Crianças de três anos com câncer. Muitos desonestos no poder. Professores ganhando mal enquanto bancos faturam alto. Empresários misturam papel na carne. Querem colocar veneno nas nossas verduras. Homens ainda têm salário maior que mulheres. Vivemos o auge do desenvolvimento tecnológico, mas, a fome ainda mata milhares de pessoas. Sacanas têm sucesso. Defensores de direitos humanos são assassinados. A intolerância generalizada galopa no real e no virtual. Mente. Dentro de cada lar, dramas. Dentro de cada um, nós. A serem desatados. Ao mesmo tempo. Tudo junto. Sem refresco. Sabe quando a onda te pega e antes de você terminar de levantar já tem outra a-bis-sal te derrubando? Então, a vida não prevê intervalo para descanso. É muitas vezes injusta. Aquele que aguarda, a guarda. Espera ser esperado e perde o trem da existência. E não dar vazão positiva às injustiças existenciais transforma o melhor dos seres em um “reclamão” convicto. O cenário fica mais grave quando essa insatisfação ruminante reverbera amargura, contamina o entorno e pesa ainda mais o ambiente.
A verdade é que se levarmos ao pé da letra os acontecimentos do mundo, nem levantaremos da cama. A desgraceira pessoal em cascata também não anima. Só não é privilégio de ninguém. Todos nós passamos ou passaremos ao menos uma fase do “pare o mundo que eu quero descer”. O direito à expressão de tais indignações é legítimo. É realmente fabuloso execrar demônios. Porém, obrigar o outro a ouvir lamúrias infinitas é amolá-lo. Afiado, corta. Daí vem mais sofrência. “Ninguém me dá atenção” ou “as pessoas não me escutam”. Um muro de lamentações em um processo retroalimentado na modalidade: reclamo, logo, existo. Desabafar com um amigo é diferente de coagi-lo a escutar lamentos incessantemente. Infligir peso aos mais próximos faz do “reclamão” um abusador egoísta.
Curioso é que muitos nem se percebem ao falar exaustivamente de sua dor ou das catástrofes do mundo. É que o apreço à lástima encanta e cega. Daí, só existe o problema. Daí, surgem mais problemas. A ciência já sabe disso. Um estudo do autor, cientista da computação e filósofo, Steven Parton sobre o impacto das emoções negativas provocadas pelas reclamações sugere que elas alteram a estrutura e a função do cérebro. Consequentemente, do restante do organismo. Daquele que diz e daquele que escuta. Partron contempla também em sua pesquisa a relação entre o poder do pensamento e a capacidade de controle de uma pessoa sobre a criação da realidade à sua volta. Para o cientista, reclamações podem sim fomentar realidades desastrosas. Individuais ou em um grupo.
Comprovei, na pele, a teoria de Partron. Em uma fase caótica em que se desfaziam relacionamentos e crenças, preferi, inconscientemente encenar o papel de vítima. Cultuei reclamações como se elas fossem minhas defensoras. Fiquei parada naqueles problemas. Provoquei destruição irreversível. Incapaz de encarar minha crise, projetei amargura a cada reclamar vazio. Com isso, fui algoz do meio ambiente piorando também meu estado. Só depois de estar em cacos, reconheci a importância de cair. Sozinha. Silenciosa. No fundo do poço. Então dei a volta por cima.
Reclamar sem agir é como vomitar. O corpo retira à força o que faz mal em um movimento de sobrevivência. Entendo. O que não faz bem é sair colocando o dedo na goela a cada pedaço de pão velho que se come, pois, o vômito respinga em quem está passando. A reclamação pura e simples, aquela que não “reclama ação íntima ou coletiva”, é inócua. Pensemos. Ficar falando sobre os absurdos da violência doméstica no mundo não vai reduzir os números de agressões contra mulheres, por exemplo. Apenas espalha a indignação e raiva. Por outro lado, criar soluções para minimizar a situação no bairro onde mora é uma estratégia exequível.
Reforço minha defesa ao direito individual à expressão de emoções. Sei e sinto que a vida não está fácil para ninguém. Como saída, elejo o humor como porta de emergência em casos de catástrofes pessoais e mundiais. Ele dá acesso à mudança de estado de espírito e fomenta a reação. Nada de piadas ou risos nervosos. Eu me refiro a brincadeiras para tratar dos infortúnios nossos de cada dia, (co)criações que despertem a intuição e a arte. Falar de modo divertido ou irônico sobre o problema. Permitir que o sujeito espirituoso que nos habita desperte e conduza alguns trechos do caminho. Buscar na sátira o antídoto para o amargo. No silêncio também reside a elaboração. Por que não deixar o fato em um molho consciente? Creio que tudo isso ajuda a gente a viver a crise para não viver da crise, entende? Isso porque também não adianta reclamar da natureza indomável da vida. Ela é inerente ao ato de existir. E se apresenta em loop. Crianças de três anos com câncer. Muitos desonestos no poder. Professores ganhando mal enquanto bancos faturam alto. Empresários misturam papel na carne. Querem colocar veneno nas nossas verduras…