Eu não sabia o que era rock, não sabia o que era MPB, nem sabia o que era música direito, mas já sabia quem era João Gilberto. No começo da década de 1980, o rádio lá em casa ficava ligado direto na JB AM, que alternava notícias, easy listening e sucessos brasileiros. E tocava JG o dia inteiro no radinho, músicas como “Wave”, “Estate”, “Triste” e “Retrato em Branco e Preto”. Muitos anos depois, fui descobrir que, na verdade, a playlist joãogilbertiana da rádio não passava do repertório do álbum “Amoroso” — o LP de 1977 que, hoje, é meu disco de música brasileira favorito de todos os tempos.
João é minha referência mais remota de MPB. Não há muito o que eu possa escrever sobre sua vida pessoal, sua carreira e sua importância como artista que já não tenha sido escrito por gente muito mais talentosa que eu. Então, o que me resta é falar um pouco da importância que ele teve na minha formação musical. O amor foi herdado de minha mãe e permaneceu no decorrer dos anos; enquanto eu me aprofundava em rock, hip hop, eletrônica, jazz e outros bichos, nunca deixei João de lado.
Este ranking, como o da Legião Urbana, é uma lista 100% pessoal e não-canônica. Tive a ideia de elaborá-lo para aproveitar a recente efeméride dos 60 anos de lançamento da música “Chega de Saudade”, marco inaugural da bossa nova. A seguinte lista de 119 músicas considera apenas as faixas creditadas a João em sua carreira solo e lançadas em seus discos oficiais, de estúdio ou ao vivo. (A exceção é a versão de “Me Chama”, lançada apenas na trilha de uma novela da Globo.) A relação foi elaborada a partir desta discografia aqui, com consultas frequentes a meu surrado exemplar do livro “Chega de Saudade”, de Ruy Castro. Como sempre, correções e comentários e xingamentos serão muito bem-vindos.
Fotografia: EBC/TV Brasil
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119 — Frevo — Bom, é isso aí: é um frevo (ou seria uma marchinha?). Se há a voz e o violão de João na gravação de 1959, estão inaudíveis, ainda que a faixa conste de um EP creditado ao cantor.
118 — Quando Ela Sai — Lado A do primeiríssimo single solo de JG, gravado em 1952. Ou seja, seis anos antes de “Chega de Saudade”. Não se ouve vestígio de bossa nova na gravação, um samba-canção no qual João é acompanhado por uma orquestra. Ainda que, aqui e ali, ele arrisque malabarismos que prenunciam as entortadas vocais dos próximos anos. A letra poderia ser uma precursora de “Every Breath You Take” (“Eu sei / Quando ela sai / Eu sei / Tudo o que ela faz (…) Tenho confiança / Nela até demais”).
117 — Meia-luz — O flip-side do primeiro 78 RPM do cantor, totalmente pré-bossa. O arranjo e a voz impostada cheiram a mofo, mas, como em “Quando Ela Sai”, JG já demonstra ousadias na divisão vocal (“No teu seeeio / Não se vê a sinceriiiiiii-daaaa-de…”).
116 — Trenzinho (Trem de Ferro) — Uma marchinha com um quê de cantiga infantil, desconstruída pela interpretação vocal. Mais uma das faixas esquecidas do terceiro LP.
115 — Lá Vem a Baiana — OK, ele é conhecido por adiantar a melodia vocal à harmonia, mas nesta versão para o samba de Dorival Caymmi JG ultrapassa as raias do exagero.
114 — Sorriu para Mim — Uma composição menor de Garoto, um dos ídolos de João, que não foi beneficiada pelo estilo de produção. É curioso notar como os timbres e os arranjos do disco João soam mais datados hoje que os álbuns que o cantor gravou na década de 1970.
113 — Presente de Natal — Outra obscuridade do terceiro disco. Tirante umas poucas notas de piano, João se faz acompanhar apenas do próprio violão.
112 — Rosinha — Samba simplesinho de Jonas Silva, um dos integrantes dos Garotos da Lua. Apenas ingênuo e simpático.
111 — Aos Pés da Cruz — Escondida no final de “Chega de Saudade”, tem cara de filler. João chega a dar uma desafinadinha (sacrilégio!) ao arriscar-se a assobiar a melodia. O cantor manteve a música em seus setlists até a década de 2000.
