Antes pensava que, se lesse estes ou aqueles livros, estaria mais preparado pra escrever. Lia e o efeito era o contrário: sentia-me cada vez menos preparado. Nenhuma página escrita pode dizer o que colocar numa em branco. Isso porque a literatura é livre e selvagem como uma orgia incorpórea, mas a educação para a literatura é como o Direito, a Moral e a Religião: nunca se aprende o que fazer, só o que não fazer.
Ao vermos a precisão de ideias em Machado de Assis e de adjetivos em Joyce, não aprendemos a raciocinar e a descrever, apenas perdemos o direito de raciocinar e descrever levianamente. Perante um tema tratado com profundidade e delicadeza pelos grandes autores, salvamo-nos do ridículo de tratar o mesmo assunto com simplismo, rudez, e ainda assim nos julgarmos portadores do novo.
O “novo” é a eterna armadilha. Quando o colocamos como objetivo, tendemos a buscá-lo artificialmente, apelando para ideias e expressões extravagantes, forçando metáforas sem nenhuma associação natural ou criando construções linguísticas até inteligentes, engenhosas, só que despidas de significado maior. Tornamo-nos portadores do novo, sim, mas do novo Frankenstein literário.
“Tudo é vaidade debaixo do Sol”, disse o Rei Salomão. A propósito, jamais nos envaideçamos por saber o que outros disseram, salpicando o texto com citações aleatórias aqui e ali. Se alguém quiser ler o que Salomão, Agostinho ou Nietzsche escreveram, irá atrás de Salomão, Agostinho ou Nietzsche. Depois disso, sobrando interesse, por que procurar a mim em vez de um comentador especializado?
O mundo não precisa que eu analise ninguém, passa muito bem sem meu parecer. Páginas são feitas de papel, não de vidro para a vitrine das anedotas. Nada que diminua a importância de estudar: saber das coisas é virtude essencial. O vício está em usar a literatura pra mostrar o que se sabe. E reparem que eu disse “o que se sabe”; passar disso pra ostentar falsa cultura já vira, em si, caso de estudo.
Falar a verdade é o primeiro passo. Não a verdade dos fatos, claro, mas a dos nossos sonhos. Se não molharmos a pena nesse íntimo tinteiro, em qual molharemos? No de espertinhos que, com a argúcia de raposas da língua, varam a noite cruzando termos atrás de antíteses, reversões e trocadilhos bobos. Quem só faz jogo de palavras vê em palavras mero jogo.
Figuras de estilo são os dedos de um músico. Colocados nos lugares certos, soltam sons compostos na imaginação, ideias sonoras. O que você tem visto em seus sonhos? Em seus pensamentos? As orelhas da raposa estão no leitor que reproduz marcas estilísticas como quem observa um violonista e, mesmo sem saber nenhum acorde, tenta tocar imitando as posições dos dedos no instrumento.
Quem quer tocar a nota certa precisa ir ao médico, tirar chapa dos pulmões e ver a música escondida entre os brônquios. Depois os rins filtrarão palavras e o coração marcará o compasso, numa espécie de clarividência interior. Tudo gira em torno de se ter uma visão. Paro em frente ao computador e pacientemente espero, à custa de várias tentativas, os parágrafos tomarem seu formato antevisto.
É inútil “tentar” um ou outro estilo: cada qual é a manifestação estética de uma visão de mundo particular. Dilatemos as pupilas e naturalmente nos serão revelados as antíteses, reversões, citações e trocadilhos necessários para exprimir as imagens e ideias retidas na retina. Nada é proibido e qualquer coisa pode ser feita, desde que verdadeiramente, com sangue.
A única contribuição artística genuína que podemos dar é nosso olhar, por isso educar-se para a literatura consiste em criar essa visão própria do mundo. Não para explicá-lo, dado que sempre nos será estranho, mas para expressar com suficiente dignidade um dos pontos mais profundos da arte e de nossos corações: a condição humana em meio à estranheza.