Ignorância-Ignorantsia patropi é o livro “O Menino Que Espiava Pra Dentro” (Global, 32 páginas), da escritora brasileira Ana Maria Machado, ganhadora do Nobel da literatura infanto-juvenil, o prêmio Hans Christian Andersen, em 2000.

Ana Maria Machado
Ana Maria Machado, ganhadora do Nobel da literatura infanto-juvenil, o prêmio Hans Christian Andersen

Ana Maria Machado é uma escritora brilhante, simples e, ao mesmo tempo, sofisticada. Tanto que seus livros infantis e infanto-juvenis podem ser lidos com proveito até por adultos (e escreve bem para adultos, inclusive crítica literária). Porque trata as crianças e adolescentes, não como adultos, e sim como seres inteligentes e perceptivos — como fazia seu antecessor, Monteiro Lobato. Há autores que escrevem muito bem, mas não têm imaginação — do que resulta livros insossos. Ana Maria Machado, e por isso agrada tanto crianças e adolescentes (e adultos), põe sua imaginação poderosa a serviço das histórias que, na falta do mote justo, diria encantatórias. Crianças e adolescentes compreendem bem o que escrevem, por isso seus mais de 100 livros, publicados em quase 20 países, resultaram em mais de 20 milhões de exemplares vendidos. Dão prazer aos leitores onde são publicados — o que comprova sua universalidade.

“O Menino Que Espiava Pra Dentro”, segundo alguns pais, “induz” ao suicídio. A personagem central, o garoto Lucas, sugere que, ao se engasgar com um pedaço de maçã, conseguiria viver “no mundo de sua imaginação”.

A obra, publicada há 35 anos, parece ter sido entendida pelos leitores mirins. Pois, em três décadas e meia, não houve protestos e ninguém se suicidou por causa do exercício imaginativo de Lucas. Mas adultos — se não fosse uma ofensa às crianças, diria infantilizados — agora estão chiando. “Que Deus tenha misericórdia dessa autora. Esse livro apresenta uma maneira inescrupulosa de como uma criança pode provocar um suicídio. Que o MEC reveja e retire esse livro de circulação”, disse uma pessoa. “Livro impróprio para crianças, simplesmente as ensina a se suicidar. Como pode ser uma autora renomada como a Ana Maria Machado ter escrito e ainda manter um livro como este em circulação?” E mais: “Livro lixo. Instiga a criança ao suicídio”.

Mas há usuários de redes sociais que têm bom senso. “Estão perseguindo a Ana Maria Machado por um trecho específico de uma obra sem sequer compreender seu todo”, afirma uma internauta.

É provável, quase certo, que a maioria dos que estão criticando Ana Maria Machado não leu o livro de apenas 32 páginas. A literatura não tem de, necessariamente, servir às boas intenções e de passar mensagens positivas — não tem a ver com otimismo em gotas. Literatura não é — nunca foi e nunca será — a arte do bom-mocismo.

O Menino Que Espiava Pra Dentro (Global, 32 páginas)

Há escritores que se comportaram, como homens, de maneira abominável — o que não é o caso da autora brasileira, uma humanista de voz poderosa —, como o poeta americano Ezra Pound e o prosador francês Louis-Ferdinand Céline, mas deixaram uma obra admirável. A literatura é assim: tem uma força autônoma e, por isso, descola-se de seus autores. A voz do escritor, sobretudo quando genial, como Pound e Céline, supera a voz do político. Por mais que alguns queiram ser “porcos espinhos” (uma mente unidimensional) — ou toupeiras —, acabam por ser “raposas” (uma mente mais aberta, não unidimensional), sugeriu Isaiah Berlin, ao analisar justamente Dostoiévski e Tolstói.

Entrevistada por Rodrigo Casarin, do Blog Página Cinco, instalado no UOL, Ana Maria Machado fez a defesa adequada de seu livro e da liberdade de expressão do escritor.

“Quando escrevo uma história, em grande parte o processo é inconsciente. Não fico procurando enviar mensagens. Mas é claro que cada história, simbolicamente, vai configurando uma rede de reflexões. Essa girava em torno de imaginação e realidade, e da solidão do filho único que quer um irmãozinho, cria um amigo imaginário, deseja cada vez mais viver num mundo de sonhos com esse personagem inventado, mas acaba ganhando dos pais um cachorro que preenche sua realidade. Uma ideia ligada a essa situação era valorizar a imaginação infantil, mas frisar que a realidade é muito importante, até porque é ela quem alimenta a imaginação. E que nada substitui o afeto”, diz Ana Maria Machado. Quase uma aula de literatura em poucas palavras e, também, uma visão educativa que muitos pais, se deviam ter, não têm — por falta de informação, por falta de tempo ou preguiça mesmo.

“Posso ser uma ingênua, mas creio que, maioria dos casos, essa acusação irresponsável, leviana e cruel não nasce de uma maldade gratuita, mas de uma insegurança e preocupação com os filhos, vistos como ‘sujeitos aos perigos do mundo’. Em alguns casos, porém, postagens feitas por pessoas diferenças contam o mesmo caso, com as mesmas palavras, narrando os detalhes de algo que, supostamente, teria acontecido com ‘meu filho’ (o delas) ao chegar da escola. Isso sugere má-fé de parte de alguns, pois as mensagens são iguais, mandadas a sua rede de contatos, como se o diálogo assustador tivesse acontecido com diferentes crianças ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias”, sublinha Ana Maria Machado. Dada sua elegância habitual, a escritora não diz, mas o que alguns indivíduos querem, dolosamente, é criar tais circunstâncias e produzir um “sentimento” — uma comoção — contra o livro.

Os pais precisam ler mais e com mais qualidade

Uma estocada de Ana Maria Machado nem parece estocada, pelo uso de luva de pelica e não de flecha: “Não sei muito o que dizer, a não ser que há um ponto de partida positivo: os pais fazem bem em se preocupar com o que os filhos leem e devem mesmo ler junto com eles. E também. E, também, ler sozinhos, ler mais, se acostumar muito com a leitura de literatura — para perder o medo da linguagem simbólica e entender como funciona a linguagem nessa função de contar histórias e fazer ficção”.

Ana Maria Machado está sendo vítima — e o termo nem é vítima, porque a autora está acima disso — da ignorância, a maior multinacional do mundo, e da ignorantsia, o saber dos que, a partir de uma situação dada, manipulam informações e indivíduos, aproveitando-se na areia movediça que soterra a razão e aduba o ódio (às vezes gratuito) nas redes sociais.

O Brasil felizmente tem a obra de Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Lydia Bojunga. As três precisam ser incluídas no cânone da grande literatura brasileira. Porque são excelentes escritoras.

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.