110 — Rosa Morena — Sambinha arquetípico e um tanto simplório, é uma das composições relativamente pouco conhecidas de Dorival Caymmi. A “outra” morena de “Chega de Saudade”, a de Ary Barroso, é bem melhor.
109 — Malaga — À parte o charme de ouvir JG cantando em italiano, esta canção não chega a se destacar no álbum João.
108 — Guacyra — Mais um resgate de uma canção da era do rádio, registrada no disco ao vivo “Eu Sei que Vou Te Amar”.
107 — A Valsa de Quem Não Tem Amor — Composição de 1945 de Custódio Mesquita & Evaldo Rui, se presta bem aos dribles vocais de João. Uma das letras mais tristes gravadas pelo artista.
106 — Me Chama — O cantor gravou este sucesso de Lobão (!) para a trilha sonora da telenovela “Hipertensão” (1986). As hesitações e acelerações na melodia ficam à beira da autoparódia, e o arranjo de cordas sintetizadas também não ajuda muito.
105 — Bim Bom — Originalmente lançada como o lado B de “Chega de Saudade”. Exibe o estilo, digamos, minimal de João como compositor, como ele mesmo admite na letra (“É só isso o meu baião / E não tem mais nada não”).
104 — Hô-bá-lá-lá — Raro momento do João compositor. De modo inusitado, o violão fica em segundo plano em relação ao piano.
103 — Bahia com H — Registrada em Brasil (1981), disco gravado com os não-tão-novos-baianos Gil, Caetano e Maria Bethânia. Gil e Caetano se revezam na inglória tarefa de imitar o estilo do mestre (e Gil se sai melhor).
102 — A Primeira Vez — Samba delicado, convencional e de letra um tanto deprê, incluído no terceiro LP.
101 — Trevo de Quatro Folhas — Ingênua versão de uma cançãozinha americana mais ingênua ainda, datada de 1927. Despachada em menos de um minuto e meio, transformada num acelerado sambinha.
100 — Trolley Song — Haroldo Barbosa transpôs para o português esta canção de Irving Berlin, cantada por Judy Garland no filme “Agora Seremos Felizes” (1944). João capta muito bem o espírito faceiro e lúdico da melodia.
99 — Não Vou pra Casa — Em 2000, ano em que gravou esta canção, o cantor ainda se dava ao trabalho de avisar: “Eu sou do samba / Pois o samba me criou”. Certo, João, já entendemos!
98 — Se é Por Falta de Adeus — Samba-canção de Dolores Duran & Tom, obviamente de letra dolorida, relido de forma sóbria.
97 — Amor Certinho — Uma das menos conhecidas do segundo disco, é obra do compositor bissexto Roberto Guimarães. Um desafio ao fôlego do intérprete, que dá conta do recado.
96 — No Tabuleiro da Baiana — João reúne todo o “elenco de apoio” do álbum Brasil (Gil, Caetano & Bethânia) em mais um tributo a Ary Barroso. Pro meu gosto, tem João de menos.
95 — Siga — Clare Fischer, autor dos arranjos de João (1990), eventualmente era dado a uns exageros. Esta faixa é um óbvio exemplo, na qual as cordas quase sufocam a performance de JG.
94 — Se é Tarde, Me Perdoa — Canção menor de Lyra/Bôscoli, cuja letra traz um pedido de desculpas de um safardana que passou a noite na gandaia.
93 — Você Vai Ver — Composição de 1980 de Tom Jobim, transformada em um sambinha ligeiro na voz de João. Incluída no mais recente (ainda me recuso a dizer “último”, vai que) disco de estúdio, “João Voz e Violão”, de 2000, produzido por Caetano Veloso.
92 — Segredo — Gravada por Dalva de Oliveira e Nelson Gonçalves, esta canção de Herivelto Martins também se presta ao canto manso de João.
91 — Astronauta (Samba da Pergunta) — Composta por Pingarilho e Marcos Vasconcellos, a canção demonstra a facilidade com que João desmonta métrica & melodia, à beira da dissonância, mas mantendo o conjunto reconhecível. Compare, por exemplo, com a versão bem mais comportada d’Os Cariocas.
90 — Milagre — Repeteco do esquema de “Bahia com H”: Caetano e Gil imitam João, vem João pra fechar e mostrar como se faz.
