Gustavo Mesquita, doutor em História pela USP, venceu o 6º Concurso de Ensaios sobre Gilberto Freyre com o trabalho “Gilberto Freyre e o Estado Novo: Região, Nação e Modernidade”, publicado pela Editora Global. Nesta entrevista ele explica o apelido “vitoriano dos trópicos” dado a Freyre e sua relação com figuras como Getúlio Vargas, Florestan Fernandes e Oscar Niemeyer. Também destaca a relação de Freyre com os movimentos negros, sua visão acerca do sobrenatural, vocação para a polêmica e muito mais.
O que significa ser um vitoriano dos trópicos?
Gustavo Mesquita — Sua primeira pergunta já tocou numa polêmica. O fato de Freyre ter sido um intelectual cosmopolita, interessado na cultura humanística universal e guloso leitor das criações da literatura, da história, da filosofia e das ciências sociais, fez com que seus biógrafos e estudiosos procurassem as inspirações mais fortes de suas ideias. Assim nasceu o rótulo de “vitoriano dos trópicos”. Menos politicamente e mais esteticamente, esse termo quer dizer que Freyre se inspirou nas artes e na literatura inglesas da era vitoriana para escrever o controverso “Casa-grande & Senzala”. As obras ensaísticas e poéticas de Walter Pater, Lafcadio Hearn, Charles Dickens e W. B. Yeats, entre outros, teriam lhe ensinado o uso assistemático e esplendoroso da palavra na forma de um ensaio. A autora do termo, Maria Lúcia Pallares-Burke, chamou atenção para a anglofilia de Freyre, apaixonado pela literatura vitoriana. Mas nesse ponto é importante ter cuidado redobrado: o termo “vitoriano dos trópicos” pode dar a entender que Freyre era simpático aos valores da sociedade vitoriana, como o protestantismo, o industrialismo e o moralismo reinantes nas cidades. Isso está completamente errado! Nada mais contrário ao que ele pensou e propôs para os trópicos em sua obra…
Seu trabalho, premiado no 6º Concurso Nacional de Ensaios sobre Gilberto Freyre, trata das relações de Freyre com o Estado Novo. Em linhas gerais, quais foram essas relações?
Gustavo Mesquita — Foram relações muito fortes, para discutir interesses que diziam respeito à identidade do brasileiro no mundo moderno, e por serem fortes e comprometedoras mesmo é que Freyre sempre tentava escondê-las. Ele quis esconder seu pacto com o regime de Vargas. O livro “Gilberto Freyre e o Estado Novo” põe uma lupa sobre essas relações e revela algumas de suas consequências para a história, a memória e a invenção da nação.
Freyre chegou a se encontrar pessoalmente com Vargas?
Gustavo Mesquita — Sim, algumas vezes. Nos “Diários” de Vargas não há registro desses encontros, mas isso não quer dizer que não tenham se encontrado. No meu livro toco mais nesse assunto. Muita comunicação de Freyre com o governo aconteceu por cartas e telegramas, em vários momentos turbulentos da Era Vargas.
A noção de democracia racial defendida por Gilberto Freyre costuma ser acusada de ser uma desculpa para justificar o racismo. Isso é justo, simplificação, desonestidade intelectual ou os militantes simplesmente não entenderam o conceito?
Gustavo Mesquita — Os ativistas negros não aceitam mais viver numa sociedade que se diz livre do racismo, mas não dá oportunidades iguais de cidadania por preconceito. Há bastante tempo, Freyre é o alvo da militância justamente porque seu pensamento é dominante entre as elites. Uma guerra está armada entre os que acreditam que a mestiçagem preponderante livrou o Brasil do racismo e os que acreditam que ela só criou um racismo diferente do padrão nórdico, porém igualmente prejudicial para os afrodescendentes no Brasil. O problema é quando os mais radicais e obcecados querem lançar todos os problemas do país nas costas do sociólogo. Isso é um erro inaceitável! É inaceitável quererem que nós o esqueçamos por uma falsa justificativa de que ele é só um ideólogo do branqueamento. Simplificação mais burra! Ainda bem que Ricardo Benzaquen de Araújo pôde trazê-lo de novo à cena com seu “Guerra e Paz”.
Em sua famosa entrevista para a revista “Playboy”, Gilberto Freyre disse que alguns de seus amigos mais próximos eram muito chatos, como Oscar Niemeyer, Miguel Arraes e Rubem Braga. Justificou que certas pessoas são “mais interessantes escrevendo do que falando”. Essa frase serve para o próprio Gilberto Freyre? Ou seja, sabemos que Freyre foi um grande prosador, mas ele era chato ou um “papista” dos bons, como Ariano Suassuna?
Gustavo Mesquita — Vaidoso que era, um – como ele mesmo dizia – autoapologeta, o que vou dizer agora o envaideceria ainda mais: Freyre era bom de papo. Talvez pela beleza de suas ideias nacionalistas e boa oratória, ele conseguia atrair e convencer muitas audiências mundo afora. Temos poucos vídeos com ele disponíveis na internet e em outros acervos. É difícil avaliar. Acho que ele não era tão bom quanto Ariano Suassuna na contação de histórias em público.
