Caetano Galindo (1973) é doutor em linguística pela Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal do Paraná. Seu livro de contos “Ensaio sobre o Entendimento Humano” venceu o Prêmio Paraná de Literatura de 2013. Tornou-se um dos mais premiados tradutores brasileiros, vertendo para o português brasileiro autores complexos como Thomas Pynchon, David Foster Wallace e, principalmente, James Joyce. A obra de Joyce encontrou em Galindo um tradutor ao mesmo tempo criativo e preocupado com a inteligibilidade do texto. Entre outros, traduziu “Ulysses”, “Finn’s Hotel” e agora se prepara para lançar pela Companhia das Letras uma nova tradução do volume de contos “Os Dublinenses”. Nesta entrevista, da qual também participa o professor e escritor Ademir Luiz, Caetano Galindo fala sobre os livros de James Joyce, o papel do tradutor, a leitura nas novas gerações, autores contemporâneos e a importância do sim na literatura.
O que esperar de sua tradução de “Os Dublinenses”, de James Joyce, lançado em pré-venda pela Companhia das Letras a partir de setembro? É uma edição comentada?
Caetano Galindo — Ela vem com uma “nota” do tradutor, que esclarece coisas como as correspondências de valores monetários com mais de um século distância; vem também com mais de 250 de notas de rodapé, uma cronologia da obra e do autor e, como bônus, tem um conto que inspirou a escrita do livro, traduzido e apresentado por Vitor Alevato do Amaral, pesquisador da obra de Joyce que o desenterrou da imprensa da época.
Com “Os Dublinenses” o senhor se consolida como um dos principais tradutores de James Joyce no Brasil. Costuma-se afirmar que a tradução de Antonio Houaiss para “Ulysses” (“Ulisses”, na tradução de Houaiss) foi sobretudo uma “tradução de filólogo”, embora inventiva quando necessária. Ao passo que o trabalho realizada por Bernardina Silveira privilegiou a fluência do texto, procurando atender ao leitor não especialista interessado em ler um livro considerado difícil. Qual seria a marca de sua tradução de “Ulysses”?
Caetano Galindo — Não ser nem uma nem outra. Contar com o fato de que elas existiam e cumpriam seus papéis, diferentes papéis, o que me deixou livre pra buscar uma espécie de caminho do meio, tentando manter o nível de invenção, de variedade do livro, mas ao mesmo tempo evitando opacificar a prosa do “Ulysses” com algum tipo de “elevação” de registro de linguagem.
James Joyce afirmou que escreveu “Ulysses” para que os leitores dedicassem suas vidas a interpretar o livro. O crítico Otto Maria Carpeaux, ironizando, retrucou que só iria dedicar alguns meses ao romance, uma vez que tinha outros planos para o restante da vida. O senhor encontrou um meio termo razoável?
Caetano Galindo — Eu passeio. Eu dou umas traídas em Joyce. Mas acredito, sim, que vou passar o resto da vida lidando com a obra dele. No que ela não é tão fundamentalmente diferente de qualquer outra grande obra na história da arte…
Joyce, Proust e Kafka costumam ser citados como os “donos da literatura do século 20”. É possível projetar quem ficaria com a medalha de ouro, prata e bronze? Por quê?
Caetano Galindo — Ih! Vocês vêm perguntar isso pra mim!? Acho Kafka o maior dos escritores menores, o que é um imenso elogio, de verdade. Mas li pouco. Vou me arrepender de ter escrito isso. Proust é fascinante, mas em algum sentido é um escritor menos “fértil” que Joyce. Joyce, pra mim, leva o troféu pela abundância. Ele fez mais coisas, mais diferentes, com mais risco, com mais intensidade. Ele quase ganha na força bruta. E, em termos humanos, há uma coisa que eu nunca vou esquecer, e que me foi dita pelo Paulo Henriques Britto pela primeira vez. O “Ulysses” é a única obra do alto modernismo que é rigorosamente afirmativa. É um livro de “sim”. E isso pesa na minha balança.
Esta propalada hegemonia temática e estética de Joyce, Proust e Kafka é fato inquestionável ou é mais uma das unanimidades burras denunciadas por Nelson Rodrigues? Colocaria um quarto ou quinto nome no panteão do século 20?
Caetano Galindo — Bom, o Nelson Rodrigues tinha tanta razão que até se traiu, né? Afinal, a frase dele sobre unanimidade acabou se tornando uma unanimidade. Olha, claro que a lista é questionável. Acho inquestionável o nome de Joyce como o maior romancista da primeira metade do século. Possível que seja do século todo. Mas na segunda metade do 20 teve tanta gente… tanta coisa diferente… Não me arrisco a pensar. Eu colocaria, hoje por hoje, Thomas Pynchon bem no alto da lista…
Tornou-se célebre a polêmica entre Edmund Wilson e Nabokov por conta da tradução para o inglês do romance em versos russo “Eugene Oneguin”, de Aleksandr Púchkin. Ocupou as páginas dos grandes jornais americanos durante meses e teve ampla audiência na comunidade intelectual. Algo parecido pode acontecer no Brasil?