89 — Só em Teus Braços — O arranjo ambicioso, com cordas em primeiro plano e sopros, embala uma interpretação menos ousada do cantor.
88 — Curare — Assinada por Bororó, sem dúvida é outra das remotas lembranças dos sons que o cantor ouvia no rádio, na juventude. Gravada no disco ao vivo “João Gilberto Prado Pereira de Oliveira”.
87 — Eu e Meu Coração — As íngremes mudanças de tom desta pouco conhecida canção de Inaldo Vilarinho & Antonio Botelho parecem ter sido feitas de encomenda para a voz de João.
86 — O Pato — Mesmo convivendo com os jovens inovadores da primeira onda bossanovística, João nunca abandonou suas antigas referências pessoais. Um bom exemplo é esta canção, sambinha remanescente do repertório dos Garotos da Lua e que o cantor conheceu no fim da década de 1940. De letra bem-humorada, destoa da elegância e da seriedade das canções de Jobim & cia presentes em “O Amor, o Sorriso e a Flor”.
85 — O Barquinho — Uma das canções-clichê da primeira fase da bossa, regravada e parodiada um sem-número de vezes. A definitiva versão, constante de João Gilberto (1961) traz um arranjo elaborado, com metais, piano e cordas sublinhando a melodia. Na segunda passagem da estrofe principal, João parece trocar o barquinho por uma lancha, tal é a velocidade com que vareia a letra.
84 — Bolinha de Papel — Saída do repertório do grupo Anjos do Inferno, era mais um aceno do cantor a suas origens pré-bossa. Com um pouco mais de punch, poderia ser um número típico de gafieira (tem até a metaleira, mas não em brasa).
83 — You Do Something to Me — O cantor submete o sucesso de Cole Porter às suas típicas e velozes atravessadas, em uma recriação suave que vai na contramão da animação de versões mais célebres (como a de Frank Sinatra).
82 — Que Reste-t-il de Nos Amours — É sempre um prazer ouvi-lo cantando em outra língua, com o sotaque brasileiro intacto. Aqui, João atinge tons bem graves, sem perder a segurança. Os excessos dos arranjos de Clare Fischer empanam um pouco a graça da canção.
81 — Menino do Rio — Uma outra lembrança marcante de infância que tenho de João é o especial ao vivo João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, exibido pela rede Globo em 1980. A canção pop de Caetano abre o disco resultante do show, em registro sutil.
80 — Louco — Composição de Wilson Batista famosa na voz de, entre outros, João Nogueira e Emílio Santiago. Gravada no álbum “Live in Tokyo”, a versão preserva, na medida do possível, a métrica original, ainda que João não resista a dar suas esticadinhas (“Conseeeeeee-lhos eu lhe dei”, “Paaaaaara eleamuuuuulher / Amaaada…”).
79 — Ave-Maria no Morro — Ousadia tardia: atacar esta canção de Herivelto Martins, celebrizada por Dalva de Oliveira — uma total antítese do estilo de João, tanto na potência vocal quanto na dramaticidade. JG resolve o dilema transformando o número em uma delicada cantiga. E nem chega perto do famoso agudo de Dalva.
78 — Esperança Perdida — A triste parceria entre Jobim & Billy Blanco ganha versão sóbria e curtinha.
77 — Acapulco — Gravada (claro) no álbum “João Gilberto en Mexico”, é um animado sambinha sem letra, levado só nas onomatopeias.
76 — Eclipse — Outra suave faixa cantada em espanhol, saída do disco gravado no México, em 1970. Composta pelo cubano Ernesto Lecuona, o mesmo autor de “Siboney”.
75 — Farolito — Esta balada-bolero de Agustín Lara foi composta em 1931, ano em que JG nasceu. Curiosamente, o cantor (que deve ter conhecido a música ainda na juventude, em Juazeiro) foi gravá-la em 1970, ano em que Lara faleceu. João interpreta a canção em um tom delicado e mais alto que o costumeiro.
74 — João Marcello — Vertiginoso número instrumental composto em homenagem ao filho de JG, nascido em 1960. Começa só no violão e vai acelerando; imagino a cara dos músicos suando frio para acompanhar João.
73 — Valsa (Como São Lindos os Youguis) — Desencanado de tentar escrever letras, João dedicou essa composição (sem versos, só com “lá-lá-lás”) à filha Bebel. O inventivo arranjo vocal coloca o cantor para duetar consigo mesmo. Pesquisei, mas não consegui descobrir o que seriam youguis e porque eles são lindos.
