“Eu apalpo meu corpo, com minhas próprias mãos, e penso: Isto é o meu corpo! Ele não pode desaparecer! Isso não pode ser verdade!” O autor desta frase premonitória, Philip Roth, desapareceu na terça-feira, 22 de maio de 2018, num hospital de Nova York. Tinha 85 anos. Era, como muitos sabem, escritor; o maior escritor vivo dos Estados Unidos, até terça-feira passada, antes da hora final.
O livro onde deixou registrada aquela frase chama-se “O Animal Agonizante” (2001). É a história de uma moça que descobre estar com câncer, Consuela Castillo, namorada de seu professor (e narrador) David Kepesh: um velho de 65 anos apaixonado por uma garota de 24. Eis, então, o resumo de tudo, pelas lentes do amor: a ânsia por viver de um homem cheio de vida e receoso do fim, olhando para trás com um nó na garganta.
E que vida exuberante fora a do escritor Philip Roth! O primeiro livro de sua autoria, “Adeus, Columbus”, é de 1962. Já “Nêmesis” (2010) foi o último romance publicado pelo escritor, que vivia entre seu apartamento no Upper East Side de Nova York e uma casa em Connecticut. São ao todo 30 livros de ficção, em 50 anos de intensa produtividade. Um a cada dois anos, em média. Em 2017, ele publicou “Why Write” (sem tradução em português), coleção de ensaios e trabalhos não-ficcionais escritos entre 1960 e 2013. Mesmo assim tivemos a felicidade, no Brasil, de conhecer pelo menos 20 de suas obras, entre elas a mais célebre e polêmica de todas: “O Complexo de Portnoy”, de 1969.
Consagradíssimo, Roth é o único autor americano a ter suas obras completas publicadas em vida pela Library of America, que tem como missão editorial preservar as obras consideradas como parte da herança cultural americana. O autor recebeu 19 prêmios literários, sendo quatro vezes ganhador do National Book Award, a mais importante honraria concedido a escritores, nos Estados Unidos. Amealhou também o Pulizter com a publicação de “Pastoral Americana” (1998), mas não levou o tão merecido Nobel, que os suecos, em 2016, concederam a um músico, Bob Dylan. Tremenda injustiça!
Pouquíssimos escritores souberam tão bem falar sobre os principais temas da existência: o amor, o sexo e a morte. Roth é talvez o mais importante ficcionista erótico da segunda metade do século 20 para cá: eis um gênero no qual se especializou, tornando-se um mestre. O sexo o obcecava, mas não apenas. Obcecava-o também a arquivelha questão judaica e, de vez em quando, a figura materna, onipresente em “O Complexo de Portnoy” e de volta (dos livros que li) em “O Teatro de Sabbath”.
Realista até o osso, Roth não tinha problemas em usar palavrões. Não tinha essa espécie de preconceito, porque a realidade é a realidade e somos todos (estou sendo generoso!) suficientemente adultos para não ficar espantados. Caso contrário quase ninguém conseguiria ler “O Complexo de Portnoy” ou “O Teatro de Sabbath”. Sem qualquer ironia, Roth sabia que todos nós temos um lado pervertido e não ligava. Multifacetado, é ao mesmo tempo trágico, cômico, sarcástico e politicamente incorreto, inimigo visceral da hipocrisia puritana, presente na família e nas universidades, duas oficinas de caráter que Roth explora com frequência.
O escritor conhecia como poucos as compulsões irracionais que determinam nossas vidas, compensando a ação repressora das instituições consagradas a replicar o homem social (“Indignação”, “A Marca humana”, entre outros). Foi devedor confesso de Kafka e Tchekhov, com pitadas de Tolstói. “O Professor do Desejo” é, aliás, uma aula magna sobre a influência do contista russo. Nele fará uma declaração de grande utilidade para os novos ficcionistas: “Para mim, os livros que contam — e incluo os meus — são aqueles em que o autor se incrimina”.
A autoficção, tão na moda, parece ser o terreno natural de Philip Roth. Parece que seus personagens masculinos falam a respeito do escritor, como máscaras. Porque (até onde o conheço) suas histórias mudam, mas não os temas e obsessões que o perseguem. Talvez não pudesse ser diferente, para um autor tão pessoal e apaixonante. Creio eu, Roth desmente o crítico novaiorquino Harold Bloom, segundo o qual os escritores escolhem seus herdeiros literários. Leia-o e você é que o escolherá, muito provavelmente.
Philip Roth morreu. Ou melhor, o seu corpo desaparece. Ou melhor, ainda (fazendo uma correção!), o seu corpo biológico é que desaparece. Pois cada livro que deixou, distribuído pelos quatro cantos do planeta, é um pedaço que fica do escritor: um pedaço vívido, plangente, da consciência humana, assinado pelo célebre descendente de judeus de Newark. E — esta é que é a verdade — neles Philip Roth viverá para sempre.