Desde que Dilma Rousseff (PT) deixou o Palácio da Alvorada, afastada definitivamente em 31 de agosto de 2016, somente por sete dias a residência oficial da Presidência voltou a ser ocupada. Foi de 17 a 24 de fevereiro do ano seguinte. Michel Temer (MDB), que resistia à transferência do Palácio do Jaburu, conseguiu ficar nas novas instalações por apenas essa semana. Sentiu-o “pouco aconchegante” e voltou para seu lar de vice. Isso depois de uma reforma que havia custado aos cofres públicos cerca de R$ 25 mil para receber a família do novo presidente, segundo a matéria de O Globo.
O gasto com as adaptações do palácio pode até parecer ínfimo para seu porte, e é mesmo. Mas, para ter a real noção de como se tratam a cultura e a memória neste País, o valor dos reparos em Brasília em 2016 foi quase a metade de tudo o que havia sido destinado pelos mesmos cofres públicos para a manutenção, durante os primeiros quatro meses de 2018, de outro palácio, em São Cristóvão: o do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, residência oficial de Dom João VI, seu filho Dom Pedro I e seu neto Dom Pedro II. Foram destinados para lá, pelo governo federal do mesmo Temer, R$ 54 mil de janeiro a abril. O que se poderia fazer com essa verba? O mesmo que faria alguém que acaso herdasse a Ferrari de Cristiano Ronaldo ganhando salário de office-boy: nada, a não ser comprar um pano com um bom tecido para não deixar acumular na máquina a poeira da garagem.
O Palácio da Alvorada ficou às moscas, mas não deixou de ser perdulário: foram gastos R$ 6 milhões em 14 meses (de setembro de 2016 a novembro de 2017), R$ 1 milhão apenas com energia elétrica, conforme relatou reportagem do jornal O Globo do início do ano. Dinheiro do erário que, dado o exposto no parágrafo anterior, seria uma fortuna para os padrões costumeiros de investimento nos tesouros inestimáveis que ficavam guardados na Quinta da Boa Vista até domingo.
Em maio, uma reportagem da Folha de S. Paulo denunciava exatamente o drama da manutenção do antigo palácio da família real. Completando dois séculos este ano, com uma das mais valiosas coleções de história natural de todo o mundo — para falar somente de um de seus acervos incalculáveis —, o Museu Nacional convivia com a deterioração acentuada, causada por fatores que iam de infiltrações a inacreditáveis ataques de cupins.
Aqui, os números voltam a ajudar a entender a previsibilidade de uma tragédia: o “gasto” anual com o museu em 2013 havia sido de R$ 531 mil. Uma quantia ridícula para 12 meses, que não pagaria a temporada de um jogador reserva de Série B, mas que foi o maior montante recebido pela administração do prédio desde então. Ainda assim, era três vezes e meia maior do que a esmola oficial deste ano — que corresponderia, projetada até o fim de 2018, a R$ 162 mil, praticamente o mesmo que Neymar ganha durante oito horas de sono.
O título Museu Nacional vai ganhar grande reforma pelo segundo centenário abria um texto de outubro de 2013, do portal G1. Na verdade, a ótima notícia era nada mais do que a expressão do desejo de museólogos e antropólogos de um comitê que queria celebrar os 200 anos do prédio com uma grande festa e para tanto tinham feito um belo projeto, ansiando conseguir os R$ 200 milhões necessários para sua recuperação e ampliação. Estavam “lutando” para conseguir algo vindo dos cofres públicos e esperavam a adesão da iniciativa privada ao plano. Continuam esperando.
Meses depois, em janeiro de 2014, foi inaugurada a Arena da Amazônia, em Manaus, para a qual os mesmos cofres públicos desembolsaram oficialmente exatos R$ 623.857.919,03. Um valor que reformaria e ampliaria três Museus Nacionais estava ali, desperdiçado em apenas uma das “arenas” da fatídica Copa do Mundo, priorizada pelo governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva. Se um dos museus mais importantes da América Latina não mereceu receber R$ 1 milhão para cada ano de sua existência, torraram R$ 8,3 bilhões em estádios de futebol para o torneio da Fifa. Haja vista a falta de atividades esportivas e artísticas que compensem mobilizar sua estrutura mastodôntica, alguns deles — como a Arena da Amazônia, já citada, e a do Pantanal — já servem atualmente, senão como museus, ao menos como monumentos ao desperdício dos impostos.
