O escritor francês Marcel Proust gostava de jogar uma brincadeira de salão chamada “Confissões”, onde os participantes respondiam perguntas pessoais. Em sua homenagem, hoje o jogo ficou conhecido como “Questionário Proust”.
A Revista Bula, depois de ter adquirido em um concorrido leilão no eBay a Tábua Ouija original do filme “O Exorcista”, entrou em contato sobrenatural com o próprio Marcel Proust, em carne, osso, smoking e ectoplasma, que, relembrando seus tempos de jornalista, assinou contrato exclusivo como nosso correspondente do outro lado da vida.
Sempre nas altas rodas celestiais, Marcel Proust visitou a casa de campo da escritora Jane Austen disposto a lhe propor uma entrevista. Marcel foi logo denunciado pelo rangido da porta do escritório de Austen, que escondeu os manuscritos nos quais trabalhava. Reticente no começo, ela acabou por aceitar conceder a entrevista. Eis o encontro de dois célebres colunáveis sociais, de um lado um sensível francês, do outro uma inglesa das mais racionais. Com vocês, na série Entrevistas do Além, o legitimo Questionário Proust com Jane Austen, psicografado em javanês pelo meio médium ligeiro Ademir Luiz.
Marcel Proust — Mademoiselle Austen, fala francês?
Jane Austen — Sim, meu bom senhor, como convêm a qualquer mulher virtuosa e de boa criação.
Marcel Proust — Encontrou-se com Deus?
Jane Austen — Permaneço a espera do convite formal para uma recepção de apresentação.
Marcel Proust — E Lúcifer?
Jane Austen — É sempre um dos mais bem vestidos.
Marcel Proust — Consta que suas últimas palavras foram “não quero nada mais que a morte”. E o pós-morte?
Jane Austen — Creio que vivo mais agora do que em vida. Está entrevista é uma evidência neste sentido.
Marcel Proust — E como tem sido sua vida social no além?
Jane Austen — Não quero que as pessoas sejam muito gentis; pois poupa-me o trabalho de gostar muito delas.
Marcel Proust — O imenso sucesso póstumo de sua obra deixou-a vaidosa, orgulhosa?
Jane Austen — A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho relaciona-se mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós.
Marcel Proust — Lê-se na placa de seu epitáfio, na catedral de Winchester, que “ela abriu sua boca com sabedoria e em sua língua reside a lei da bondade”. Concorda?
Jane Austen — Receio que a agradabilidade de uma ocupação nem sempre revele a sua propriedade.
Marcel Proust — Mademoiselle Austen, é uma feminista?
Jane Austen — Feminismo? Não conheço o termo. Seria equivalente a machismo? Em todo caso, escrevo sobre mulheres. Os homens tomaram todas as vantagens sobre nós ao poderem escrever sua própria história. A educação deles têm sido muito melhor que a nossa. A pena está nas mãos deles, e não permitirei que os livros nada provem a respeito das mulheres.
Marcel Proust — Mas os homens não apreciam as mulheres?
Jane Austen — As mulheres superestimam facilmente a admiração dos homens, e os homens fazem de tudo para mantê-las nessa ilusão.
Marcel Proust — Como encara o sentimento do amor?
Jane Austen — Ninguém jamais poderá amar mais do que uma vez na vida. Um segundo interesse quase nunca traz consequências sérias; contra isso, portanto, nada tenho a dizer. Preserve-se de um primeiro amor e não precisará temer o segundo.
Marcel Proust — E o casamento?
Jane Austen — A imaginação das mulheres é terrivelmente veloz; salta da admiração para o amor, e do amor para o casamento em um instante.
Marcel Proust — E quanto as duas ideias juntas: casamento e amor?
Jane Austen — Qualquer coisa é preferível ou suportável a um casamento sem afeição. Mas a felicidade no casamento é apenas uma questão de sorte. Uma felicidade duradoura jamais pertenceria a um casal que só se unira porque suas paixões eram mais fortes que suas virtudes.
