“A Letra Escarlate”, “Moby Dick”, “As Asas da Pomba”, “Herzog”, “O Teatro de Sabbath” e “Meridiano de Sangue” cumprem a missão de “melhorar” a vida dos leitores
Há nos Estados Unidos o “mito” do Grande Romance Americano. Alguém já o escreveu, alguém vai escrevê-lo? Quem? Na verdade, tal romance já foi escrito. Aliás, não se deve falar num romance, e sim em vários romances. E há escritores americanos que são, no geral, bons críticos literários. Entre eles estão Henry James, Saul Bellow (um ensaísta do primeiro time), John Updike e Philip Roth. Faltou neste micro guia alguém decididamente importante? Sim. Sempre falta. Não há listas completas. Se listas fossem completas seu nome não seria listas… e sim Deus.
Faltou incluir escritores como Edgar Allan Poe (escreveu um romance e contos maravilhosos), Mark Twain (dele deriva a prosa enxuta dos Estados Unidos, segundo Edmund Wilson), Jack London (quem nunca teve prazer lendo seus livros que arranque a primeira página), Edith Wharton, Katherine Anne-Porter (grande contista), Eudora Welty, Thomas Wolfe, John Dos Passos, John Steinbeck (não é de primeira linha, mas sempre o li com prazer; “As Vinhas da Ira” é um romance denso, de cunho social), Paul Bowles, Bernard Malamud, Flannery O’Connor, Toni Morrison, Norman Mailer, James Salter (Richard Ford diz que é o escritor das melhores frases; além da prosa, escreveu memórias deliciosas; é um contista extraordinário), Gore Vidal (aprecio sua literatura, sua crítica literária e suas memórias; é um reserva de luxo do time titular), Truman Capote, Tom Wolfe e William Kennedy (sua literatura é de primeira linha).
Por que não Susan Sontag e Edmund Wilson, também prosadores? Porque os vejo muito mais como excelentes críticos literários (Sontag mais na linha do ensaísmo). Wallace Foster? Não sei por quê, mas meu nariz torce quando meus olhos leem algumas páginas de seus livros. Foster, por sinal, não era mau crítico literário. Jonathan Safran Foer (muito bom) e Jonathan Franzen estão construindo uma obra. Paul Auster fica para a próxima lista.
“A Letra Escarlate”, de Nathaniel Hawthorne, fica em pé ao lado de qualquer outro romance inglês ou francês, por exemplo. Um parceiro para o romance “Madame Bovary”, do francês Flaubert. A história permanece moderna, diria até atual — quiçá feminista. A sensibilidade para perceber o feminino, seus amores e desventuras, mostra um autor adiante, estética e moralmente, de seu tempo. A prosa é primorosa, não derramada nem lacrimosa. O matiz humanista é revigorante. Fica-se com a impressão de que a denúncia comportamental é mais sólida e reverberante quanto mais é ponderada e ampla a sua manifestação.
“Moby Dick”, de Herman Melville, é um grande romance em qualquer perspectiva. Um diálogo com a cultura da humanidade, inclusive a espiritual (diria que há um pacto de guerra, revestido de ódio e amor, entre a baleia branca e Ahab — um laço inquebrantável entre o sagrado e o profano), e um enfrentamento do homem com a natureza. Quase todos, inclusive Faulkner na composição de seus personagens malditos, beberam na prosa caudalosa-bíblica de Melville (por sinal, bom poeta). Ah, a batalha épica é vencida pelo livro, e não pela baleia e pelo capitão.
Henry James escreveu ficções seminais — como “Retrato de uma Senhora”, “As Asas da Pomba” e “A Taça de Ouro”. Poucos escritores são tão refinados — o que alguns confundem com pompa — quanto o prosador americano que se considerava inglês (mas seu tema era o americano na Europa — a redescoberta do velho mundo). Trata-se de um prosador que construiu belas personagens femininas (em geral, são decentes e, apesar de vítimas da codícia masculina, perceptivas). Algumas de suas personagens masculinas são “falhas”, por vezes canalhas. James tem um olhar delicado e preciso para o universo das mulheres. Elas são mais perspicazes do que, à primeira vista, parecem.
Scott Fitzgerald comparece com o romance “O Grande Gatsby”. Os contos são, no geral, de primeira linha. Fica-se com a impressão, por vezes, que a vida de Francis ficou maior do que sua literatura. Tornou-se um personagem praticamente literário, como os homens e mulheres de carne e ossos que ele transformava nos seres fugidios de seus livros — caso do extraordinário casal de ricaços Gerald e Sara Murphy. Edmund Wilson o percebia como um dos gênios literários naturais.