Nessa mesma entrevista, Gilberto Freyre disse que Oscar Niemeyer, apesar de ser um arquiteto genial, era muito ignorante, que só falava por chavões e slogans comunistas. Aparentemente, o objetivo foi alfinetar o amigo dizendo que suas amarras ideológicas restringiam suas reflexões e mesmo leituras. Qual a relação do Gilberto Freyre com o Partidão? Havia diálogo?
Gustavo Mesquita — Interessante como essas farpas eram recíprocas, pois Niemeyer também atacava Freyre com frequência. Era um duelo dos bons! Realmente estimulante para o pensamento. Eles trabalharam juntos algumas vezes, como na direção do atual IPHAN, então eram naturais essas brigas e desentendimentos vários. Ao contrário de Niemeyer, Freyre nunca foi comunista. Foi intelectual atuante ao modo anticomunista, especialmente na Guerra Fria, momento em que colaborou para a plataforma dos Estados Unidos e defendeu a ditadura militar no Brasil.
Um dos livros mais divertidos de Freyre é “Assombrações do Recife Velho”. Dizem que ele afirmou ter visto um fantasma em certa ocasião. Hoje, sua casa recebe turistas para um “tour assombrado”. Como interpretar esse lado “místico” de Freyre? Ele era religioso? Abertamente supersticioso? Ou tudo é intriga da oposição?
Gustavo Mesquita — Ele era um sujeito inventivamente contraditório. Vejam o seu “Como e Por Que Sou e Não Sou Sociólogo”. São os contrários se equilibrando sem formar um todo uno, uma única personalidade intelectual. O que ele gostava mesmo era de alimentar elogios em torno de si. Suas histórias são recheadas de mistério, além, claro, de muita qualidade literária. E acaso isso não atrai mais público para sua obra?
Em mais de uma ocasião Gilberto Freyre menosprezou o trabalho de Caio Prado Júnior. Consta que certa vez chegou a dizer “quem é Caio Prado Júnior comparado comigo?”. O que motivou essa rivalidade? Aonde ela levou?
Gustavo Mesquita — Não é bem assim. No começo das carreiras de ambos, quando ainda estavam se afirmando, Freyre falava de Caio Prado Júnior com respeito. Chegou a dizer que concordava com alguns aspectos do livro marxista “Evolução Política do Brasil”. Provavelmente essa relação se degradou por causa de suas posições políticas posteriores à Era Vargas. O fato é que com o tempo Freyre se afastou o quanto pôde dos intelectuais alojados nas universidades, sendo que, para estes (especialmente os de São Paulo), o sociólogo pernambucano era um autêntico representante do estamento burocrático, maior símbolo do atraso nacional. Essa guerra só terminou quando Freyre faleceu.
A rivalidade com Florestan Fernandes, que você estudou no doutorado, parece ter sido mais amistosa. É verdade ou só impressão?
Gustavo Mesquita — Parece ser verdade. Tirando o episódio em que Freyre chamou Fernando Henrique Cardoso de inteligente, Florestan Fernandes de fraco e Octavio Ianni de burro em seu “Como e Por Que Sou e Não Sou Sociólogo”, o tratamento entre eles foi cortês, até certo ponto. Reparem em como o tratamento entre eles era respeitoso… Farpas recíprocas, além das críticas abertas, foram muito comuns.
Gilberto Freyre realmente almejava ser professor na USP? Florestan Fernandes teve alguma influência nisso?
Gustavo Mesquita — Eu nunca soube dessa vontade. Na verdade, em algumas cartas para Florestan ele menosprezou a USP. Ele não tinha interesse algum nas universidades de modo geral e na forma de fazer pesquisa que elas impõem. São, para ele, pesquisas pouco significativas, cuja linguagem não encarna o devir do homem.
Qual a diferença fundamental entre a visão racial de Freyre e a de Florestan Fernandes?
Gustavo Mesquita — O primeiro via na cultura da mestiçagem nossa principal vantagem diante de todas as outras nações do globo, enquanto o segundo a via como um aspecto secundário, importando mais a estrutura das relações entre os brancos e os negros, ou seja, a herança da escravidão. Para Florestan, a mestiçagem é só um passo a mais no processo, em curso, de limpeza étnica e social iniciado depois da abolição do trabalho escravo, no século 19. Para Freyre, a mestiçagem expressa a originalidade da cultura brasileira, nossa capacidade de nos misturarmos sexual e socialmente e formarmos vários outros, infinitamente. Daí vem sua ideia muito polêmica de metarraça: a única sociedade do mundo sem raças. Outros intelectuais, é bom lembrar, entraram nesse debate. Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e Clóvis Moura são alguns exemplos. Precisamos ouvir mais o que esses pensadores disseram sobre a questão racial.
É possível dizer quem está certo?
Gustavo Mesquita — Não. Sugiro que procurem a verdade nas bibliotecas e no olhar sobre a realidade de ontem e de hoje. Mas deixo aqui uma pulga atrás da orelha: passados 130 anos da abolição, por que os negros ainda são os mais pobres na sociedade brasileira?