A coisa mais importante do mundo não é o amor. É a água

A coisa mais importante do mundo não é o amor. É a água

Fizemos um ótimo trabalho destruindo o planeta. Hoje, a água pura é vendida no mercado negro a cinco chibatadas-na-cara por galão. Um escândalo. Reclamar com quem? Com o bispo? O bispo e seus asseclas foram presos pelas forças federais provisórias por terem forçado os paroquianos a doar o próprio sangue em prol das causas da igreja, uma vez que os estoques de água-benta também já se encontravam na guimba. Onde está Jesus que não volta para transformar todo esse vinho em água?

O Governo de Coalisão jogou a toalha. Uma vergonha. Em rede nacional, contido e algemado em frente às câmeras, o presidente declarou, com uma tarja preta sobre os olhos, mais as iniciais, que o povo não fazia noção de quantos buracos a Hidrobrás teria furado nos últimos meses, desde o início da sua gestão fraudulenta, em busca do líquido precioso nos lençóis freáticos. Cínico feito um vampiro num banco de sangue, ele rogou, conclamou a população para economizar as reservas domiciliares de petróleo. Tomar banho com o que, senhor presidente? Com poeira? Com saliva? Com água que passarinho não bebe? A certa altura do discurso, ele sugeriu que, num esforço a mais pelo bem do país que pelejava para emergir da merda, bebêssemos a urina uns dos outros, de forma porca e solidária. Puro escárnio, provocação.

O planeta anda à beira de um colapso. As nações ricas que dominam a tecnologia para extrair o sal da água dos oceanos constituíram um bloco tirânico dos mais organizados que submeteu os países miseráveis e desarticulados a um humilhante jugo econômico que mantém os seus índices de desenvolvimento humano numa faixa mais que deplorável. Os refugiados mexicanos, por exemplo, ultimamente, têm sido repelidos e desestimulados a migrar, atingidos por jatos de Coca-Cola ultra-gelada que são disparados de pistolas-gêiser equipadas com sensores de desespero humano, instaladas de dez em dez metros no topo do muro que foi construído na fronteira com os Estados Unidos pelo falecido Donald Trump.

Cada um se vira como pode. Eu escrevo. Mesmo sem nenhum incentivo governamental, um bando de cientistas trabalha por essas plagas, incessantemente, tentando desenvolver uma audaciosa e redentora técnica que extrairá o sal das lágrimas do povo, propiciando, em última instância, no final das contas, uma água límpida, incolor e inodora, de qualidade incrível, somente comparável às melhores águas produzidas por meio do derretimento da neve do Kilimanjaro ou do cume dos Alpes Suíços, com as quais a elite da humanidade lava as suas genitálias depois de trepar, deitada em berço esplêndido.

Quisera cantar o hino nacional, mas, já perdi o fôlego, a esperança, a vontade e aquela letra comprida que não me entra na cabeça de jeito nenhum. Quem diria que chegássemos a esse ponto, ao cúmulo das guerras e das inclementes invasões territoriais em busca de água. Hoje, completam-se exatos dois anos desde que o país foi subjugado pelas sedentas forças do Eixo Hídrico Mundial. Há incontáveis pistões nas plataformas aquíferas instaladas nos mais relevantes mananciais da nação: pantanal mato-grossense, Rio Amazonas, Rio São Francisco, dentre outros. Toda a água chupada do solo e do subsolo tem sido envazada em tambores, containers e cantis para ser enviada em aviões de carga que decolam regularmente do Galeão.

Aliás, olhando aqui de cima, o Rio de Janeiro continua lindo, mesmo sitiado, mesmo invadido e patrulhado pelos exércitos dos impérios mancomunados que, finalmente, convidaram todos os envolvidos a comer grama pela raiz e puseram números finais à antiga onda de violência que assolava a cidade, por causa da primitiva disputa das quadrilhas pelos pontos de venda e tráfico de água salobra. Por enquanto, até que a minha tinta acabe, que a morte nos separe ou que um cometa case com os meus planos e nos atinja em cheio para nos libertar de tanto pavor e iniquidade, só nos resta chorar, chorar bastante, dia e noite; chorar sofrido, do fundo do coração, se é que ainda exista algum batendo dentro do peito; chorar, chorar e chorar, feito criança, feito mulherzinha; chorar o mais que pudermos para matar essa sede de justiça que deixa um gosto amargo na boca e nas palavras.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.