Jorge Luis Borges disse certa vez que, após os 50 anos, não tinha mais tempo ou paciência para arriscar a leitura de lançamentos, mesmo os cercados de elogios gerais. Preferia a companhia dos livros que o marcaram e que mereciam releituras sem fim. Estava coberto de razão. Todos têm os seus livros prediletos, mesmo que não os tenham relido ou feito isso há anos ou décadas. A seguir, uma lista arbitrária, como é habitual, com romances ou novelas fiéis, que não me abandonam há mais de quatro décadas. Até agora, não se cansaram. Um dia todos descansaremos, mas elas permanecerão.
tradução de Sergio Flaksman
Charlie Marlow, um capitão inexperiente, sobe o rio Congo para substituir Mr. Kurtz, ex-responsável pelas atividades de uma companhia inglesa que captura presas de marfim nos confins da selva. Kurtz enlouqueceu, fugiu do posto e montou um exército de mercenários para disputar com as empresas coloniais o lucro gerado na região. Os horrores praticados pelo rei belga Leopoldo II no Congo entre 1885 e 1906 servem de cenário para um romance sobre o lado tenebroso dos que escravizam e destroem culturas e populações em nome do progresso (na verdade, para lucrar com marfim, borracha e resina de copal). Calcula-se entre três e cinco milhões de nativos assassinados no período. Conrad, um polonês engajado na marinha mercante inglesa, esteve onde o colonialismo mostrou a sua face mais sanguinária. É um romance de estilo severo sobre o embate entre duas formas de violência, a trazida pela civilização e a gerada pelos nativos escravizados. No cenário primitivo da selva africana, seus personagens agem como se estivessem no poema de T.S.Eliot: “Nós somos os homens ocos / Os homens empalhados / Uns nos outros amparados / O crânio cheio de palha”. O romance serviu de inspiração para o roteiro de “Apocalypse Now” (1979), de Francis Ford Coppola.
tradução de Maria Helena Rouanet
“Banville escreve em uma prosa perigosa e fluente, e tem o sombrio dom de enxergar a alma das pessoas.” A frase, do escritor americano Don DeLillo, resume 20 páginas de falação sobre o irlandês com mais de uma dezena de livros publicados desde os anos 1970. Aqui, saíram também “O Intocável”(Record), “Luz Antiga” (Globo) e “Os Infinitos” (Nova Fronteira), entre outros. “O Mar” é o seu ponto alto, um romance sobre o presente impossível, a infância e a sedução, a identidade marcada pela memória, a verdade escondida no passado e a presença permanente da morte. Não recomendado para quem aprecia leitura dinâmica.
tradução de Marina Colasanti
Romance que se passa entre meados do século 19 e a chegada do século 20, quando o príncipe Don Fabrizio de Salina percebe os sinais dos novos tempos que chegam à Sicília. Garibaldi levantara as regiões na luta pela unificação da Itália e as que resistem sabem que enfrentam a roda implacável da História. A exemplo do que Marcel Proust fez com a decadência da aristocracia francesa, Lampedusa recria todo um mundo e nele insere personagens (Tancredi, sobrinho de Fabrizio, sua noiva Angelica e o padre Pirrone, por exemplo) que prendem o leitor pela intensidade e veracidade com que abraçam seus anseios, causas e lutas. É um romance sobre a nostalgia e as ruínas de uma era que se desfaz sob as vistas do príncipe, e sobre as suas ultrapassadas ideias a respeito dos homens e do mundo. Lampedusa, um aristocrata sem nenhum livro anterior, um antigo príncipe cuja linhagem se perdia no tempo, escreveu o romance em apenas dois anos (entre 1954 e 1956). Recusado por duas editoras antes de sua morte por causa de um câncer, em 1957, foi finalmente editado em 1958. Segundo Vargas Llosa, desde o seu surgimento “não se publicou na Itália, e talvez na Europa, um romance que pudesse rivalizar com ele em delicadeza de textura, em força descritiva e poder criador”.
