Cuidado. Aquele que lhe puxa o saco quer mesmo é puxar-lhe o tapete

Cuidado. Aquele que lhe puxa o saco quer mesmo é puxar-lhe o tapete

O chefe chega mais tarde ao escritório e o vassalo corre ao seu encontro, o rabo abanando, uma bolinha de borracha entre os dentes.

— Tudo bem, patrão?
— Tudo.
— Chegando tarde?
— É.
— Aconteceu alguma coisa?
— Nada. Fui ao oftalmologista.
— Cuidar dos olhos?
— Não. Do pé.

O tributário solta uma gargalhada submissa e retorna saltitando à sua baia de funcionário, agradecido por participar da vida de seu dono. É assim que ele gosta de se comportar. Como um estúpido. É assim que aprecia ser tratado. Como lixo.

Incapaz de um raciocínio mais complexo que contar os minutos para a hora da próxima refeição, ele nem desconfia de que pertence a uma espécie ordinária, a mais danosa entre todas as pragas que hoje assolam o mundo, mais daninha que o gafanhoto, a traça, o cupim, o spam ou as duplas sertanejas. Nem imagina o quanto encarna fielmente o clássico bajulador. Ele mesmo, o bom e velho puxa-saco.

Acredite. Essa racinha miserável não tem mãe. Nasce em casulos pendurados nas protuberâncias que ficam na região pélvica de artistas, celebridades, endinheirados de alguma classe, políticos de qualquer cargo e chefes de toda sorte.

Os bajuladores, da família dos Adulatoris Babaovis, há tempos foram abandonados pelas propriedades cognitivas e neurológicas. E agora andam por aí à espreita, em busca de novas vítimas que serão obrigadas a se equilibrar em chão lambido e suportar toda sorte de mesuras falsas e servilismos.

Nas empresas, repare bem, os aduladores estão sempre no mesmo lugar: exatamente onde estiver o chefe. Esperando para fazer uma lisonja sem nenhum propósito senão o de amenizar seu sentimento de medonha insegurança. Os puxa-sacos sofrem de uma autoestima tão baixa que vivem de se arrastar e se submeter a toda sorte de humilhações. São sujeitos que fazem da facilidade de rasgar elogios interesseiros a sua única vantagem competitiva. No mais das vezes, elogiam pela frente e profanam pelas costas. São capazes das piores tramoias contra seus colegas e, desgraçadamente, se reproduzem como ratos, baratas e mosquitos cinzentos de banheiro em todos os departamentos de qualquer corporação.

Subservientes por desgraça da natureza, os escova-botas aplaudem toda e qualquer porcaria produzida por aqueles a quem desejam adular. O objeto de um puxa-saco nem termina uma frase e logo surge, do nada, alguém pronto a despejar-lhe um balde de baba.

— Genial! Que inteligência! Você é o máximo, sabia?

Sim, é isso mesmo o que passa por aí. E o pior: esse tipo de assédio provoca na vítima — o alvo do puxa-saco — os mais baixos instintos. Intimamente, o elogiado até reluta, tenta, segura, morde a língua. Mas por fim a empáfia passa a rasteira na modéstia e levanta os braços, vitoriosa:

— Você acha? Imagina! É só a maneira como fui criado. Pertenço a uma casta que se alfabetizou ouvindo os grandes pensadores. Devo isso à mamãe. Rá, rá, rá!

Pronto. Venceu a vaidade, a imodéstia e o pedantismo! Viva a bajulação!

Quando engata, a conversa entre o balujador e o bajulado, palavrosa e convencida, aspergindo cuspe e mau gosto para todo lado, embrulha o estômago até do vira-lata mais habituado a rolar na carniça.

— Adorei aquela piada suja e pesada que você contou, chefe!
— Qual? A do elefante que caiu na lama?
— Essa! Genial! Não conhecia. É nova, né?
— É. Eu sou assim mesmo.
— Procura se atualizar sempre?
— Não. Sujo e pesado.

E as gargalhadas ecoam pelos arredores, matando pernilongos e grilos e pulgas e gambás e ratazanas do banhado a quilômetros de distância.

Nas festas corporativas, os lambedores de sola ajoelham para sair nas fotos com os patrões. Depois publicam as imagens no Facebook com legendas elogiosas e cheias de gratidão. Aí a empresa perde um negócio, toma um prejuízo, a equipe inteira é esculhambada e sabe o que acontece? Os mesureiros pegam a foto com o chefe e correm até a primeira macumbeira de má fé formada pela internet.

— É esse aqui o maldito, mainha.
— Deixa comigo.
— Bota esse lazarento na boca do sapo, minha mãe, bota.

No fundo, a esperança de todo lisonjeiro é assistir à penúria do lisonjeado. O puxa-saco quer mesmo é puxar o tapete de seu “herói”. Quer sentir um imenso dó quando ele cair doente. Quer chorar no enterro de quem ele tanto admira. Mas enquanto isso não acontece, vai destilando seu açúcar.

Em qualquer organização há chefes que não podem se movimentar na cadeira sem esbarrar nos cuidados de um intrépido puxa-saco.

— Majestade chamou?
— Não. Isso foi um peido.

E se o chefe demonstrar que está saindo da sala, a situação piora ainda mais:

— Posso ajudar, alteza?
— Não. Estou apertado. Vou ao banheiro.
— Precisa de ajuda para limpar o popô?
— Não, obrigado.
— Nem aceita um refresco de limão com bastante açúcar?
— Também não.
— A gargantinha de vossa grandeza não está seca, não?
— Não.
— Mas eu vou trazer o refresco assim mesmo. O senhor usa para lavar o cabelo, tá? Fortalece a raiz.

Até que uma hora, curtido num mar de baba, o elogiado acredita ser mesmo especial e deixa de se esforçar, desiste de se superar e começa a se repetir. Ele se acomoda. Também, tanta gente diz que ele é bonito, rico, esperto, gostoso. Ele se convence. E daí para o buraco é só um passo.

Quando, por qualquer motivo, um chefe bajulado perde o trono, seus bajuladores comemoram o fracasso de quem idolatravam e, na manhã seguinte, começam tudo de novo, com um novo alvo.

— Está bonito hoje, hein, chefinho!
— É.
— Tá comendo o que aí? Lasquinha de gengibre torrada?
— Não. Casquinha de nariz. Quer?
— Quero!

E então o vassalo come o acepipe de seu líder, lambe os beiços manchados de sol e veneno e vai correndo para a rua, urinar no primeiro hidrante e rosnar para quem passar perto.

André J. Gomes

É professor e publicitário.