Noite dessas, uma passeata de pensamentos, aflições, pesares e culpas congestionou o fluxo tranquilo de seus sonhos. Inquietos e cheios de porquês, os manifestantes invadiram a avenida tranquila por onde caminha o homem sozinho quando dorme, olhando a nostalgia breve das vitrines que permanecem acesas em lojas fechadas, e fizeram barulho. Empunhando cartazes e entoando refrãos, clichês, gritos de guerra, espantaram-lhe o sono.
Ele abriu seus olhos de pessoa só e ficou ali, insone, ouvindo as reivindicações de suas buzinas internas. Lá pelas tantas, virou-se na cama e pela janela aberta de seu quarto viu um céu claro de lua cheia. Lá fora, lá em cima, um vento apressado arrastava as nuvens para só Deus sabe onde. Ficou ali, mirando o movimento das nuvens no céu, uma depois da outra, passando por sua vista como os cavalinhos de um carrossel imenso. E assim, olhando para elas, teve a clara impressão de que não eram as nuvens que se moviam lá no alto, mas o seu quarto, a sua casa, seu bairro, a sua cidade é que se movimentavam aqui em baixo, lentamente, como um grande barco que acabara de partir.
De pé no convés da enorme embarcação, ele deu adeus aos pensamentos e às aflições e aos pesares e às culpas que ficaram no cais, como parentes se despedindo de alguém que ruma para uma viagem longa e sem data de volta. A brisa da noite lambia a superfície e as reentrâncias do barco, como a língua de um gato caprichoso quando banha a si mesmo, e todas as inquietações do homem sozinho iam aos poucos se tornando pequenas, e menores, até desaparecer completamente. Agora, eram apenas ele e o céu e as nuvens e seu mundo deslizando sobre águas calmas para algum lugar distante, sob a lua cheia clareando sua casa entupida de utensílios inúteis, roupas sem uso, pacotes de bolacha abertos, leituras abandonadas, comida vencida e as tantas e tantas aporrinhações de um dia depois do outro.
Então, ele foi tomado pelo desejo infantil de ouvir o som de um objeto sólido caindo na água, e jogou no mar um vidro vazio de perfume. Gostou tanto do que sentiu que respirou fundo e foi escolhendo outras coisas para atirar longe. Uma caneca cheia de canetas, um grampeador, caixas de sapato, uma cômoda velha, papéis, envelopes, recibos, os quadros, as plantas, o varal e as roupas, a máquina de lavar, o armário e suas gavetas entupidas, a mesa e as cadeiras, a tv ligada, o sofá e suas cicatrizes, as chaves e as portas, o assento da privada, tudo.
E quando nada mais havia à sua volta para lançar ao oceano senão suas próprias questões internas, suas dores, seus medos, suas alegrias fabricadas, seu ódio gratuito, sua insegurança doentia, seu orgulho ferido, suas culpas e sua saudade crônica, então ele próprio se deixou cair sobre as águas. Ali, boiando nas ondas calmas e quentes, ele olhou as nuvens e a lua e as estrelas e pensou em sua bisavó, Benedita Rosa, nascida em 1905, filha de uma escrava alforriada, Valquíria, que decerto morrera sem nunca ter visto o mar. Pensou em seus pais e em todos os que vieram antes dele. E naqueles que virão depois de seu filho. Pensou na vida e em toda a sua potência. E reencontrou a companhia do sono.
Dormiu sem pesos e sem roupas, profundamente, na superfície quente das águas calmas. Quando acordou, na areia branca de uma praia de água azul-piscina, já era dia e a brisa morna enchia o mundo com um cheiro de pão feito em casa. Ali, naquela praia de modos simples, os que vieram antes dele e os que virão depois de seu filho viviam juntos, faziam pão e macarronada, brincavam na areia, trabalhavam na lavoura. Cuidavam uns dos outros e se ajudavam e se gostavam e se tratavam como milagres suficientes para não terem de se comparar a ninguém, a não ser consigo mesmos.
Todas as tardes, reuniam suas inteligências fora do padrão não para deliberar sobre os temas burocráticos da vida ordinária, mas para delirar sobre as questões acima de seu alcance. As crateras da lua, as galáxias para além do sistema solar, a beleza das moças e dos moços. A vida que passa aqui em baixo como as nuvens que deslizam lá em cima.
Ele ficou ali, olhando os jeitos de sua gente. A bisavó, sorrindo o amor puro e simples, cuidava das crianças que um dia seu filho e os filhos dos filhos de seu filho trarão ao mundo. Uma delas, menininha de cabelos armados e negros, areia entre os dedos dos pés e molho de macarrão endurecendo na boca, ofereceu a ele um pouco de Coca-Cola. Ele tomou, devolveu-lhe a caneca, agradeceu, ela sorriu um riso tão familiar que encheu de lágrimas os olhos do homem seco e só. E fez um “tchau” com a mãozinha de quem aprende os primeiros gestos.
Ele fechou os olhos, comovido, e acordou em seu quarto de homem sozinho. Já era dia e não havia praia, mas os móveis, as roupas e as angústias estavam todos ali. A passeata de pensamentos, aflições, pesares e culpas se dispersara. Cada pensamento, cada aflição, pesar e culpa retomara seu lugar no mundo. O despertador tocou. E a vida recomeçava, em sua sequência lógica e louca de um dia depois do outro.