Caetano Galindo — Depende de como vocês definem “parecido”. Aquilo dependia de um contexto muito específico. E da personalidade do Nabokov. Mas “escândalos” acontecem o tempo todo. Uma colega acaba de descobrir, por exemplo, que um texto proto-feminista do século 19 que teria sido traduzido no Brasil na verdade emprestou apenas o título à tradução de outro texto, que circulou assim “errado” por décadas, sem que ninguém se desse conta. Coisa antiga, é verdade. Mas coisas mais estranhas já aconteceram. Agora, em termos de visão “estética” da tradução eu até queria que algo como a briga Wilson-Nabokov acontecesse. Acho sempre bom quando se dá visibilidade a um processo tão fundamental na formação de todo mundo, e tão dado “de barato”.
Donaldo Schüler tomou decisões inusitadas ao traduzir “Finnegans Wake”, de Joyce, como, por exemplo, substituir Sterne e Swift por Machado de Assis e Eça de Queiroz. Traduzir é trair?
Caetano Galindo — Não há como traduzir “Finnegans Wake” sem tomar decisões “inusitadas”. As escolhas do Donaldo foram 100% racionais e, acima de tudo, coerentes com o projeto dele. Sobre a questão mais geral, eu sempre ilustro com interpretação musical. Porque as pessoas “acham” que querem transparência e “fidelidade” absoluta do tradutor (ainda que não saibam defini-la, quando confrontadas com exemplos complicados). Mas pra mim a questão é como a de uma peça de Bach lida pra você por um programa de computador (que vai executar a partitura milimetricamente, à perfeição), ou por um intérprete humano, pessoal, idiossincrático, que, curiosamente, vai trazer a peça à vida. Quem está “traindo” Bach? A tradução transparente é, acima de tudo, uma quimera, um estorvo. O tradutor precisa se responsabilizar pelo que faz, no sentido ético mais profundo, e não se faz isso se escondendo.
Philip Roth afirmou que a literatura irá desaparecer em poucas décadas, considerando o desinteresse dos jovens. Em sua experiência como professor, como tem visto a relação entra as novas gerações e a literatura?
Caetano Galindo — Primeiro, não sei se concordo com o Roth. Enquanto houver cinema, televisão, a literatura estará lá. A leitura, o suporte, já não sei…. Acho que a geração mais jovem é em tudo e por tudo melhor que a minha. Nesse quesito, acho que eles leem bem mais. Me preocupa um tanto o que eles leem, e o fato de que às vezes (e isso começou num grupo etário logo abaixo do meu) eles tendem a não “subir” na escala de complexidade, mas a levar consigo a literatura e a música da adolescência, que aí vão revestindo de uma aura de complexidade e riqueza…. mas não há só isso. Acho que não há motivos de preocupação…
De modo geral, os professores de literatura brasileiros são bons leitores? Como isto impacta a formação dos estudantes?
Caetano Galindo — Eu tenho imensa dificuldade com generalizações. Claro que eu acredito que em geral os professores de literatura sejam bons leitores! Mas daí a tirar grandes consequências desse tipo… sei não. Acho que ninguém vira professor de literatura por investimento profissional. Acho que as pessoas se movem por algum tipo de relação pessoal. E acho que é isso, saibam elas ou não, que elas tentam e podem transmitir.
Mesmo entre os joyceanos é pouco citada a obra dramatúrgica de James Joyce. Por quê? Ele era um bom autor de teatro?
Caetano Galindo — Estou traduzindo neste momento a única peça dela que sobrou. Ele é um dramaturgo interessante, sim. Mas é difícil (até pela temática da sua peça) não ver essa incursão como um “desvio” durante a preparação para a escrita de “Ulysses”. O “Ulysses” projeta uma sombra muito longa… tanto que até o “Finnegans Wake”, que pode muito bem ser maior que ele, acaba meio escanteado.
Acompanha a literatura contemporânea? Indicaria algum autor brasileiro ou estrangeiro?
Caetano Galindo — Eu tento. Adoro Ali Smith, Lydia Davis, gosto demais da Elena Ferrante, da Hilary Mantel. Thomas Pynchon continua ativo! Aqui, no Brasil, sou leitor devoto de Cristovão Tezza, Daniel Galera, Mauricio Lyrio… muita coisa… acho que estamos em tempos muito bons pra produção de literatura.