72 — Undiú — Samba-baião sem letra, levado na base de vocalises. Simples e hipnótico.
71 — Acontece que Eu Sou Baiano — A letra narra o embasbacamento de um baiano diante do requebrado de uma não-nativa, e a interpretação gingada do cantor traduz o encantamento de forma eficaz.
70 — Da Cor do Pecado — Mais uma pérola ancestral sacada do fundo do baú, composta por Bororó e lançada por Silvio Caldas em 1939. Regravada sem maiores ousadias.
69 — Preconceito — O disco “João Gilberto Live at the 19th Montreux Jazz Festival” captura o cantor em seu estado natural: microfone, violão e mais nada. O sambinha de Marino Pinto & Wilson Batista ganha uma versão delicada, que ameniza o drama racial da letra.
68 — Vivo Sonhando — A letra é triste, João sabe disso e seu vocal reflete a tristeza. O arranjo da versão de Getz/Gilberto, entretanto, é puro entardecer tropical para turista bater palma durante a happy hour. Eles não entendiam a letra mesmo…
67 — O Grande Amor — A intepretação que João dá à melodia quase transforma a composição de Jobim/Vinicius em uma prima-irmã de “Insensatez”. A versão original traz um belo interplay entre o sax de Stan Getz e o piano de Tom.
66 — Maria Ninguém — Notável por sua introdução à capela, com vocais encharcados de reverb. A cativante melodia de Carlos Lyra compensa a letra meio ingênua, substituída por scats de João em determinadas passagens.
65 — Um Abraço no Bonfá — Raro número instrumental composto por João. O violão bossanovístico é daqueles dignos de almanaque, acompanhado apenas por uma leve percussão.
64 — Lobo Bobo — Uma das músicas mais curtinhas (1:20) da carreira do intérprete, destaca-se pela letra repleta de segundas, terceiras e quartas intenções, escrita pelo priápico Ronaldo Bôscoli.
63 — Só Danço Samba — Número de Jobim/Vinicius que, gravado em 1964 por João, certamente embutia uma mensagem subliminar: o negócio do cantor era samba, bossa nova é mania passageira. (Se bem que a versão original, graças à dominante presença de Stan Getz, cai mais pro jazz.)
62 — O Nosso Amor — Pouco depois de gravar “Chega de Saudade”, João registraria em estúdio quatro canções feitas para a trilha sonora do filme “Orfeu do Carnaval”, de 1958. O resultado foi um “compacto duplo” lançado com o pouco imaginativo título de “João Gilberto Cantando as Músicas do Film (sic) Orfeu do Carnaval”. “O Nosso Amor” é um crossover entre a bossa nova e o sambão mais tradicional — só que desconjuntado. João faz sua versão sutil, daí irrompe um coro vocal se esgoelando no refrão, acompanhado de uma bateria de escola de samba.
61 — Disse Alguém — Sim, é uma versão de “All of Me”, famosa na voz de Frank Sinatra e de mais uma porrada de gente. João, Caetano e Gil cantam afinadinhos e comportadinhos, sem idiossincrasias bossanovescas.
60 — Outra Vez — João aperta o passo e dá trabalho para a galera da percussão que o acompanha. A breve intervenção das cordas arranjadas por Jobim me parece dispensável.
59 — A Felicidade — Mais uma mistura meio torta de sambão com bossa nova, gravada para o EP …Orfeu do Carnaval. Na dúvida, fique com a versão ao vivo lançada em 1986 (João Gilberto Live at the 19th Montreux Jazz Festival), só ao violão.
58 — Cordeiro de Nanã — Praticamente uma vinheta, encerrava de forma minimal e luminosa o disco “Brasil”.
57 — Eu Sambo Mesmo — Na faixa de abertura de seu disco de estúdio de 1991, João reafirma: samba mesmo, com vontade de sambar. Além das aceleradas & freadas de sempre, há várias mudanças de tom, as quais o cantor encara de forma gaiata.
56 — Palpite Infeliz — “João” (1991) contém vários sambas antigos e meio obscuros. Não é o caso deste aqui, um clássico de Noel Rosa. O arranjo mais contido, que dá espaço para a voz e o violão, funciona bem.
