O desafio de escrever uma lista com os livros que mais o influenciaram causa um problema: ele desperta o Ego, aquele pequeno argentino que vive dentro de cada um de nós. “Coloca ‘Ulysses’, de James Joyce!”, sugere o Ego. “Não se esqueça dos russos e acrescente ‘Dom Quixote’ só pra esnobar!” Mas foram esses os livros realmente importantes que li e que me motivaram a escrever? Ainda me lembro muito bem do príncipe Pierre perdido no meio da guerra, indeciso entre a admiração por Napoleão e o dever de defender a Mãe Rússia, mas não foi ele quem me inspirou a fazer livros.
O almoço de Leopold Bloom em “Ulysses” é maravilhosamente bem escrito e engenhosamente arquitetado, mas isso não me fez sentar na frente de uma tela e batucar no teclado para uma plateia que eu nem sabia se existia. “No me rompa las pelotas!”, eu disse ao Ego e optei por fazer outra coisa: uma lista afetiva de sete obras que me abriram as portas para diversas outras leituras. Afinal, é essa a função de todo bom livro.
Decidi também que ia escrever sem consulta ao Google e à Wikipédia, convicto de que um livro que não deixou marca alguma não deve ser buscado na nuvem e nem nas nuvens. O que não lembrei, não entrou. Afinal, se você leu um livro que julga extremamente importante, mas se esqueceu completamente dele, um dos dois está mentindo: ou é você ou é o livro.

Quis o Destino, esse deus cruel e insano, que meu primeiro livro inesquecível fosse justamente a “Odisseia”, de Homero, que é a mãe de todas as… bem, de todas as odisseias. Não me julgue pretensioso. Li o livro numa versão em prosa recontada para jovens. Era uma edição pocket da Ediouro que soltava a capa e todas as páginas antes que você terminasse o prefácio. Mas me lembro muito bem dos homens transformados em porcos na ilha de Circe, de Odisseu amarrado ao mastro do navio para ouvir as sereias e do cíclope Polifermo cegado pelo herói e gritando: “Ninguém me feriu! Ninguém me feriu!”. Para quem não conhece a história, a coisa é assim: o herói e seus homens buscam abrigo na casa do monstro, que secretamente deseja transformá-los em churrasco grego durante a noite. Odisseu desconfia da tramoia e, espertamente, diz a Polifermo que se chama “Ninguém”. Quando o gigante adormece, Odisseu fura o olho dele com uma lança. A criatura berra por socorro aos gritos de “Ninguém que feriu!”. Ao ouvir isso, os outros ciclopes concluem que tudo está bem e o herói tem a chance de escapar. Esse episódio também é a inspiração de um ótimo western spaghetti dirigido por Tonino Valerii e escrito por Sérgio Leone, “Meu Nome é Ninguém”, com Terence Hill e Henry Fonda. Lembro ainda da emoção que senti quando o protagonista finalmente chega à Ítaca, sua terra natal, e o cachorro é o único a reconhecê-lo, para morrer de velhice logo depois. Ulisses/ Odisseu é o primeiro herói racional da literatura ocidental. Em vez de tensionar os músculos, como faz Aquiles, ele exercita o cérebro. E a caprichosa deusa Atena favorece apenas àqueles que usam cabeça para pensar em vez de suporte para boné com a aba virada pra trás.

Meu segundo herói literário inesquecível também é cerebral, já que o detetive inglês é a matriz de todo investigador detalhista, frívolo e infalível. Culpem ao Destino, esse deus desocupado e sem noção. Meu pai tinha uma coleção enorme de livros policiais. Um monte de pockets da editora Monterrey, em especial a série ZZ7 com a bela espiã Brigitte Montfort, a letal agente “Baby”, da CIA. Mas a estante também guardava biscoitos finos como Arsène Lupin, Shell Scott e Sherlock Holmes. Li tudo de Sherlock, a começar pelo primeiro livro, “Um Estudo em Vermelho”, que tem uma excelente estrutura em dois tempos narrativos — formato copiado por Rubem Fonseca em “A Grande Arte”. Funciona assim: a investigação começa e, quando o detetive está prestes a desvendar a coisa toda, a história é interrompida para contar outra aventura completamente diferente. Só na terceira parte, quando a trama principal é retomada, você entende que o “bloco do meio” era sobre o assassino. Conan Doyle me levou não apenas a outros autores do gênero policial como Agatha Christie e o excelente John Le Carré, mas também abriu as portas para uma penca de escritores britânicos, como Anthony Burgess, P. G. Wodehouse, Evelyn Waugh, Joseph Conrad (é polonês, mas escrevia em inglês) e até James Joyce, aquele irlandês que fez uma paródia da “Odisseia” no romance “Ulysses”.

