Felipe Neto, o Cinderelo da internet

Felipe Neto, o Cinderelo da internet

Dificilmente alguém que não conheça e admire previamente Felipe Neto vai se interessar pela leitura de “Não Faz Sentido — Por Trás da Câmera”. Isso significa defender que se trata de um livro para fãs? Assim como os de Fiuk, Justin Bieber e Restart? Talvez comercialmente, mas não na essência. Felipe Neto realmente escreveu um livro e não apenas participou de um ensaio fotográfico para ilustrá-lo

O grande filósofo, sambista, meme e comediante Mumu da Mangueira, o Mussum de “Os Trapalhões”, costumava contar uma história que valia por uma aula de Sociologia, duas de Antropologia e três palestras (não livros) do Roberto Da Matta. Dizia que um amigo de infância estava sempre lhe pedindo emprego. A insistência era tanta que o Grande Pássaro resolveu perguntar-lhe sobre seus talentos. “Sabis cantar?”. A resposta foi não. “Sabis dançar?”. Outro não. “Sabis contar piadis?”. Mais um não. Irritado, Antônio Carlos explodiu: “Entaosis, o que sabis fazer, Cacildis?”. A resposta foi: “Olha, essas besteiras que você faz aí com esses três eu também posso fazer”.

Esse parece ser o comportamento padrão do brasileiro médio diante de realizações alheias. Assistimos, podemos até nós divertir, mas não costumamos atribuir grande importância ou mérito. A famosa frase de Tom Jobim, “fazer sucesso no Brasil é ofensa pessoal”, faz todo sentido. Um pouco por isso e um pouco por carregar certa saudável ingenuidade pop o trabalho do ator carioca Felipe Neto é levado menos a sério de que deveria em algumas de nossas esferas intelectuais.

Quando publiquei na revista Bula o ensaio “Porque Felipe Neto é o intelectual mais influente do Brasil” nem todos compreenderam o sentido do texto. Que se tratava de uma reflexão irônica acerca de nosso atual cenário cultural, partindo da novidade que representa a internet. A inclusão de Felipe Neto representou um estudo de caso. Alguns xingaram muito no twitter, bradando raivosos que isso “não faz sentido”. Outros acharam que foi um ataque pessoal e gratuito ao jovem ator. Algo que eu jamais faria, pelo menos não na forma de um artigo tão longo e trabalhoso de fazer. O próprio Felipe Neto desconversou, twittando que não é o intelectual mais influente nem mesmo na sua própria casa. Na verdade, foram reações relativamente previsíveis. Como ensinou o mestre Antonio Candido, no início de “Literatura e Sociedade”: “Nada mais importante para chamar a atenção sobre uma verdade do que exagerá-la”. O próprio Felipe Neto usava regularmente esse expediente em seu canal no YouTube.

Sim, a palavra correta é mesmo “usava”. No dia 18 de junho de 2013, Felipe Neto publicou o que “talvez seja o último vídeo do ‘Não faz sentido’”. Até então foi mesmo, salvo um episódio promocional de lançamento do livro. Pretende dedicar-se a carreira de ator e empresário, no “Parafernalha”. Também fechou uma parceria milionária com o Maker Studios dos EUA, visando a profissionalização do YouTube brasileiro. Em certo sentido, está conscientemente abdicando de sua atuação intelectual, considerando tal função em seu sentido clássico, a do homem de cultura que se exprime publicamente acerca de temas controversos; o que, aliás, foi o foco de meu ensaio polêmico. Curiosamente, Felipe Neto escolheu escrever um livro, objeto fetiche dos intelectuais, para fazer essa despedida.