Marcel Proust — O tema do ciúme muito me interessa. O que pensa sobre ele?
Jane Austen — Nenhum homem se ofende quando outro homem admira a mulher que ele ama; somente a mulher pode fazer disso um tormento.
Marcel Proust — O argentino Jorge Luis Borges afirmou que sua visão de paraíso é uma biblioteca. E a sua?
Jane Austen — Convêm projetar o paraíso como se projeta um enxoval? Muitas vezes perdemos a possibilidade de felicidade de tanto nos prepararmos para recebê-la. Por que então não agarrá-la toda de uma vez?
Marcel Proust — E sua visão de inferno?
Jane Austen — Deixemos que outras penas se detenham na culpa e na miséria. Eu abandono esses tópicos odiosos tão depressa quanto posso, impaciente por restaurar todas as pessoas, nenhuma delas tendo incorrido em grande deslize, ao mais tolerável conforto, e por deixar de lado tudo mais.
Marcel Proust — Qual a importância da leitura?
Jane Austen — A pessoa que não sente prazer ao ler um bom romance, seja um cavalheiro ou uma dama, só pode ser intoleravelmente estúpida. Da minha parte, se um livro for bem escrito, sempre o acho curto demais.
Marcel Proust — Qual livro levaria para uma ilha deserta?
Jane Austen — “Robinson Crusoé” me parece bastante apropriado.
Marcel Proust — Mademoiselle Austen, e quanto a música?
Jane Austen — Eu não vivo sem música, absolutamente. Para mim, é uma necessidade vital.
Marcel Proust — Razão ou sensibilidade?
Jane Austen — Como todas as qualidades morais, a firmeza de caráter deve ter proporções e limites. Muitas vezes, um temperamento dócil promove mais felicidade do que uma índole excessivamente determinada.
Marcel Proust — A sinceridade é possível?
Jane Austen — Pode-se confiar mais na sinceridade daqueles que às vezes agem ou dizem algo inconsequente ou afoito do que naqueles cuja presença de espírito jamais se altera, cuja língua nunca escorrega.
Marcel Proust — Mas é possível que haja compreensão no mundo?
Jane Austen — A metade do mundo não consegue entender os prazeres da outra metade.
Marcel Proust — É uma pessimista?
Jane Austen — Sou uma mulher e sei o quanto me custa.
Marcel Proust — O que a maturidade pode trazer para mulher?
Jane Austen — Acontece algumas vezes que uma mulher seja mais bela aos 29 anos do que era dez anos antes.
Marcel Proust — O que escrever significou para mademoiselle?
Jane Austen — Possuir uma pequena renda, uma vez que não me casei.
Marcel Proust — Não é muita humildade, diante do alcance de seus escritos?
Jane Austen — Nada é mais enganoso do que a aparência de humildade. Frequentemente, é apenas descuido de julgamento, e às vezes, uma ostentação indireta.
Marcel Proust — Entendo. Em meu meio a ostentação era uma forma de arte. Sei que foi uma dama das mais reservadas.
Jane Austen — O negócio pode trazer dinheiro, mas a amizade raramente o faz.
Marcel Proust — Qual sua opinião sobre o músico Bob Dylan ter sido laureado com o Prêmio Nobel?
Jane Austen — Perdão, não estou familiarizada com os termos da pergunta. Nobel é um prêmio musical?
Marcel Proust — Passemos para outro tema. Mademoiselle faleceu antes da popularização da internet. Olhando de cima e por cima, o que acha da rede?
Jane Austen — Não me incomoda tais modernidades, escrevi muito sobre elas. Mas fico bastante desgostosa com algumas escolhas de elenco das adaptações audiovisuais de meus livros… por Deus, Thiago Lacerda não pode ser Darcy!
Marcel Proust — Leu “Em Busca do Tempo Perdido”?
Jane Austen — Sim. Pena que seja tão curto.