Faz tempo que a paciência foi expulsa da nossa casa mental. Atirada longe feito caroço de tangerina. Não há definitivamente mais espaço para esta virtude se refestelar. Seja na cobiçada poltrona da sala, na cama macia do quarto ou em qualquer canto do nosso recheado cérebro. Cá entre nós, bem que a paciência gostaria de tricotar, calmamente, possibilidades inauditas dentre as inquietudes rotineiras que nos infestam.
Mas que nada. A calma hoje é para os fracos. Ou então para os gourmets adeptos da lenta degustação de iguarias. Slow food. Slow life. Slow sex.
Sa-bo-re-ar. Você ainda consegue identificar o gosto deste verbo, aglutinado de onomatopeias prazerosas — ahnn, hummm, ahhh?
Consegue fazer samba e amor até mais tarde, como entoaria Caetano, imerso em malemolências, evocando “Samba e amor”, genial composição de Chico Buarque? Eis uma letra rodeada de manhas, preguiças, bocejos compridos e sem nenhuma pressa de digerir a delícia de certos encantos da intimidade.
Desejos a metro, languidez capaz de paralisar relógios, entregas plenas ao instante soberano de sensações estiradas sobre na pele, multiplicadoras de hormônios e esgares sinuosos.
Xô deleite. A maratona dos dias exige de nós disposição, atenção e energia intensivas.
Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião. Tem que correr, tem que suar, enfrentar as horas debaixo do frenesi de câmeras aceleradas, sem jamais usufruir do privilégio de imergir na cândida expressão poética das cenas dos filmes mudos do mestre Carlitos.
Paciência é uma das tantas palavras extirpadas a fórceps dos dicionários vivenciais contemporâneos. Calma, contemplação, quietude e placidez seguem na mesma esteira da aposentadoria atitudinal.
Alguns espécimes tidos como os mais vagarosos da fauna planetária, como a tartaruga, o bicho-preguiça, caracol, cavalo-marinho — teimam em resistir e permanecer sobre a terra enlouquecida. Têm coragem e determinação de sobra, ninguém duvida.
Os tempos atuais requerem a aceleração dos guepardos, a agilidade dos falcões-peregrinos, a dinâmica dos antílopes. E, se você não sabia, é só nos desenhos animados que o coiote perde para o papa-léguas.
Dá nervoso esperar a noite passar, a alvorada despontar no horizonte, manchando os céus de vermelho. Esperar o trem, o ônibus, o metrô, um táxi que trafegue vazio, em meio à chuva fina. O arroz que não cozinha. O bolo que não fermenta. A semente que não germina e o bebê que tarda a nascer. Por enquanto, aliás, só se toleram mesmo os nove meses de gravidez — quem dera zipá-los para cinco, que já estava de bom tamanho ganhar um filhote mais apressadinho.
A menstruação que tarda. O peitinho que não desabrocha, o príncipe dos sonhos que nunca chega, mesmo atravessando o cansaço expectante da maturidade.
As férias que tardam, a declaração de amor suprimida de bocas secas e severas. O carinho não manifesto, o perdão sempre adiado. O sorriso proibido de sorrir pelas mágoas do passado.
Alguém já arriscou equivaler a paciência à força motriz de realizações. Prima-irmã da determinação. Enteada da teimosia. Alicerce de construções esmeradas. Sem ela, aliás, qualquer ensejo de virtuosismo se perde. Conquistar a primazia de atuar como primeiro violino de uma orquestra. O pianista aclamado em plateias universais. O talentoso arquiteto de suaves jardins orientais.
Porém urge não confundir a paciência com a espera. A segunda é passiva, inerte, quase resignada. Embora afirmem que quem espera sempre alcança.
Paciência também rima com tenacidade, foco, planejamento. Destoa de ventanias, intempéries, demandas sucessivas e implacáveis destes desumanos tempos. Atualidade sisuda e fria. Que rejeita investir em relacionamentos. Recusa-se a apostar na rica fecundidade das diferenças. Nem na sensatez de abandonar renitentes defeitos cozinhando-os em banho-maria até se tornarem bem feitos.
De que adianta então, defender esta virtude se as voragens cotidianas insistem em descartá-la como madrinha protetora da gestualidade plena, consciente, longeva?
Não basta citar os vinhos de melhor safra, as compotas de frutas cozidas em tachos enormes, as pomposas golas de brocado rendadas, torneadas fio a fio por costureiras ciosas, as imponentes catedrais góticas — que enfrentam a supremacia dos séculos, assim como o extraordinário vigor tão presente nas árvores centenárias.
De uma vez por todas: paciência não combina com a sua roupa, seus sapatos, seus cabelos frequentemente tingidos de cores ácidas. Nem com a sua agilidade manual, digitando no tablet, com a velocidade da luz, as notas básicas da próxima reunião de negócios.
Ela destoa dos selinhos, dos encontros a jato marcados via aplicativos pelo smartphone, porque na atualidade sexo é mais que fundamental.
Enquanto isso, sabemos que Pedro pedreiro continua esperando o trem. Que Maria amou daquela vez como se fosse a última. E, como enfatizaria Paulinho da Viola, me perdoe a pressa, que é a alma dos nossos negócios. As cantilenas da MPB se espalham em nossas cabeças, correndo alternadas por nossas veias.
Lenine, autor de “Paciência” começa assim a sua música: “Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/Até quando o corpo pede um pouco mais de alma/ A vida não para/ Enquanto o tempo acelera e pede pressa /Eu me recuso faço hora vou na valsa/A vida é tão rara…”
Mas hoje a cadência é outra. Os ritmos são alucinados a tal ponto que recentemente um robô resolveu se suicidar na Austrália. Quem sabe a máquina, responsável pela maior parte dos serviços domésticos, cansou de ser androide. Aí não teve jeito: resolveu jogar o resto da sua ciber-paciência no lixo…