Trata-se do livro “Não Faz Sentido — Por Trás da Câmera”, publicado pela editora Casa da Palavra. O autor estabelece logo na introdução que “não quero que pensem que o meu livro é uma autobiografia (…) algumas pessoas irão dizer que eu subi no salto, que devo me achar muito estrela pra escrever um livro. Bem, talvez seja verdade. Afinal de contas, foi exatamente no que eu pensei quando vi que Justin Bieber, Fiuk e Restart haviam feito a mesma coisa”. De fato, embora a obra seja fortemente biográfica, seu foco principal é a criação, desenvolvimento e desdobramentos do canal “Não faz sentido”. Como os vídeos que foram postados ali mudaram sua vida, transformando-o numa espécie de “Cinderelo” da internet. Alguém que saiu do nada (na verdade, ele saiu do “Buraco do Padre”, para entender isso leia o livro, que também tem muitas frases longas entre parênteses) até alcançar fama e fortuna, sem precisar casar com um príncipe encantado.

Essa última frase pode parecer estranha em uma resenha crítica, mas combina perfeitamente com o tom do livro. O estilo de Felipe Neto (sim, existe um estilo) é carregado de auto ironia, sarcasmo, referências pop e piadas para quase todos os gostos, das mais bobinhas e obtusas até algumas bastante refinadas. O tema homossexualismo é recorrente. Daí minha rima temática.

Ah, sem esquecer que existe um Homem Cinderela precedente, o lendário boxeador campeão mundial dos pesos pesados James J. Braddock, que ganhou esse apelido devido sua origem paupérrima. Existe um filme interessante, onde Russell Crowe interpreta Braddock. Um gladiador fazendo um boxeador. Dupla dor. Isso foi uma digressão? Tudo bem, a narrativa por digressões é frequente no livro de Felipe Neto. Sendo um tanto condescendente, é até possível considerar que ele incorporou ao texto elementos da literatura contemporânea por osmose. O fato é que de algum modo estão ali.

Considerando o conjunto, seus objetivos e público alvo, o livro é bem escrito. É possível que alguns críticos mais severos levantem a suspeita de que se trata do trabalho de um ghost writer, que foi uma obra encomendada, apenas assinada pelo titular. Acho pouco provável, para não dizer impossível. A dicção é muito próxima de sua já bastante conhecida expressão falada, o que torna a autenticação imediata. Seja como for, lemos ouvindo a voz de Felipe Neto. Inclusive quando ele grita em nosso ouvido. Se foi um ghost writer, trata-se de um fantasma viciado no “Não faz sentido”, pois aprendeu todos os macetes. Será que fantasmas navegam pelo YouTube? Como eles perderam aquele chuvisco chato da TV, talvez tenham migrado para internet. Se bem que o padre Quevedo diz que “isso não ecziste”. Sabia que eu já fiz um curso de parapsicologia com o padre Quevedo? Outra digressão! Será que estou sendo influenciado pelo estilo Neto de ser?

Não Faz Sentido — Por Trás da Câmera
Não Faz Sentido — Por Trás da Câmera
Felipe Neto
Casa da Palavra
R$ 34,90

Voltando ao livro. Ele é composto por um pré-prefácio assinado por Flávio Augusto da Silva, um prefácio do judeu sionista Rafinha Bastos (ele comeria o Felipe Neto?), uma apresentação do autor e mais 22 capítulos, provavelmente também escritos pelo autor. E é um livro interativo e multimídia. Ao final de alguns capítulos há os códigos QR dos vídeos comentados, que podem ser lidos e acessados via celular. Não é magia, é tecnologia… Uh, pensando bem, vou parar com isso. Está perdendo a graça. Seja como for, esse detalhe dos códigos QR foi uma boa ideia, talvez vinda do editor Raphael Draccon, não por acaso o autor do romance de fantasia “Dragões de Éter”. Não é magia, é fantasia…

Por falar em Raphael Draccon, o chamado “Capítulo Nenhum” só tem uma página, onde se lê: “Querido Diário, Hoje recebi um telefonema do meu editor, Raphael Draccon, que me informou que devo terminar esse livro até domingo. Como hoje é quarta-feira, gostaria de deixar claro que estou fudido. Grato. Felipe Neto”. Só. Não sei se houve atraso na entrega dos originais, mas lembrei-me que em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” tem um capítulo curtinho também. Ninguém pode dizer que o grande Machado não era moderno. E Felipe?

