O escritor francês Marcel Proust gostava de jogar uma brincadeira de salão chamada “Confissões”, onde os participantes respondiam 29 perguntas pessoais. Em sua homenagem, hoje o jogo ficou conhecido como “Questionário Proust”.
A Revista Bula, depois de ter adquirido em um concorrido leilão no eBay a Tábua Ouija original do filme “O Exorcista”, entrou em contato sobrenatural com o próprio Marcel Proust, em carne, osso, smoking e ectoplasma, que, relembrando seus tempos de jornalista, assinou contrato exclusivo como nosso correspondente do outro lado da vida.
Sempre atento as novidades nas altas esferas celestiais, Proust notou um confuso e ofegante recém-chegado no além. Logo o reconheceu como sendo o escritor americano Philip Roth. Aproximou-se, se apresentou, explicou a situação e sugeriu uma entrevista. Num primeiro momento, Roth não acreditou nas palavras do francês franzino que se dizia o autor de “Em Busca do Tempo Perdido”. Mas teve que mudar de ideia quando apareceu Charles Lindbergh em pessoa e lhe comprovou a história. Resignado e um tanto decepcionado com o clima quente e a decoração modernosa do além, aceitou dar a entrevista. Portanto, “entre nós”, na série Entrevistas do Além, o legitimo Questionário Proust com Philip Roth, psicografado em javanês pelo meio médium ligeiro Ademir Luiz.
Marcel Proust — Primeiramente, seja bem-vindo monsieur. Fala francês?
Philip Roth — Sou americano. Acredito que isso responda. Talvez esteja me confundindo com outro judeu, o Paul Auster.
Marcel Proust — Não, não é o caso. Monsieur é querido por todos e foi muito aguardado. Já se encontrou com Deus?
Philip Roth — Deus é um dos protagonistas de meu livro “Nêmesis”. Mas não frequentamos a mesma sinagoga. Sou judeu e ateu. Ele é só judeu, uma vez que, suponho, acredita em si mesmo.
Marcel Proust — E com Lúcifer? Encontrou-se?
Philip Roth — Lúcifer? Mas que diabos! Afinal de contas, isto aqui é o além vida ou uma festa de radicais chiques de Nova York?
Tom Wolfe — Alguém me chamou?
Philip Roth — Tom, você também está por aqui, seu dândi filho da mãe?! Pelo menos uma boa notícia! Finalmente, esse seu terno branco vai deixar de chamar atenção!
Tom Wolfe — Também acabei de chegar. Venha comigo, Philip, marquei com o Truman Capote em um bar ótimo aqui perto. Vamos esperar o Gay Talese chegar bebendo vinho da safra de 1789. Foi um ótimo ano!
Marcel Proust — Monsieur Roth, monsieur Wolfe, sinto muito interromper, mas preciso terminar a entrevista. Somos todos jornalistas, estamos entre confrades. Tenho certeza que compreendem.
Philip Roth — Ok. Não vamos acender uma fogueira das vaidades. Nos vemos mais tarde, Tom.
Tom Wolfe — Ok. Mas não acredite em uma palavra sequer que esse velho onanista te dizer, Marcel. Até logo, Philip.
Marcel Proust — Continuando. Monsieur tem mesmo certa tendência a mitificação?
Philip Roth — Não se pode obrigar alguém a dizer a verdade, assim como não se pode forçar alguém a amar-nos. Além de mais, sou escritor.
Marcel Proust — O que foi escrever para monsieur?
Philip Roth — Escrever transforma a gente em uma pessoa que está sempre errada.
Marcel Proust — E o que foi viver?
Philip Roth — Viver é entender as pessoas errado, entendê-las errado, errado e errado, para depois, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas errado. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados.
Marcel Proust — A morte também é um erro?
Philip Roth — A intensidade mais perturbadora da vida é a morte. A morte é injusta. Para quem provou a vida, a morte não parece nem sequer natural.
Marcel Proust — O envelhecimento é natural?
Philip Roth — Temos que parar de nos preocupar por estar envelhecendo. Temos que pensar em crescer. A velhice não é uma batalha, a velhice é um massacre. Acontece quando você está mais fraco e mais impossibilitado de enfrentar a luta como antes.
Marcel Proust — Borges dizia que tinha como visão de paraíso uma biblioteca? E a sua?
