A Revista Bula realizou uma enquete entre os meses de janeiro e agosto de 2018, com o objetivo de descobrir quais são, segundo os leitores, os melhores romances brasileiros publicados no século 21. A consulta foi feita a colaboradores, assinantes — a partir da newsletter —, e seguidores da página da revista no Facebook e no Twitter. Foram considerados apenas os romances brasileiros publicados a partir do dia 1º de janeiro de 2001, e apenas um livro por autor. Nos casos de autores que tiveram mais de um livro citado, foi considerado apenas o romance que obteve o maior número de indicações na pesquisa. O critério de desempate, quando necessário, foi a nota atribuída aos títulos na rede social de leitura Skoob. Os livros foram divididos em seis categorias, de acordo com o número de indicações: +100, +80, +60, +40, +30 e +20. As sinopses são adaptadas das utilizadas pelas editoras.
Foram lembrados autores de diferentes regiões do Brasil, em especial a Sudeste. São Paulo foi o estado com o maior número de autores citados, com sete indicações, seguido do Rio de Janeiro, com seis autores indicados, e de Minas Gerais, com quatro. Entre os escritores cujas obras foram selecionadas, apenas quatro não estão vivos: João Ubaldo Ribeiro, Elvira Vigna, Bartolomeu Campos de Queirós e Victor Heringer. Com relação à idade, o mais jovem seria Heringer, que nasceu em 1988, e o mais velho é Bernardo Kucinski, nascido em 1937.
Livros que obtiveram mais de 100 indicações
Zeca, um ex-cineasta marginal, é obrigado a filmar vídeos promocionais para sobreviver. “Holisticofrenia” é o único longa-metragem em seu currículo, rodado sem recorrer à verba oficial ou à renúncia fiscal. “A única renúncia no filme foi à lógica”, diz o protagonista. Vivendo na base do improviso, sem dinheiro, ele precisa rodar um vídeo institucional sobre embutidos de frango. Sem saber ao certo por onde começar, ele acaba entrando em uma espiral de sexo, bebidas e drogas.
Cristovão Tezza expõe as dificuldades, inúmeras, e as saborosas vitórias de criar um filho com síndrome de Down, Felipe, de 26 anos. O autor aproveita as questões que apareceram pelo caminho para reordenar a própria existência: a experimentação da vida em comunidade quando adolescente, a rotina como ilegal na Alemanha para ganhar dinheiro, as dificuldades de escritor com trinta e poucos anos e alguns livros na gaveta, e a pretensa estabilidade com o cargo de professor universitário.
Livros que obtiveram mais de 80 indicações
Na Manaus dos anos 1950 e 60, dois meninos travam uma amizade duradoura. De um lado, Olavo, ou Lavo, menino órfão, criado por dois tios; de outro, Raimundo, ou Mundo, filho do aristocrático Trajano. A fim de realizar suas inclinações artísticas, Mundo engalfinha-se numa luta contra o pai, a província, a moral dominante e os militares que tomam o poder em 1964. A luta se transforma em fuga rebelde, que alcança Berlim e Londres, de onde ele contata o amigo Lavo, agora advogado.
O fotógrafo Cauby está convalescendo de um trauma numa pensão barata, numa cidade do Pará prestes a ser palco de uma nova corrida do ouro. Sua voz é impregnada da experiência de quem aprendeu todas as regras de sobrevivência no submundo — mas não é do ambiente hostil ao seu redor que ele está falando. O motivo de sua descida ao inferno é Lavínia, a misteriosa e sedutora mulher de Ernani, um pastor evangélico, retirada das ruas e das drogas no passado.
Livros que obtiveram mais de 60 indicações
Um professor de educação física busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista, cujo nome não conhecemos, se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores.
Desenganado pelos médicos, Murilo Filho, um cronista esportivo de 80 anos, tenta se reaproximar do filho, Neto, com quem brigou há um quarto de século. Toda semana, em pescarias dominicais, Filho preenche com saborosas histórias dos craques do passado o abismo que o separa de seu rebento. Revisor de livros de autoajuda, Neto leva uma vida medíocre colecionando quinquilharias dos anos 1970 e conquistando moças. Desde os 5 anos, quando a mãe se suicidou, sente-se desprezado pelo pai.
Duas irmãs, filhas de um fazendeiro fluminense, são as figuras centrais deste romance. Clarice, a mais velha, sempre esteve fadada a se casar com o filho do dono da fazenda vizinha, enquanto Maria Inês, a mais nova, acaba por se tornar testemunha de um abuso que dilaceraria a vida da irmã. Afonso Olímpio, o pai, vaga como uma sombra enigmática e taciturna, enquanto a mulher, a impotente Otacília, vai se dando conta de sua infelicidade, e tenta resgatar as filhas da desgraça silenciosa.