Impostos a que o Estado renunciaria caso empresários, bancos e indústrias se habilitassem a socorrer qualquer um dos seis projetos de restauração e revitalização do Museu Nacional aprovados de 2010 a 2018. De R$ 17,6 milhões autorizados pela Lei Rouanet de incentivo à cultura, apenas um projeto conseguiu captar alguma coisa — R$ 1,07 milhão para o acervo de mineralogia, de R$ 1,9 milhão necessários. Ou seja, 6% do que havia sido liberado.
Para os menos informados (e há muitos, ainda mais se juntarmos os que se fazem de bestas), a Lei Rouanet é como um cardápio que se oferece ao empresariado para que eles exerçam o papel de mecenas. Na verdade, é uma espécie de oportunidade dada a eles para fazer cortesia com o chapéu alheio chamado dinheiro público. Em vez de quitar o que devem em tributos, eles ganham a opção de repassarem a projetos artísticos e culturais o que pagariam. Escolher o destino do que iria para sabe se lá onde no governo é uma troca muito interessante, diga-se.
Mas o fato é que o Museu Nacional e seus fósseis de milhões de anos; sua arte indígena de povos que já desapareceram sem deixar outros vestígios que não os que estavam lá; sua riquíssima coleção e única de botânica e zoologia; e com o crânio de Luzia, a mulher de 12 mil anos que mudou a história da ocupação humana no continente, tudo isso foi menos atraente aos financiadores do que shows de Cláudia Leitte e Jota Quest. A iniciativa privada brasileira deixou bem claro quais eram suas prioridades.
Lugar de museu é em Paris
Cada um investe seu tempo e seu dinheiro naquilo que dá valor. Os empresários brasileiros inscritos na Lei Rouanet preferiram comprar a ideia de ampliar as multidões em shows pop-bregas pelo País a destinar o que podiam a uma causa nobre, porém nada popular por aqui. Afinal, pra que museu no Brasil se eu posso ir no Louvre? Parece um questionamento irônico, mas é bom notar que apenas uma elite frequenta museus. E, então, é assustador saber que essa elite brasileira cultural e/ou econômica conseguiu a façanha de ter frequentado mais o Louvre do que o Museu Nacional.
Quantos bilionários há no Brasil? Quantos deles se espelham em ícones norte-americanos como modelos de empreendedorismo? Quantos sabem que esses magnatas de lá são conhecidos por seus investimentos em ciência e educação e que constroem prédios e hospitais em universidades com a própria fortuna? Por que não se espelham nisso também? E, ao contrário, o que faz com que não direcionem nem mesmo o que pagariam ao governo para fomento à pesquisa ou ao patrimônio histórico?
É que, repetindo, cada um investe seu tempo e seu dinheiro naquilo que dá valor. E venho aqui fazer, então, um mea culpa. Estive algumas vezes no Rio de Janeiro, mas em apenas uma delas a estada foi mais longa, por dez dias. Era o período dos Jogos Pan-Americanos de 2007 e minha cabeça estava voltada especificamente para a agenda esportiva.
Hospedado no apartamento de um amigo que fazia mestrado na PUC-RJ, é claro que, além de ver os jogos, sobraria tempo para fazer programas extras. E tinha o roteiro padrão: o Pão de Açúcar, o Corcovado e o Cristo Redentor, as praias, bares na Lapa, na Gávea e no Leblon, ensaio de bateria de escola de samba em Madureira. Gosto de esporte e então, obviamente, conheci o Maracanã, o Maracanãzinho, o Estádio Nilton Santos, o Parque Aquático, o Complexo Multiesportivo em Jacarepaguá…
Teve de tudo, mas não teve Museu Nacional. E agora não tem mais. Eu poderia até dizer que teria sido por falta de tempo hábil para uma visita como o local mereceria, mas prefiro confessar que nem me passou pela cabeça à época ir lá naquele momento. Pior: não fui nem depois, sempre protelando.