55 — Desde que o Samba é Samba — Interpretação contida, quase flat, para a composição de Caetano Veloso. Mas ele não se furta a brincar com a melodia.
54 — Eu Sei que Vou te Amar — Um dos poucos clássicos de Tom & Vinicius que João nunca gravou em estúdio, batiza o álbum ao vivo que ele lançou em 1994. Registrada só ao violão, não tinha como dar errado.
53 — Doralice — Ao produzir o segundo LP de JG, Tom Jobim acertadamente valorizou mais o violão (que, no disco anterior, às vezes ficava meio soterrado nos arranjos). Esta versão da canção de Caymmi é um bom exemplo.
52 — Una Mujer — Um dos bons momentos de “João”, o disco de 1991. A orquestração, como em várias faixas do álbum, soa um tiquinho exagerada, mas não chega a eclipsar a voz e o violão.
51 — Eu Vim da Bahia — Além de sua conhecida amizade com os Novos Baianos, no começo da década de 1970 JG se aproximou de outros conterrâneos mais jovens. Esta canção, feita por Gilberto Gil e que só seria gravada pelo autor mais de 40 anos depois, mostra João bem à vontade com uma letra quase biográfica (“Eu vim, eu vim da Bahia cantar (…) / Tanta coisa bonita que tem / Na Bahia que é o meu lugar”).
50 — É Preciso Perdoar — O “Álbum Branco” é um disco pra cima e luminoso, e esta canção em tom menor é seu momento mais melancólico.
49 — Você Não Sabe Amar — João valoriza a melodia da amargurada canção de Caymmi, com um resultado tocante.
48 — Sampa — O repertório do disco João é todo composto de músicas pré-bossa nova, à exceção deste sucesso de Caetano Veloso. Todo o esforço que Caê empregou para encaixar a complexa letra na melodia é ignorado por João, que sai rasgando a métrica original (chega praticamente a recitar a letra em algumas passagens). Dá certo.
47 — Besame Mucho — João gravou duas vezes este clássico latino, em 1970 (…En Mexico) e 1977 (Amoroso). A primeira versão é a melhor: traz uma de suas intepretações vocais mais delicadas e suaves, anulando o clima melodramático geralmente associado à canção.
46 — Na Baixa do Sapateiro — Mais uma faixa do clássico “álbum branco” (João Gilberto, 1973) que dispensa letra. A composição de Ary Barroso vem só ao violão, ancorada por uma percussão frenética.
45 — O Sapo — Antes de Caetano Veloso botar a letra em “A Rã”, de João Donato, JG gravou essa versão onomatopeica e título de gênero invertido. Vocal, violão, percussão e piano em total festa.
44 — Coração Vagabundo — Nesta versão quase fiel à original de Caetano, João mexe um pouquinho na harmonia e brinca de leve com a melodia. Mínima, mas relevante mudança: ele não canta “meu coração vagabundo” e sim apenas “coração vagabundo”. A brevidade da gravação amortece a atmosfera sombria da canção.
43 — Canta Brasil — Mais famosa na versão de Gal Costa, a canção de David Nasser & Alcyr Pires Vermelho ganha um suntuoso arranjo de cordas e sopros.
42 — É Luxo Só — Depois de ser maltratado pela morena da boca de ouro, João volta a sofrer (agora por uma mulata) na música de encerramento de “Chega de Saudade”. O trabalho de percussão aproxima a faixa de um samba mais convencional.
41 — Fotografia — Mais um dos clássicos jobinianos que não foi gravado em estúdio. Só ao violão, ao vivo, João engole as consoantes (“mar” vira “má”, “bar” vira “bá”, “fechar” vira “fechá”) e atropela a melodia naquele seu estilo inimitável.
40 — Eu e a Brisa — O clássico de Johnny Alf é “maltratado”, no melhor dos sentidos, por João, em uma versão gravada ao vivo. Ele parece hesitar entre a cadência original e suas invencionices instintivas, mas naturalmente é tudo premeditado.
39 — Avarandado — Para a canção de Caetano Veloso, João assume um tom ainda mais intimista que o de costume (é possível ouvir sua respiração entre os versos). A letra é quase um contraponto à triste madrugada de “É Preciso Perdoar”, do mesmo disco.