Livros que obtiveram mais de 40 indicações
Em 1939, um jovem e promissor antropólogo americano, Buell Quain, se matou, aos 27 anos, enquanto tentava voltar para a civilização, vindo de uma aldeia indígena no interior do Brasil. O caso se tornou um tabu para a antropologia brasileira, foi logo esquecido e permaneceu em grande parte desconhecido do público. 62 anos depois, ao tomar conhecimento da história por acaso, o narrador deste livro é levado a investigar de maneira obsessiva e inexplicada as razões do suicídio do antropólogo.
No calor de um subúrbio carioca, um garoto cresce em meio a partidas de futebol, conversas sobre terreiros e o passado de seu pai, um médico na década de 1970. Na adolescência, ele recebe em casa um menino apadrinhado de seu pai, que morre tempos depois num episódio de agressão. O garoto cresce e esse passado o assombra diariamente, ditando os rumos de sua vida. Essa história, aparentemente banal, é desenvolvida com maestria ficcional e grandeza quase machadiana.
Dois estranhos se encontram num verão escaldante no Rio de Janeiro. Ela é uma designer em busca de trabalho, ele foi contratado para informatizar uma editora moribunda. O acaso junta os protagonistas numa sala, onde dia após dia ele relata a ela seus encontros frequentes com prostitutas. Ela mais ouve do que fala, enquanto preenche na cabeça as lacunas daquela narrativa. Elvira Vigna parte desse esqueleto para criar um livro sobre relacionamentos, poder, mentiras e imaginação.
O 9 de maio de 2000 é um dia qualquer em São Paulo. Os habitantes seguem realizando pequenos e grandes feitos cotidianos, protagonistas de uma narrativa subterrânea, que representa o próprio tecido da cidade. Para captar essa polifonia urbana, Ruffato estruturou seu romance em 69 episódios, cada qual com registro e fôlego próprios, alternando entre poesia, discurso publicitário, música, teatro e prosa, instantâneos de uma cidade que se move deixando para trás um rastro de esquecidos.
Ao concluir a autobiografia romanceada “O ginógrafo”, a pedido de um bizarro executivo alemão que fez carreira no Rio de Janeiro, José Costa, um ghost-writer de talento fora do comum, se vê diante de um impasse criativo e existencial. “Gênio”, nas palavras do sócio, que o explora na “agência cultural” que dividem em Copacabana, Costa, meio sem querer, de mera escrita sob encomenda passa a praticar “alta literatura”. Também meio sem querer, vai parar em Budapeste.
Livros que obtiveram mais de 30 indicações
Pais, avós, empregadas, vizinhos, namoradas, prostitutas, michês, mendigos e apresentadores de programas de auditório são as personagens liricamente torpes que frequentam este primeiro romance de Marcelo Mirisola, um retrato provocante da geração classe média dos anos 1970 e 1980. Na obra, conforme escreveu Moacyr Scliar para a Bravo!, “a linguagem é crua, desbocada, escatológica; ele (o autor) não respeita nenhum limite, rompe qualquer tabu”.
O protagonista, proprietário de uma loja de quinquilharias, transforma o comércio em um sistema sádico para afligir seus clientes, tão desesperados quanto ele próprio. Obcecado pelo cheiro do ralo que vem dos fundos da loja e pela bunda da garçonete do bar onde almoça todos os dias, o narrador — um sósia do “moço que faz o comercial do Bombril” — naufraga aos poucos em seus delírios. Entre a bunda e o ralo, não lhe resta saída que não seja ir para o buraco.
Os temas universais vida, morte e renovação formam o eixo em torno do qual se desenrola este romance de João Ubaldo Ribeiro. Trata-se da história de um homem muito velho que, apesar de detentor da sabedoria trazida por todos os seus anos de existência, ainda busca apreender algum sentido na vida. Um romance com trama simples e leitura fluida, que, como destacou o professor de teoria literária da Unicamp, Alcir Pécora, à Folha: “lê-se com gosto, do começo ao fim”.
Livros que obtiveram mais de 20 indicações
Na prosa poética de cunho autobiográfico, o escritor Bartolomeu Campos de Queirós narra as difíceis memórias afetivas de sua infância. Ele, muito cedo, teve que aprender a lidar com a madrasta enquanto ainda sofria com a morte prematura da mãe. O escritor revisita não só seus sentimentos e suas atitudes, mas também dos cinco irmãos, do pai e da madrasta. A mãe, sem dúvida, é a presença mais constante no texto. De extrema delicadeza, contrapõe-se à figura nada terna da nova esposa do pai.