“O Som e a Fúria”, “Enquanto Agonizo”, “Luz em Agosto” e “Absalão, Absalão”, de William Faulkner, merecem figurar em qualquer antologia dos melhores da literatura transnacional. “Enquanto Agonizo” é a joia da coroa — a história é tão extraordinária quanto a forma narrativa (todos os personagens têm voz ativa e contam a história, que, assim, é de fato um mosaico de opiniões e narrativas). Os joycianos ficam, lógico, com “O Som e a Fúria”, filho dileto de “Ulysses”. A literatura de Faulkner é tão forte que influenciou autores díspares como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Ele chegou a visitar o Brasil, mas permaneceu bêbado quase todo o tempo. Era um borracho… de gênio.
Ernest Hemingway é tido mais como contista do que como romancista (mesmo respeitando a crítica literária, aprecio a prosa longa, algo frouxa, do autor de “Por Quem Os Sinos Dobram”, um belo romance, assim como “Adeus às Armas” e “O Sol Também se Levanta”). Teria escrito o Grande Conto Americano, como “Os assassinos” (que deu origem a dois bons filmes). José J. Veiga e Enio Silveira traduziram o americano muito bem. Hemingway é praticamente uma personagem — uma estrela —, como Scott Fitzgerald, que escapou da literatura para a vida real. É um ser mítico.
J. D. Salinger publicou poucos livros e escondeu-se, afastando-se do público, mas não da fama e da celebração. Mas quem escreveu “O Apanhador no Campo de Centeio” jamais pode ficar fora de uma lista americana. O romance se tornou icônico, independentemente da qualidade (que tem). Com sua prosa fluente, capta à perfeição a vida de um adolescente (prosa e tema fundem-se, o que assinala a mestria do autor). Seus contos também são de qualidade.
Saul Bellow era canadense, mas fez sua vida nos Estados Unidos. Influenciou largamente a prosa de Philip Roth. Seus romances são caudalosos, inteligentes e discursivos — o que pode afastar o leitor apressado. Perde, e muito, aquele que não tiver paciência para ler seus livros, como “O Legado de Humboldt”, “Herzog”, “Henderson, o Rei da Chuva” e “As Aventuras de Augie March”. “Herzog” pode até não ser o mais emblemático, mas é o meu preferido. Roth é diferente de Bellow, mas este é, em parte, sua matiz literária. Os dois são modernistas, sabem tudo de James Joyce e Faulkner, mas caminham por outras searas.
John Updike, o Balzac da classe média americana, escreveu uma série de romances, uma espécie de Comédia Humana dos Estados Unidos, seminais. A série “Coelho” é uma história alternativa dos Estados Unidos. Pode um escritor se tornar sociólogo de um povo? É provável. A veia compreensiva — aqui e acolá, compassiva — de Updike lembra até a pegada dos antropólogos. Mesmo quando descreve, de maneira meticulosa, personagens medíocres, com suas vidas insossas, o autor demonstra uma compaixão perceptiva. Os personagens, embora sejam menores, agigantam-se. A vida é grande, apesar de tudo — sugere o autor.
Joyce Carol Oates é, seguramente, a maior escritora americana viva, ao lado de Cormac McCarthy. Escreve sobre quase tudo, até boxe, e sempre muito bem. Está a merecer o Nobel de Literatura. Para conhecer sua prosa, vale a pena começar pelo romance “Filha do Coveiro”. Poucos escritores colhem temas reais (no caso de Oates, a história de sua família) e conseguem imaginá-los tão bem quanto a autora (a realidade, recriada, fica mais vívida e, portanto, compreensível). Diria que é a Ian McEwan dos Estados Unidos. Por ser tão macabra quanto? Não. Por escrever tão bem quanto o britânico.
Philip Roth fez um retrato da América, sua amada e problemática América, para além dos temas judaicos. Porque o mundo dos judeus, por mais que tenha sua especificidade, está integrado ao mundo global, nos e fora dos Estados Unidos. Recomendo como primeira leitura “O Complexo de Portnoy”, para o leitor entrar, de cara, no universo rothiano. Depois, pode seguir em direção a “Lição de Anatomia”. Em seguida, o leitor fica livre para escolher qualquer um de seus romances, desde os mais densos aos mais, se se pode dizer assim, amaneirados. A obra-prima de Roth talvez seja o conjunto de seus romances. Mas considera-se “O Teatro de Sabbath” como sua obra basilar, seguida, quem sabe, de “Pastoral Americana”. “Complô Contra a América”, embora tenha a ver com a Segunda Guerra Mundial, é quase uma biografia indireta de políticos como George W. Bush e Donald Trump. “O Seio”, pouco conhecido no Brasil, é uma mimetização de “A Metamorfose”, de Kafka. Perde, claro, para a novela do tcheco.