38 — Lígia — Gravada por João no álbum “Best of Both Worlds”, que marcou seu reencontro com Stan Getz (e com Miúcha no lugar de Astrud). Em vez de acelerar a melodia, o cantor a estica, de forma dolente.
37 — Triste — Seria o primeiro uso do termo “avião” como sinônimo de mulher bonita? João canta que “Nunca vai sê / Nunca vai dá / Um sonhadô / Tem que acordar”, mas o vocal e o arranjo são tão sedutores que acabamos convencidos de que, sim, um dia vai dar (epa!).
36 — Aquarela do Brasil — É difícil fugir do óbvio ao reinterpretar a mais conhecida música de Ary Barroso, mas o difícil, para João, é moleza. A versão de estúdio, do disco Brasil, conta com a participação de Gil & Caetano, e é mais agradável que a registrada em João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (na qual as cordas sufocam o vocal e o violão).
35 — Sandália de Prata — Isso aqui, ô-ô, é um montão de Brasil, João. Imperturbável no tom da interpretação, preciso como nunca nos acordes, ele faz tudo parecer fácil demais… mas vai tentar fazer, pra tu ver só como é. Minha passagem favorita é a elipse em “Bota a sandáaaaalia de pra-ti-vem-pro saaaamba / Samba-aaar”.
34 — “S’Wonderful” — Ao ouvirmos esta versão para o sucesso de Gershwin, faixa de abertura de “Amoroso”, é praticamente possível ver João sorrindo ao cantar “Uondêfol / Mahvellos” — ou “Wonderful / Marvelous”, em baianês.
33 — Pra Machucar Meu Coração — Muita gente associa a bossa nova a música de elevador, e a “culpa” não deixa de ser do álbum “Getz/Gilberto” e sua sonoridade mansinha. Como diria Roberto, eles estão surdos: basta prestar atenção na descadeirante divisão de versos que João aplica aqui, dando outra feição ao clássico de Ary Barroso.
32 — Manhã de Carnaval — O lindo arranjo orquestral é o destaque para a versão do samba-canção de Bonfá & Antônio Maria. João tanto sabia disso, que só começa a cantar depois de um minuto. Em seu vocal, uma raridade: aqui e ali, um vibrato, ainda que de leve.
31 — Samba da Minha Terra — Ousado, João faz quase 30 segundos de scats na introdução, antes de aplicar suas típicas aceleradas & freadas (“No sôoombaaah me criei…”) à melodia, como se fosse um vocalista de jazz.
30 — Caminhos Cruzados — “Amoroso” é, claro, um disco romântico. Este sambinha doce-amargo de Tom aposta que “só um novo amor / Pode a saudade apagar”, enquanto as cordas arranjadas por Claus Ogerman escondem o violão.
29 — Jou Jou e Balangandans — Quem viu, não esquece: João balançando o joelho freneticamente, fazendo caretas ao cantar… até que irrompe Rita Lee, para completar o dueto na marchinha de Lamartine Babo. Ele larga o violão! Rita sorri e revira os olhinhos, mas João, tímido, não a encara em momento algum. O ponto alto do especial da Globo de 1980 que rendeu o disco ao vivo “João Gilberto Prado Pereira de Oliveira”.
28 — Morena Boca de Ouro — Na breve recriação do clássico de Ary Barroso, João demonstra de forma inigualável sua versatilidade vocal — não apenas em termos de subidas e descidas de tom, mas também ao alternar ironia, desejo e prostração diante da morena (que não dá mole).
27 — Izaura — O minimalismo do “Álbum Branco” de 1973, gravado só com violão e percussão, é quebrado aqui com os vocais de apoio de Miúcha, mulher de João na época.
26 — Eu Quero um Samba — Eu quero um samba feito só pra mim”, canta ele. Ora, todo samba que João canta é feito só pra ele, e esta versão da composição de Janet de Almeida & Haroldo Barbosa não é exceção. Pontos altos: as pausas engolidas (“meacabarmevirarmeespalhar”) e os scats extemporâneos (“jab-jab-jab-zoiú-pom-porororom-zoiú”).
25 — Ela é Carioca — Ele atrasa, ele adianta, mas nunca perde o compasso. E o violão fica lá, sem um vacilo, escoltado por suaves sopros e cordas. Essa versão de 1970 seria o template para os arranjos de quase todos os seus discos daquela década.