Durante uma brincadeira no colégio, um garoto bate a cabeça e entra em coma. Ele desperta sem saber ao certo quem é, e, conforme suas memórias vão se dissolvendo, tem início o que vem a ser conhecido na família como “O Ano do Grande Branco”. Nos meses seguintes, o garoto vive a sensação de que aquelas pessoas que cuidam dele não são seus pais. Todavia, os barbitúricos receitados pelo médico confundem seu raciocínio, e ele vai perdendo as certezas que alguém de 11 anos pode ter.
Em 1739, o fidalgo português Luís de Assis Mascarenhas, governador da Província de São Paulo e Minas dos Goyazes, dirige-se ao Arraial de Santana com o propósito de preparar as minas de ouro para serem província autônoma. Um filho bastardo do Anhanguera — o descobridor das minas de ouro —, que segue de perto a comitiva de Dom Luís exercendo funções de vigia, é o narrador dos acontecimentos sempre insólitos que pontuam a viagem pelo sertão inóspito das terras goianas.
Uma enorme máquina taquigráfica chega ao Rio, vinda numa embarcação do Recife. Quem acompanha o desembarque é seu criador, o padre Francisco João de Azevedo. A máquina é uma das revoluções do século 19. Com ela, sermões e discursos poderão ser transcritos com agilidade, como que num registro do progresso brasileiro. Dezenas de inventores se agrupam no prédio da Exposição Universal, que receberá visita do imperador D. Pedro e investidores de todo o mundo.
Em 1974, a irmã de Bernardo Kucinski, professora de Química na Universidade de São Paulo, é presa pelos militares ao lado do marido e desaparece sem deixar rastros. O pai dela, dono de uma loja no Bom Retiro e judeu imigrante, que na juventude fora preso por suas atividades políticas, inicia então uma busca incansável pela filha e depara com a muralha de silêncio em torno do desaparecimento dos presos políticos. K. narra a história dessa busca.
Dodô Azevedo leu “On the Road”, de Jack Kerouac, pela primeira vez aos 16 anos. A partir daí, sua vida não seria mais a mesma. Ele fez planos, mais de uma vez, de ir para os Estados Unidos refazer a viagem de Kerouac, mas esse sonho se tornaria possível somente anos depois, em 2003. Dodô queria encontrar a contracultura que ainda existia nos EUA. E ele encontrou. Com seu inglês “macarrônico”, viajou sem medo e sem direção; experimentou o peyote; e tornou-se conhecido da Costa Leste a Oeste.
Testemunho, memória, masturbação, ficção, História, Cabala, Bíblia e literatura permeiam a biografia de um jovem judeu em busca do seu lugar face à Diáspora e aos guetos na contemporaneidade. Perseguido pelo dibouk (demônio) e em busca da mulher, o personagem narra sua vida, encontros e desencontros repletos de ironia, iconoclastia, citações e plágios literários, desde a infância até seus 33 anos. Em tom poético e profético, ou vulgar e leviano, o autor descreve momentos vividos e dogmas enfrentados.
“O mar de fora e o mar de dentro” é a expressão usada em Fernando de Noronha para diferenciar as águas que separam o arquipélago do continente e as que se abrem para o Atlântico. Além disso, resume o embate que dá força ao romance. Tobias, historiador que vive entre a expectativa do futuro e as angústias do passado, narra sua incursão no arquipélago para elaborar roteiros turísticos. Além dele, o leitor conhece também o delegado Nelsão, responsável pela investigação de duas mortes misteriosas.
Alma desenrola no presente, em sua casinha na estância balneária de Bertioga, em São Paulo — em meio aos vários cachorros; inúmeros gatos; os bolos; os mimos do vizinho, Seu Lurdiano; as missivas e correios eletrônicos de amigos —, o novelo da sua vida, atravancada em nós trágicos e dolorosos. Cada capítulo da obra é intitulado com o nome de alguma comida, tempero ou bebida. Paladares que marcam o gosto na memória de cada instante vivido com pessoas que forjaram sua história.
10 anos depois, Totonhim — personagem mais célebre do autor, que em “O Cachorro e o Lobo” (1997) narra seu regresso à cidade natal —, está sozinho no mundo. Aposentou-se, separou-se da mulher e dos filhos, perdeu o melhor amigo e, agora, faz uma outra viagem de volta, totalmente interior. Embalado pela imagem da mãe velhinha, mas ainda com visão boa para enfiar a linha pelo fundo da agulha, sem usar óculos, ele repassa vários lances de sua vida, como se a olhasse por esse orifício.