Neste fim de domingo, com a terrível notícia do fim do dia, a sensação foi de sofrer a perda irreparável de uma chance. Mais: a perda de uma pessoa de riqueza cultural infinita. O mesmo sentimento que se tem quando sabe da morte daquele artista que você sempre gostou, mas postergava a ida ao show dizendo que “ah, na próxima vez eu vou”. Morreram Mamonas Assassinas, Renato Russo, Cássia Eller, Tim Maia, Luiz Melodia. Parafraseando um deles, próxima vez é algo que, se você parar pra pensar, não há.
Mas, em nossa cabeça, ao contrário das pessoas, mortais, um museu sempre estará lá. Imagine então um museu bicentenário — algo praticamente “eterno” na escala tupiniquim que move este País tão jovem quanto imaturo.
O curioso caso do museu que morreu
O Museu Nacional do Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, que um dia foi a residência oficial da família real portuguesa, está morto. Não adianta vir governante dizer que vai convocar empresas e bancos para restaurá-lo. Tanto políticos como empresários passarão recibo de hipócritas — o que, provavelmente, vão fazer sem a menor parcimônia. Não adianta mais: Inês está morta. Luzia está morta.
Mas é que aqui eles sempre preferiram construir estádios a hospitais e continuam a priorizar eventos chamativos em vez de construir e equipar uma escola pública que seja. Imagine, então, um museu. Basta ver o resultado da tentativa de captação da Lei Rouanet para ter ideia.
Depois de 200 anos de descaso e da perda do acervo de 20 milhões de peças, qualquer medida “urgente” agora é um insulto igualmente incalculável. Se o discurso de austeridade do governo Temer apertou ainda mais o orçamento quase nulo do Museu Nacional — como ocorreu igualmente com as universidades federais e as demais instituições públicas de pesquisa e cultura —, não há nenhum motivo para poupar quem veio antes, seja Dilma, Lula, FHC, Sarney ou os militares. Na verdade, a República sempre desprezou a história do Brasil. E o povo nunca quis essa história como sua.
O brasileiro médio quer futebol, quer festa, quer carnaval. O que mais aparece neste momento é esse discurso falso de comoção pela destruição do acervo, mas quem se importava com o morto quando era vivo? A começar de mim, seguindo o mea culpa: eu me preocupo muito mais com futebol do que com museu!
O lugar da prioridade à memória e à história do Brasil se demonstra e se desmonta em números, como posto acima. O incêndio foi um castigo, foi uma negligência, foi um crime. Mas, pensando bem, pode ter sido antes de tudo uma eutanásia. O velho Museu Nacional cansou de viver doente e ignorado.
Talvez neste fim de semana Luzia, a mulher de 12 mil anos, tenha tirado Sha Amum Em Su de seu sarcófago e lhe convencido de que aquilo ali estava tão insalubre que o melhor era botar fogo em tudo. A ideia se espalhou entre os diversos fósseis e dali para a rebelião total foi um passo. Uma revolta tamanha que foi capaz de pôr do mesmo lado até dinossauro e meteorito.
Terminar o texto com esse surrealismo é uma forma de, como em toda fábula, deixar no ar uma lição já bem batida: quem não conhece sua história está fadado a repetir os mesmos erros. Pensando bem, para que e para quem deixar lição? O Museu da Língua Portuguesa, queimado há menos de três anos, não conseguiu mudar o comportamento dos políticos, dos empresários, do povo. Talvez tenhamos mesmo de nos aceitar não como os vira-latas do mundo, mas como hienas que riem da própria desfaçatez.
Elder Dias é editor-chefe do Portal Estádio das Coisas.
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