Philip Roth — Digamos que, na falta de algo melhor, o museu do beisebol em Cooperstown.
Marcel Proust — E sua visão de inferno?
Philip Roth — A administração George W. Bush. Ele não tinha capacidade para administrar nem uma lojinha de esquina, quanto mais um país.
Marcel Proust — Monsieur escreveu bastante sobre sexo…
Philip Roth — Sempre que um homem começa a falar com você sobre sexo, ele está lhe dizendo uma coisa a respeito de vocês dois. Noventa por cento das vezes isso não acontece, o que talvez seja até bom, se bem que, quando a gente não chega no nível da franqueza sobre a sexualidade e em vez disso age como se jamais pensasse no assunto, a amizade entre dois homens é incompleta. A maioria dos homens nunca encontra um amigo assim. Não é comum. Mas quando acontece, quando dois homens constatam que estão de acordo a respeito dessa parte essencial da condição masculina, sem medo de ser julgados, de ter vergonha, de despertar inveja ou de constatar sua inferioridade, quando podem estar certos de que sua confiança não será traída, a conexão humana entre eles se torna muito forte, e o resultado é uma intimidade inesperada.
Marcel Proust — Não foi minha intenção forçar tal intimidade. Em todo caso, indo além da sexualidade, como encara o amor?
Philip Roth — A obsessão de todos: “amor”. As pessoas acham que, ao se apaixonarem, se tornam inteiras? A união platônica das almas? Eu acho diferente. Eu acho que você está inteiro antes de começar. O amor te quebra. Você está inteiro e depois está rachado.
Marcel Proust — “O Complexo de Portnoy” o tornou famoso, mas ao mesmo tempo lhe deu fama de…
Philip Roth — De tarado e criador de métodos surreais para masturbação. Por conta dele tive que deixar Nova York e me tornar um eremita sociável.
Marcel Proust — Sua obra desperta a ira de muitas feministas. O que pensa sobre isto?
Philip Roth — Vou contar uma história. Em uma entrevista que dei em 2011, o jornalista comentou que a editora Carmen Callil, jurada do Man Booker Prize de 2010, disse que não votou em mim porque supostamente eu seria um fauno que reduz as mulheres a objetos sexuais. Respondi o seguinte: “Isso é péssimo para minha reputação sexual, mas não há nada que eu possa fazer. Não conheço Carmen Callil. Mas um amigo meu me disse que a única razão para ela lhe odiar é porque foi casada com ele”.
Marcel Proust — Essas acusações o acossam moralmente?
Philip Roth — Não, mas creio que o objetivo é esse. Há algo de fascinante no efeito do sofrimento moral sobre uma pessoa que não parece nem fraca nem frágil. É ainda mais insidioso do que o efeito de uma doença física, porque não há morfina, nem raquidiana, nem cirurgia radical que possa trazer alívio. Quem sofre seu impacto tem a sensação de que só ficará livre se morrer.
Marcel Proust — E em algum momento desejou a morte?
Philip Roth — A racionalizei. Vamos falar um pouco mais sobre a morte do desejo — como é bastante compreensível para um velho, um desejo sem a menor esperança — de evitar a morte, de resistir a ela, de recorrer a todos os meios necessários para ver a morte de nenhuma outra forma, senão com clareza. Está tudo no meu livro “Patrimônio”.
Marcel Proust — Depois de muitos livros, seu alter ego Nathan Zuckerman enfartou, mas sobreviveu. O senhor pretendia matá-lo em algum momento?
Philip Roth — Sim, mas o danado me passou a perna. Eu fui e ele ficou.
Marcel Proust — O ser humano é um animal agonizante?
Philip Roth — Sim. Mas acredito em atos simples de bravura. Na coragem que leva uma pessoa a se levantar em defesa de outra.
Marcel Proust — Quais suas maiores influências literárias?