24 — Pra Quê Discutir com Madame? — Crítica social da pesada aqui, disfarçada na implicância brejeira com uma certa “madame” que não vê valor no samba. Transpondo a discussão para a trajetória de João, poderia ser uma estocada em quem enxerga uma suposta superioridade da bossa nova sobre o samba (hipótese obviamente descartada pelo próprio JG).
23 — The Girl From Ipanema — A versão original está no clássico “Getz/Gilberto”, um dueto entre João e sua girl na época, Astrud. Lançada em 1964, transformou a bossa nova em febre mundial, ganhou Grammy, foi regravada trocentas vezes etc.
22 — O Amor em Paz — Na delicada versão registrada no terceiro álbum de João, o arranjo elaborado sobrepuja o violão… mas a voz sobrepuja o arranjo. O contraste entre a letra otimista e os timbres sombrios das cordas e metais é de arrepiar.
21 — Brigas Nunca Mais — Outro dos highlights do álbum de estreia, assinado por Tom & Vinicius. É uma delícia ouvir o modo como ele canta “amô” (em vez de “amor”) e “mostrô” (no lugar de “mostrou”).
20 — Meditação — A intro traz um dos mais famosos vocalises gravados por João. (Gal Costa se apropriou da cantarolada em sua versão de “Falsa Baiana”.) Um dos grandes clássicos da parceria Jobim/Mendonça. A versão original, incluída em “O Amor, o Sorriso e a Flor”, é notável pela concisão (1:46); é como se João soubesse que não precisava desperdiçar sequer um acorde.
19 — De Conversa em Conversa — O ano era 1970 e João já tinha sepultado de vez a bossa nova. A bossa passou e ele continuou. Seu approach sobre o repertório de sambas pré-1958 continuou o mesmo, como pode ser comprovado nesta maravilha que abre o álbum “João Gilberto en Mexico”.
18 — Falsa Baiana — Pode ter tido trocentas versões, mas é mais uma daquelas músicas que parecem ter sido feitas para João — e apenas João — cantar. O vocal é um primor de contenção, com subidas e descidas incrivelmente sutis.
17 — Este Seu Olhar — Interpretação econômica e definitiva para a canção de Jobim, em versão minimalista até mesmo para os padrões de João: além do violão, apenas um eco (ligeiramente fantasmagórico) na voz e mais nada.
16 — Corcovado — Vamos dar crédito a quem merece: compositor da canção e autor do arranjo, aqui Tom Jobim é tão importante quanto João. A doçura das cordas e sopros, combinada à letra, nos transportam instantaneamente àquele período que os antigos chamavam de “anos dourados” do Rio de Janeiro. O verso “Um cantinho, um violão” virou um clichê da bossa nova.
15 — Saudade Fez um Samba — “Deixa que o meu samba sabe tudo sem você / Não acredito que meu samba só dependa de você”. Apesar de ser uma composição da nova geração (Lyra & Bôscoli), o recado era direto: quem precisava de João era a bossa nova, e não o contrário. O samba dele já sabia tudo, sem precisar deles.
14 — Águas de Março — Seria a versão definitiva do hit de Jobim? Eu, particularmente, prefiro a gravação de João ao mais popular dueto entre Tom & Elis. Incrível o modo como ele acelera loucamente a melodia vocal sem nunca perder a batida do violão.
13 — Saudade da Bahia — Sem migrar para o Rio, João Gilberto nunca teria se tornado JOÃO GILBERTO, mas a Bahia jamais saiu de seu coração. Entre os vários retornos que o cantor fez à obra de Caymmi, este, constante do terceiro álbum, é o mais doce e belo.
12 — Tintin por Tintin — O modo faceiro como ele canta disfarça o tom de despedida da letra de Haroldo Barbosa. O arranjo pende para o samba-jazz, em especial na coda instrumental.
11 — Chega de Saudade — Eis aí a pedra de Roseta da bossa, a canção que codificou toda uma nova maneira de cantar, de tocar violão (com a batida que sintetizava o naipe de percussão do samba tradicional), que sepultou de vez os dós-de-peito e os embolorados sambas-canção. É a abertura (e faixa-título) do primeiro LP de João (1958), nunca deixou o repertório de seus shows e foi regravada para encerrar seu derradeiro LP de estúdio, de 2000.