Oswald de Andrade eu li por volta dos 16 anos, junto com “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Tinha lido Machado antes e achado chato. Ninguém deve ler Machadão aos 15 anos (e ninguém deve ler José de Alencar em idade alguma, mas isso é outra história). Aos 15 eu não tinha maturidade para entender o drama dos cornos burgueses e nem para apreciar a ironia e a preciosidade do texto. Releio Machado a cada dois anos agora e fico sempre maravilhado, porém indignado com a nossa decadência cultural. Mas eu falava era do Oswald. Foi com ele que entendi essa coisa do romance multifacetado e desconstruído. A narrativa em mini capítulos me levou a Kurt Vonnegut, Márcio Souza, Campos de Carvalho e Laurence Sterne que, por sua vez, me mandou de volta a Machado de Assis. Já a modernidade do humor oswaldiano me levou a todos os modernistas, surrealistas, simbolistas, cubistas, dadaístas e vários outros “istas” que escreviam manifestos que vivo lendo e relendo. Sei que não faz sentido ler um manifesto dos anos 10 do século passado, mas eu leio. Meu romance “Delacroix Escapa das Chamas” deve bastante a Kurt Vonnegut, mas deve ainda mais a Oswald de Andrade. Além disso, como falei, foi ele quem me levou de volta ao Machadão, quando percebi que o romance desconstruído do modernista paulista era apenas uma radicalização de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que continua sendo o maior romance brasileiro de todos os tempos.

Esse livro de Stanislaw Lem foi a primeira ficção científica séria que li na vida. Gostava de Perry Rhodan e sempre fui fã de Star Trek, mas nada disso me preparou para a história de Solaris, um planeta cuja superfície é tomada por um líquido gelatinoso que se assemelha a um oceano terrestre, mas que se comporta de maneira extremamente bizarra. Construções geométricas surgem repentinamente no meio do “mar” e se desfazem. Outras se “congelam”, endurecem, permitindo uma observação mais próxima. E se você fica muito tempo na “praia”, a “água” se ergue para observá-lo durante longos segundos, até perder o interesse por você. As duas adaptações cinematográficas do livro ignoraram esses detalhes, que são importantes para a conclusão do protagonista — um psicólogo com pós-graduação em “solarística” que chega ao planeta para investigar porque a base terrestre instalada ali não manda mais notícias. “Solaris” me levou a autores como Harry Harrison, Robert Silverberg, William Gibson e Philip K. Dick. Gente que nunca teve o reconhecimento literário que merece porque se dedicou a um subgênero fantástico, para o qual os acadêmicos sempre torcem o nariz empinado. Acadêmico gosta é de dramalhão mal escrito passado no Capão Redondo ou em algum outro lugar deprimente esquecido por Deus e pelos homens. É um erro. A vida é chata e melodramática e então você morre. Ninguém devia ler livros que falam sobre essa mesma bobagem.

Sou muito fã dos filmes do odioso opressorzinho cis-hetero patriarcal de Manhattan, mas também gosto bastante da prosa dele. Os contos e crônicas de Woody Allen me revelaram um texto humorístico inteligente, bem escrito e que não ficava o tempo todo se lamentando do capitalismo bobo, feio e cruel. Na época que o livro foi lançado aqui, 1978, o humor brasileiro só se dedicava ao mimimi. Minto. Tinha Ivan Lessa e Millôr Fernandes, que sempre estiveram em outro patamar, mas o tom das charges e textos era, no geral, chato e sindical. O humor brasileiro voltou a isso nos últimos anos, mas isso é discussão pra outra hora. As paródias literárias do Woody Allen, todas publicadas originalmente na “New Yorker”, me levaram a ler toda a turma que havia escrito para a revista antes dele. Gente como Robert Benchley, James Thurber e S. J. Perelman. E todos eles juntos me levaram a perseguir uma pequena obra-prima chamada “A Subtreasury of the American Humor”, editada em 1941 por E. B. White, também colaborador da “New Yorker”. O livro reúne o melhor do texto satírico americano até a primeira metade do século 20. Quando soube da existência da obra, passei anos fuçando sebos virtuais até que achei um exemplar que — não conte pra ninguém! — tem até um cartão de biblioteca colado na capa. Alguém roubou e vendeu. A maioria dos autores de humor da “New Yorker” não foi editada no Brasil, o que é uma pena. Eles fariam muito bem ao nosso velho humor.