Philip Roth — Depende da idade. Aos 10 anos, li um autor que me marcou: Thomas Wolfe. Foi um grande contador de histórias — e seus romances me ensinaram o valor da ação, da reviravolta e da veracidade dos personagens. Aos 20, fiquei fascinado pela ideia do grande romance americano. Com as obras de Theodore Dreiser e Henry James, aprendi a lidar com vários planos narrativos. Em 1953, aos 30 anos, descobri “As aventuras de Augie March”, de Saul Bellow. Ele abriu o caminho para mim. Meu estilo não tem a ver com o de Bellow, seu humor é mais corrosivo. Mas ele me inspirou, pois mostrou que o mundo judaico americano podia atingir a universalidade. Há também Kafka, obviamente. E não posso esquecer meu amigo Bernard Malamud, que foi muito importante em minha formação
Marcel Proust — Qual escritor é supervalorizado?
Philip Roth — Jack Kerouac. Ele nunca passou de um narrador banal, um eterno adolescente.
Marcel Proust — Deu aulas de escrita criativa. Acredita que é possível ensinar a escrever?
Philip Roth — Não. Equivale a estudar rabiscos. Mas eu era casado na época e precisava me sustentar.
Marcel Proust — Qual seu método de escrita?
Philip Roth — Nos últimos anos escrevo de pé, diante de uma mesa especial, para poupar a coluna. Não monto um esquema, como alguns autores fazem. Sou intuitivo. Começo com uma ideia e vou testando para ver se ela gera uma ação. Os personagens ganham vida, e o livro toma corpo. Minhas histórias surgem da surpresa da escrita.
Marcel Proust — Como vê o politicamente correto?
Philip Roth — Para usar uma imagem óbvia, é a nova caça as bruxas. O politicamente correto esmaga a liberdade individual. Mas acredito que a limitação da contingência nunca vai impedir um personagem de continuar tentando.
Marcel Proust — Monsieur recebeu muitos prêmios, como o Pulitzer, o Príncipe das Astúrias e National Book Award, mas não o Nobel. Se ressente por isso?
Philip Roth — Não penso nisso como algo fundamental. Já me sinto satisfeito com o que conquistei. Queria mesmo era ganhar o Nobel da Literatura Feminista! Além do mais, talvez participar do clube dos escritores que não ganharam o Nobel, como Borges, Nabokov e você mesmo, Marcel, seja mais interessante. Principalmente agora que tiveram o desplante de premiar o Jacques Fux. Aquele moleque ainda me ligou só para gritar “chupa, Philip!”. Brasileiros!
Marcel Proust — O médium que está intermediando nossa entrevista é brasileiro. Mas, assim como monsieur, é ateu. O incomoda essa dualidade religiosa?
Philip Roth — A religião é uma mentira que identifiquei ainda bem jovem, e todas as religiões pareciam-me insuportáveis, todas as superstições religiosas são bobagens sem sentido, uma criancice. Não suporto essa falta de maturidade — esse vocabulário infantil, santimônia e aqueles carneiros, os ávidos fiéis. Nada de conversa fiada a respeito da morte e Deus, nem fantasias obsoletas sobre o céu. A única coisa que há é o corpo, nascido para viver e morrer conforme o que fora estabelecido pelos corpos que viveram e morreram antes.
Marcel Proust — Voltando ao Nobel. O que achou de Bob Dylan ganhar o prêmio?
Philip Roth — Acho que os suecos andam escutando muita música e lendo pouco.
Marcel Proust — Monsieur acompanhou o crescimento da internet. Agora, olhando de cima, o que acha da rede?
Philip Roth — Não sou fanático por tecnologia. Tenho o mesmo telefone celular há anos e não pretendo trocá-lo. Escrevo em computador, como fiz antes com a máquina de escrever. Acho que as coisas estão se transformando muito rapidamente para meu gosto. Quem consegue ler um texto longo na tela de um computador? E isso me preocupa.
Marcel Proust — Os jovens se interessam por literatura?
Philip Roth — A cultura literária como conhecemos vai acabar em 20 anos. Ela já está agonizando. Obras de ficção não despertam mais interesse dos jovens, e tenho a impressão de que não são mais lidas. Hoje, a atenção é voltada para o mais novo celular, o mais novo tablet. O que os jovens pensam: “é muito difícil ler os clássicos; logo a culpa é dos clássicos”. Hoje o estudante faz valer a sua incapacidade como um privilégio.
Marcel Proust — Leu “Em Busca do Tempo Perdido”?
Philip Roth — Sim, acredite. Então é isso. Até breve, Marcel. Vou me reunir aos rapazes, para esperar o Gay.