10 — Desafinado — “Chega de Saudade” pode ter vindo primeiro, mas a real carta de intenções da bossa estava aqui. Letra provocativa e melodia entortante, compostas por Jobim & Newton Mendonça como uma suposta defesa dos desafinados — e que, por obra do destino, caiu nas mãos do mais afinado de todos os intérpretes, cujo estilo, de tão inovador, causou estranheza ao ser associado ao título da canção.
9 — Adeus América — De arrepiar esta versão, gravada em 1985 em Montreux. Mais ainda se compararmos a letra com o périplo do próprio João pela América do Norte nas décadas de 1960 e 1970. “Chega de lights e all rights, good fights, good nights / Isso não dá mais pra mim”, canta ele logo antes de repetir que “o samba mandou me chamar”.
8 — Sem Compromisso — Sei que estou me repetindo, mas depois de ouvi-lo cantando essa, é impossível retornar a qualquer outra interpretação. Repete várias vezes a letra inteira, e a cada passagem, imprime mudanças leves, mas cruciais, à métrica — e parece se divertir à vera enquanto canta, como se zombasse dos apuros do ciumento protagonista da letra.
7 — Estate — João se arrisca no italiano e sai-se muito bem, em uma das mais doces interpretações de sua carreira. Para quem achar os synths e cordas de “Amoroso” excessivos, sempre há a versão ao vivo em Montreux.
6 — Retrato em Branco e Preto — Gravada originalmente em “Best of Both Worlds”, é a confirmação final dos poderes sobrehumanos do cantor na subversão da métrica (“procuraaaaaaaaaaar / O desconsolo”) e na montanha-russa de tonalidades vocais (é de arrepiar quando ele vai lá embaixo em “Nego tanto / Evito tanto / E que no entanto”). A versão de “Amoroso” é adornada por cordas melodramáticas, mas a tristeza da gravação ao vivo de 1987, só com voz & violão, é insuperável.
5 — Wave — Uma das minhas favoritas na infância. Uma canção de amor ao Rio — ao mar, ao céu, e, decerto, a uma mulher carioca (ou a todas?). É samba, mas não é samba, é bossa nova, mas não é bossa nova; é só João.
4 — Insensatez — Outra gravação na qual os arranjos de Tom (em especial os contrapontos graves dos metais) merecem tanto destaque quanto a voz e o violão. A doçura nunca exagerada da orquestração rebate o travo amargo da letra, em um efeito sinestésico.
3 — Você e Eu — Faceiro e despretensioso sambinha que ajudou a inaugurar uma parceria inesperada: Carlos Lyra & Vinicius. Sua aparente simplicidade é traída pela complexidade da harmonia do violão, pela subida de tom na escalada rumo ao refrão e pelo longo break instrumental — João só canta a letra uma vez, depois segue-se mais de um minuto sem vocais. Ousado!
2 — Discussão — Um minuto, 55 segundos: é o que dura a melhor parceria entre Jobim & Mendonça. O arranjo é surpreendente, com uma metaleira dissonante na abertura. Para ganhar a discussão sem fazer força, João assume seu tom mais manhoso. A passagem na qual ele canta “Se o re-eee-sultado / É solidão”) é um dos maiores momentos da história da música brasileira.
1 — Coisa Mais Linda — Se um dia, alguém — um estrangeiro, um alienígena — me perguntasse se existe uma única canção que resuma toda a música brasileira, eu indicaria esta gravação de João. A suavidade dos sopros, o sotaque dele e seu jeito de cantar, a leveza da percussão, a batida do violão: isso tudo é o Brasil em forma de música, um Brasil de uma época melhor, mais bela e feliz.
Foi problemático fazer a playlist do Spotify para este ranking. A discografia de JG está repleta de zonas cinzas, problemas contratuais e títulos fora de catálogo. Por exemplo, o serviço de streaming não oferece o antológico disco branco de 1973, nem o igualmente essencial disco ao vivo gravado em Montreux, ou o último álbum de estúdio, Voz e Violão. Além disso, uma barafunda de coletâneas apócrifas ocupa o lugar de vários lançamentos oficiais.
Clique no link para ouvir: Todas as 119 músicas de João Gilberto, da pior à melhor
Marco Antonio Barbosa é jornalista, edita o Telhado de Vidro e o projeto musical Borealis. Twitter: @BartBarbosa