tradução de Léa Viveiros de Castro
Os caminhos tortuosos utilizados pelo escritor Maurice Bendrix à procura de reconquistar o amor da ex-namorada Sarah Miles, agora casada com um alto funcionário público, numa Londres devastada pelos ataques aéreos alemães. A primeira frase é um achado: “Uma história não tem princípio nem fim: arbitrariamente, escolhe-se o momento vivido de onde se deve olhar para trás ou para a frente”. O ceticismo e o humor melancólico de Maurice conduzem a narrativa onde crises de fúria e de ciúmes mesclam-se a discussões religiosas, crença e dor, culpa e remorso, pecado e arrependimento. Mario Vargas Llosa escreve em “A Verdade das Mentiras” (Arx, 2004): “Em ‘Fim de Caso’, o estilo e a estrutura das obras de ficção de Graham Greene atingem seu apogeu e mostram seus limites. A clareza e a transparência da linguagem são tão extremas que raspam no ideal flaubertiano de invisibilidade: dir-se-ia que a história gera a si mesma diante de nós, sem a necessidade das palavras”.
tradução de Paulo Bezerra
Sigmund Freud, em “Escritos Sobre Arte e Literatura”, considera este livro “o melhor romance já escrito”. Na Rússia da segunda metade do século 19, um pai bêbado e encrenqueiro, com três filhos de duas ex-esposas e suspeito de ser pai de mais um, é assassinado. Não há testemunhas. Um dos filhos é condenado e exilado na Sibéria, apesar de outro ter assumido o crime e a culpa, mas nenhum era o assassino. A alma russa é exposta em cada página, na sua grandeza e mesquinhez, assim como acontece em Tolstói, Górki e Turguêniev. Ateísmo, religião e fé, niilismo, ceticismo, parricídio, suicídio, traição, é difícil saber o que ficou de fora deste romance denso e sombrio, repleto de enredos dentro da narrativa principal. Os debates intelectuais são de alta voltagem e desafiam o leitor exigente, a exemplo do célebre monólogo de “O grande inquisidor”, considerado um dos textos mais instigantes e polêmicos sobre a religiosidade, ou melhor, sobre a ausência dela.
tradução de Fernando Sabino
John Marcher e May Bartram se conhecem, sentem-se atraídos, marcam um ou dois encontros, mas vacilam e não levam o flerte adiante. Encontram-se dez anos depois e o desejo mesclado com a hesitação faz com que se vejam algumas vezes e percam o contato de novo, até que a doença terminal de um deles os reaproxima, mas aí era tarde. O resumo banal esconde uma novela curta e poderosa (80 páginas) na qual o romancista e contista, nascido americano e naturalizado britânico, conta uma história insólita e reveladora sobre os limites do amor e da paixão, com diálogos precisos e um clima de estranhamento que sai dos personagens e toma conta da narrativa. Considerada uma obra-prima da concisão estilística, esta novela tortuosa deixa para as últimas páginas uma revelação terrível, que acompanhará o leitor por um bom tempo, isto é, pelo resto da vida.
O autor deste pequeno romance recebeu este elogio de Guimarães Rosa: “José Américo de Almeida, que abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro”. Comparável aos melhores momentos de Graciliano Ramos (“Angústia”, “Infância”, “Vidas Secas”), “A Bagaceira” causou forte impacto ao ser lançado, mas foi ofuscado em seguida pelos livros de Jorge Amado, Raquel de Queiroz e José Lins do Rego. Uma injustiça, pois continua insuperável no quesito épico regionalista, com as questões sociais mescladas à ação implacável da natureza na paisagem do brejo paraibano. A modernização da usina, os êxodos dos retirantes, os métodos medievais nas relações de trabalho, o amor em meio às contradições sociais, a violência da natureza, estes elementos estão presentes num romance onde o estilo, a forma como a narrativa é construída, é parte integrante do que se pretende contar. Noventa anos após o lançamento, permanece moderno e apaixonante, apesar de ter saído do radar dos críticos e acadêmicos obcecados na sua mesmice por Machado e Rosa.
tradução de Machado de Assis
Um marinheiro anônimo retira do mar o valioso motor de um navio encalhado entre rochedos no canal da Mancha. O prêmio oferecido pelo dono era a mão da sua filha em casamento. Era uma missão impossível, mas não para um apaixonado. Após semanas de trabalho e sofrimento em alto-mar, Gilliatt traz o motor para a ilha de Guernsey. Porém, ao certificar-se da paixão da moça por outro, abre mão do prêmio e se suicida em alto estilo, numa pedra em forma de trono que a maré cobrirá, enquanto vê a amada partir de navio para o continente ao lado do amado. O resumo é simples, mas por trás dele o francês compõe um painel vigoroso sobre o embate permanente do homem contra as forças da natureza e da intolerância social. É considerado grandioso, épico e imponente, adjetivos insignificantes diante da majestade do cenário, realismo dos personagens e riqueza da narrativa.