Foi o primeiro Borges que li e segue sendo meu favorito. Caso uma hecatombe destrua a nossa civilização, é possível reconstruir boa parte da literatura usando só esse livrinho de pouco mais de 200 páginas com contos, ensaios e poemas selecionados pelo próprio autor. É nesta antologia que tem o fabuloso “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, uma das melhores narrativas curtas da literatura universal, sobre uma sociedade secreta de enciclopedistas que se propõe a criar um mundo fictício que terminará por eclipsar a realidade. Tem também “O Imortal”, a história de um tribuno romano que sai pelo deserto em busca da cidade dos imortais e acaba encontrando o horror de uma vida sem fim. O livro é um labirinto onde as narrativas conversam e convergem, uma antologia que se lê como um romance. A literatura de alta qualidade de Borges incorpora as grandes obras do cânone, mas também a pulp fiction mais barata, os panfletos esotéricos e até manuais ocultistas de qualidade duvidosa. Escrevi dois livros sobre teorias conspiratórias que devem muito ao escritor argentino. Não pela qualidade do texto, quem me dera, mas pelo olhar simpático para livros que ficam escondidos no lado de baixo da estante. Foi com o cinismo do escritor argentino que descobri estranhos ficcionistas como Jacques Bergier, autor de “O Despertar dos Mágicos”, um livro que os bibliotecários tontos classificam como “não-ficcão”. Umberto Eco, outro dos meus escritores favoritos, também aprendeu com Borges a apreciar essa “literatura B”. Mas só Dan Brown descobriu a forma alquímica para transformar chumbo em ouro. Ou, para ser mais exato, chumbo em chumbo pintado de ouro. Sou mais o Borges. De qualquer forma, se você gosta de “O Código da Vinci”, leia “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada”, o livro de “não-ficção” que inspirou Dan Brown. É muito mais divertido.

Douglas Adams é a minha baleia branca. Meus dois romances, “A Noite dos Cangaceiros Mortos-Vivos” e “Delacroix Escapa das Chamas” são tentativas de criar meu próprio “Guia”, quer dizer, uma busca pelo mesmo humor absurdo, criativo e inteligente. Não consegui, eu sei, mas sigo tentando. Meu próximo romance vai ser uma nova aventura do crítico de arte Wagner Krupa, que vive isolado numa mistura de condomínio com shopping center na São Paulo futurista de 2078. Está no começo ainda, mas de novo vou tentar arpoar minha Moby Dick. O primeiro livro da série de Douglas Adams não é o melhor deles. A coisa esquenta a partir do segundo, “O Restaurante do Fim do Universo” e fica muito boa no terceiro, “A Vida, o Universo e Tudo o Mais”. O quarto, “Adeus e Obrigado Pelos Peixes”, cai um pouco. O quinto, “Praticamente Inofensiva”, foi escrito muito tempo depois e não tem a mesma verve. Adams dialoga com toda a escola do humor inglês e sem ele eu não teria descoberto P. G. Wodehouse, Auberon Waugh, Craig Brown, Julian Barnes e até Martin Amis, um cara que não é exatamente engraçado — mas quem falou que o humor precisa ser engraçado? O objetivo da sátira é criar mundos distorcidos que revelam verdades incômodas. É assim com François Rabelais, Miguel de Cervantes, Jonathan Swift e também com Douglas Adams. Não é por acaso que o lema do site de humor que edito, o República dos Bananas, é uma frase do americano Michael O’Donoghue, que foi editor da revista “National Lampoon” e o primeiro head writer do programa “Saturday Night Live”: “Fazer rir é a forma mais baixa de comédia”. Ele está certo. Mas quando a comédia faz rir e ainda assim é uma grande arte, aí você tem Douglas Adams.