Apenas o reflexo opaco do que fomos ou do que somos

Apenas o reflexo opaco do que fomos ou do que somos

Eu estava perdido entre aquilo que eu queria e o que me ofereciam. Bebia em um só gole toda a felicidade que me foi negada. A taça ressoou apenas com o impacto contra o chão repleto das cinzas de nossas vidas. E foi direto no gargalo que encharquei a minha garganta, deixando o excesso rolar pelo meu peito e pelos, matando de uma só vez a minha sede sem me preocupar com a ressaca.

E era na embriaguez, na loucura cheirando a fumo velho, no suor dos nossos corpos que encontrávamos a pureza. Na entrega completa ao que somos, deitando ao chão as regras e as etiquetas, permitindo entrar pela fresta da nossa cortina poucos raios de lucidez. Apenas o suficiente para manter a alma conectada ao que resta com o outro lado da porta.

A cama não era apenas leito, era para nós antes um caleidoscópio voltado para o espaço, em que você se perdia entre estrelas vivas e mortas, constelações, galáxias, todo o silêncio e tempo necessários para encontrar o que procurava sem saber ao menos por onde começar a busca. E por isso andávamos em círculos, seguindo o movimento de rotação, depois dançando pela translação até finalmente cairmos exaustos na maciez do nosso colchão imundo.

Animais feridos na alma. Farejando o sangue nas nossas fraquezas, instigando o ataque, competindo em força e em pureza. Negando desejos, suplicando perdões e atiçando culpas. Éramos, não bastávamos. Esperando da boca mais do que um beijo ou xingamentos, das mãos mais do que carícias e atrevimentos. “O meu pau te ofende?”, eu repetia a pergunta tentando buscar na carne uma âncora para o seu delírio mesquinho e universal.

Para você bastava a antítese. Eu era vulgar e sujo, mas mantinha a alma reta, rígida até mesmo na aparente incongruência das minhas escolhas. Finalmente um vilão cansado de buscar ser um herói em uma terra sem paciência para o que é sublime. O meu terno não me cabia, a gravata sufocava o grito adormecido que você queria arrancar a cada tapa ou beijo. Extirpava as minhas contradições e com prazer sádico as remendava, buscando em um novo arranjo desmontar a certeza de que eu não te amava.

Segurava o meu rosto em suas mãos enquanto o gozo jorrava, me fazendo encarar os buracos negros dos seus olhos, tentando me mostrar um universo para além daquele teto. Hostil, vazio de vida e sentimento. Apenas uma paz amaldiçoada pela ausência. Uma constante certeza do infinito, sem qualquer desafio. Uma criança buscando nas estrelas o brilho fugaz de fogos de artifício.

Eu virava o rosto. Não queria a promessa vazia do infinito. A minha luta era travada no campo da mortalidade. Aceitando deixar para o futuro apenas o significado torto de linhas escritas apressadas entre um gole e outro ou no seu ventre cheio de vida. Não deixo como herança as expectativas suas ou minhas. Apenas o reflexo opaco do que fomos ou do que somos, seja como torres ou como carne. Não aspiro mais divindades.

Perdão. Eu não consegui fazer os seus lábios pararem de tremer. Tampouco o meu abraço foi capaz de conter os espasmos do seu corpo, tão distantes dos nossos de prazer. Eu não consegui fazer a sua pupila se contrair e te fazer dormir. Eu fracassei como homem, mas obtive êxito como igual. Falho, torto, pecador. Tentaram me internar, buscando me redimir com a razão. Me entupiram de remédios, buscando a mansidão. Aceito. Entre um gole e outro, por favor.