Felipe é um sujeito ético. Pelo menos um dos temas principais do livro é seu amadurecimento pessoal a partir do desenvolvimento dos critérios que moldariam sua integridade artística. Ao lado de piadas gays, esse é seu tema recorrente. Manter-se integro diante dos fãs é um assunto que o preocupe muito. Por isso, parte considerável do livro é usada para refletir sobre acertos e erros, e em muitos casos fazer a devida “mea culpa”. Admite que poderia ter ganho muito mais dinheiro se tivesse tomado outros caminhos. Não os escolheu para ser sincero consigo mesmo, o que também significava ser verdadeiro com os outros (o bom e velho conselho de Polônio!). Considerando o desprezo que o autor demonstra pelo politicamente correto, essa exposição de fraquezas e dúvidas parece ser legítima.

Seja como for, uma verdade se estabelece: o personagem raivoso dos vídeos não representa o verdadeiro Felipe Neto. Assim como Marco Feliciano também não. Quando grita e xinga no YouTube, ela está atuando, quase sempre seguindo um texto cuidadosamente preparado. Seus óculos escuros são sua máscara grega: às vezes de comédia, às vezes de tragédia. O personagem é um cínico (com algumas recaídas), enquanto o ator que o interpreta pode simpatizar com Preta Gil e ter conversas inspiradoras com Fiuk, por mais estranho que isso possa parecer. Essa dicotomia gera certas barrigas no livro. Em muitos momentos esperamos que Felipe Neto aja como o Felipe Neto do YouTube e ele acaba agindo como o bom moço criado pela dona Rosa. O que se torna frustrante e anticlimático, mas isso é a vida real, e a vida real costuma ser frustrante e anticlimática.

Ao mesmo tempo, num paradoxo curioso, o Criador reconhece que a Criatura é muito maior do que ele mesmo. O livro é fruto dessa consciência. Mesmo o fato de que começou a ser escrito durante o desenrolar dos acontecimentos demonstra que o autor possui uma considerável visão de futuro. Se tivesse ocorrido com Felipe Neto o que aconteceu com o desaparecido Guilherme Zaiden (quem?) escrever essas centenas de páginas teria sido trabalho perdido.

Qual é o público alvo do livro? É difícil definir. Assim como seu gênero. Na introdução, o autor brinca: “quero ver como as livrarias vão classificá-lo”. Não sou capaz de fazer tal definição. Colocaria talvez na estante de “mídia” ou “comunicação”, considerando que muitas de suas experiências podem ser tomadas como exemplos de experimentação de linguagem e empreendorismo no mundo da internet. Mas seu destino parece ser mesmo a de “biografias”. Se é certo ou errado, não sei. Mas acho que dificilmente alguém que não conheça e admire previamente Felipe Neto vai se interessar pela leitura. Isso significa defender que se trata de um livro para fãs? Assim como os de Fiuk, Justin Bieber e Restart? Talvez comercialmente, mas não na essência. Felipe Neto realmente escreveu um livro e não apenas participou de um ensaio fotográfico para ilustrá-lo. Tirando a capa e contracapa multicoloridas não há outras imagens na obra (muito menos fotos dele fazendo coração com os dedos). E se o leitor a encarar de mente aberta, sem revanchismos do tipo “eu faço melhor”, pode até se divertir.

Se o toque de Midas vai continuar ou se o livro vai virar abóbora ao bater meia-noite permanece uma incógnita. Afinal, estamos no Brasil. Sempre é mais fácil assistir um vídeo de dez minutos do que ler um livro de 271 páginas. Mas as possibilidades são boas. Se é mesmo um produto para fãs, nesse caso em particular, eles são contados em número mais do que o suficiente para garantir um lugarzinho na vitrine dos best-sellers. Se não se tornar um sucesso, significa que Felipe Neto realmente entrou para o time dos intelectuais brasileiros. Esses são os que menos vendem livros. Felizmente, sempre se pode contar com outras parafernálias.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.