Thomas Pynchon, de 81 anos, é o Jerome David Salinger dos tempos atuais. Recluso, não concede entrevistas, mas persiste escrevendo bons livros. Sua prosa é difícil, dado o congestionamento de informações às vezes científicas e às vezes da cultura popular. Sua leitura fica mais fácil com a internet — o Google e o YouTube (para as referências musicais). Como deve ser o início de sua leitura? Não há uma fórmula. Mas recomendo, por uma questão de facilidade de leitura, que se inicie o contato com sua prosa pelo romance “Vício Inerente”, aliás relativamente bem adaptado pelo cinema. “O Leilão do Lote 49”, romance mignon, é outra porta de entrada. Depois, pode-se fazer uma tentativa com os gigantes “V.”, “O Arco-Íris da Gravidade”, “Vineland” e “O Último Grito”. Com um pouco de paciência, é possível seguir adiante, sem grandes atropelos. Basta pegar o “jeito” de Pynchon narrar e agrupar as informações sobre determinados períodos e assuntos.
O leitor certamente vai estranhar a menção a Vladimir Nabokov, se é russo, e não americano. A prosa do escritor deve muito à sua vivência nos Estados Unidos. “Lolita” pode até ter certa ligação com “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói — um de seus ídolos literários. Mas o romance deve muito às obsessões e ao puritanismo americanos. Pode-se dizer que, mesmo não tendo deixado de ser russo, Nabokov é, em larga medida, um prosador ianque. “Lolita” serve como uma espécie de Muro de Berlim para a obra extensa e de alta qualidade do caçador de borboletas. “Ada”, “Fogo Pálido” e “A Verdadeira Vida de Sebastian Knight” são livros excepcionais. Há algum tempo, a Alfaguara lançou seus contos no Brasil (“Contos Reunidos”). Há preciosidades nem sempre reconhecidas, porque pouco lidas. Não dá para não ler sua autobiografia, “Fala Memória”. Sua crítica literária é de primeira linha.
Ao lado de Joyce Carol Oates, Cormac McCarthy, de 84 anos, talvez seja o maior escritor americano vivo. Harold Bloom, que é seu admirador, aponta “Meridiano de Sangue” como um romance shakespeariano. Talvez seja mesmo. O juiz da obra é, de fato, uma personagem que escapou do teatro do bardo britânico e ressurgiu nos Estados Unidos. O livro contém várias formas, inclusive a do western. Mas é, no fundo, uma grande obra literária. O autor escreve prosa de excelente nível, mas nada igual a “Meridiano Sangrento” (o romance recebeu este título noutra tradução). É um dos nobelizáveis dos steites. Com a morte de Philip Roth, que era rejeitado pelos suecos, a Academia de Estocolmo se sentirá livre para premiar McCarthy ou Joyce Carol Oates.
O leitor desavisado, ao pegar um romance de Richard Ford, de 74 anos, eventualmente pode pensar que está lendo o duplo de John Updike. Mas é um engano. Eles, de fato, são parecidos, na obsessão de contar a vida de um homem e, por meio dela, a história dos americanos de uma determinada época. Mas Ford é mais corrosivo do que Updike e sua prosa é mais límpida (mais direta, quem sabe). “O Cronista Esportivo”, “Independência” e “O Sal da Terra”, a trilogia centrada na personagem Frank Bascombe, dão vislumbres da magnífica prosa do autor. Recomendo vivamente sua literatura.
Autor de uma prosa estupenda, Don DeLillo ficou imprensado, quem sabe, entre John Updike e Philip Roth, mais canônicos. Sua literatura, às vezes mais política, é de alta qualidade — e, como Cormac McCarthy, aventura-se em temas que nem sempre figuram nas obras dos escritores consagrados, como a (ou uma quase) “ficção científica”. “Submundo” (tradução de Paulo Henriques Britto) e “Ruído Branco” são dois dos mais importantes romances de DeLillo. Ele enfrentou o 11 de Setembro com “Homem em Queda”. “Cosmópolis”, levado ao cinema, exibe sua literatura inventiva. “Zero K”, sobre a imortalidade, é seu último romance publicado no Brasil. Nove contos podem ser conferidos em “O Anjo Esmeralda”.