Quem destrói a minha vida nunca olhou na minha cara. Quem mata o que eu mais amo me ignora. Dispensa o constrangimento. Sangue derramado de longe não embrulha estômago. A cor, o cheiro, os gritos: coisa dessa gente que sofre tragédia, coisa indelicada. Crime é respingar na mesa onde negociam a impunidade, na mesa onde vendem minha alma sem sequer puxar-me uma cadeira, pois não sei morrer de boca fechada, sem mostrar o indigesto mastigado na garganta. Apunhalam-me pelas costas enquanto me curvo pra entender os seus talheres. Se lhes falta ética, jamais etiqueta.
Valério Luiz foi assassinado no dia 5 de julho de 2012, com seis tiros à queima-roupa, ao sair da rádio em que trabalhava como jornalista. Fecho os olhos e me imagino de novo lá, petrificado em frente à cena, o Ford Ka preto com as duas portas abertas, os vidros crivados de balas, o pé do meu pai pendurado pra fora do carro. “Quem fez isso terá de pagar”, eu dizia a mim mesmo. Quando se veiculou na imprensa a participação de policiais militares, inclusive com uso de viatura descaracterizada e patrulhas de apoio a tamanha covardia, andei de um lado pro outro, sentindo-me só, impotente, esmagado.
Forças do Estado, maiores que eu, haviam sido instrumentalizadas por um milionário local para, em verdadeira operação de guerra, aniquilar minha família. E ali mesmo, no meio da rua, à vista de todos, como se pisa em insetos. Agora, seis anos depois, ainda espero. Espero pelo mesmo Estado, ainda maior que eu. Volto a andar de um lado pro outro, novamente empurrado pra baixo das mesas às quais não me sento, mesas onde devoram a justiça e me jogam explicações quaisquer, feito ossos, restos ao cachorro. Mas prosseguirei me alojando nas artérias do sistema até dar infarto aos sem coração.
Não me odeiem, eu só faço o que gostariam de ver seus filhos fazendo por vocês. “Honra teu pai e tua mãe”, diz o primeiro mandamento (Efésios 6, 2). Na vida existem as brigas das quais é possível fugir e aquelas das quais não é. Em última instância, de nada adianta evitar uma batalha que continuará sendo travada dentro de nós. Melhor então responder ao chamado e testar nossa força, em vez de engoli-la e engasgar com o remorso. O preço, no entanto, é, como em toda guerra, alto. A Beleza e a Justiça são, nesta Terra, meras ideias, possibilidades, e alcançáveis a depender do quanto se sangra.
Vejo meus amigos seguindo o curso natural de suas vidas, progredindo na profissão, exatamente como deve ser. Exatamente como fui criado pra fazer também. E os invejo por isso, pois reconheço neles um caminho mais leve, mais feliz, que me foi tirado. Ao contrário, ando por aí tal qual soubesse de algo que eles não sabem. Experimentar a violência é uma espécie de conhecimento, e nestes anos o reconheci diversas vezes nos olhos de outras vítimas: a dor, a revolta, a desconfiança com as instituições, a ansiedade de precisar fazer alguma coisa com a rápida atenção recebida, a busca por significado.
Nem todas as famílias vitimadas receberam, no entanto, o mesmo apoio que a do meu pai. São missões ainda mais difíceis e aguerridas que a minha. O coração quer abarcar o que nas mãos não cabe, e transborda pelas veias frustração. Não se constrói trincheiras do dia pra noite, porém. Identifiquei os inimigos, os amigos dos inimigos, mapeei por onde andam e os isolei. Procurei aliados, espaços possíveis e os ocupei. É um trabalho nem sempre bem compreendido, mas necessário a todo aquele que, ao rezar “Pai nosso, que estais nos Céus” por seus entes queridos, também reza o “venha a nós o Vosso Reino”.
Necessário a quem toma a persecução de assassinos não por válvula de escape para arroubos momentâneos, e sim por dever, com etapas e rotina, ou seja, planejamento e execução no tempo. “O amor (…) suporta todas as coisas, acredita em todas as coisas, espera todas as coisas, persevera em todas as coisas” ( 1 Coríntios, 13, 7). O motor de uma luta duradoura jamais é o ódio por ninguém, mas a defesa daquilo que na vida é o mais bonito e precioso pra nós. Neste mundo, máquina brutal de produzir ressentimentos, a força só encontra seu sentido ao proteger o pouco que há de delicado.
Os anos de trabalho duro e de sacrifícios pra criar a mim e a minhas irmãs, o carinho, o esforço pra nos passar os seus valores, a vontade inglória de vencer com decência no lugar cartelizado, mafioso e violento que é este cerrado seco castigado pelo Sol: até hoje mal posso acreditar que você existe apenas na minha memória, pai. Mas a memória é, suponho, uma forma de viver. “A vida precisa continuar”, sempre advertem. Ora, todos os vivos são, de certa maneira, governados pelos mortos. Qual é o propósito de acordar manhã após manhã se estas se esvaírem pelos dedos feito grãos de areia ao vento?
De areia não é o castelo do nosso amor, cujas defesas resistirão aos seis tiros de maldade há seis anos disparados. Atacaram sua carne por não conseguirem quebrar seu orgulho, mas um pouco deste ficou em nós. Nos momentos difíceis, é tudo o que temos. Um instinto de manter a cabeça erguida, uma voz interior a nos guiar a despeito da aridez desta terra onde até os frutos têm espinhos. Ando por aí tal qual soubesse de alguma coisa. Sou marcado, um filho da violência. Os próximos de mim sofrem por isso, e eu por eles, mas sei que sempre serei um filho da violência. Talvez não, porém, um órfão da Justiça.
Sempre quis ser escritor. A advocacia, a militância, a política, tudo veio depois. Adolescente meio alheio, desesperava minha família ao ficar horas no quarto escrevendo poesia. Quem diria que um dia seria esta a nossa arma, a força da palavra. Mas agora não é na solidão do quarto, e sim no calor dos fóruns, das ruas, que seguraremos sua mão aí do outro lado, meu pai, pra escrevermos juntos um final bonito pra esta história, pois a Justiça também é uma forma de Beleza, embora triste. É o sangue invisível correndo pelas veias de espírito de um corpo maior, seu novo corpo em nós.