O escritor francês Marcel Proust gostava de jogar uma brincadeira de salão chamada “Confissões”, onde os participantes respondiam vinte e nove perguntas pessoais. Em sua homenagem, hoje o jogo ficou conhecido como “Questionário Proust”.
A Revista Bula, depois de ter adquirido em um concorrido leilão no eBay a Tábua Ouija original do filme “O Exorcista”, entrou em contato sobrenatural com o próprio Marcel Proust, em carne, osso e ectoplasma, que, relembrando seus tempos de jornalista, assinou contrato exclusivo como nosso correspondente do outro lado da vida.
Sempre nas altas esferas celestiais, Marcel Proust entrevista Gabriel García Márquez, que também começou como jornalista. Eis um verdadeiro encontro de titãs, de um lado o mestre do simbolismo modernista, do outro o papa do realismo fantástico. Com vocês, na série Entrevistas do Além, o legitimo Questionário Proust com Gabo, psicografado em javanês pelo meio médium ligeiro Ademir Luiz.
Marcel Proust — Monsieur Márquez, fala francês?
Gabriel García Márquez — Morei em Paris. Foi lá que comecei a escrever a novela “Ninguém escreve ao coronel”. Há inclusive uma praça no coração de Paris com meu nome.
Marcel Proust — É solitária a vida após a morte?
Gabriel García Márquez — Não. Sempre dou uma descida. Quando eu era criança, minha avó me contava histórias horríveis de mortos que apareciam. Nossa casa parecia mal-assombrada. Agora sou eu que assombro.
Marcel Proust — Teve uma vida intensa. Como define a vida?
Gabriel García Márquez — Poderia dizer que é apenas a crônica de uma morte anunciada, mas prefiro dizer que todo ser humano tem três vidas: a pública, a privada e a secreta. O que importa na vida não é o que acontece com você, mas o que você lembra e como você lembra.
Marcel Proust — Encontrou-se com Deus?
Gabriel García Márquez — Não, nem quero. Não acredito em Deus, mas tenho medo dele.
Marcel Proust — E em Lúcifer, acredita?
Gabriel García Márquez — Meu romance de estreia teve o título de “A Revoada — O Enterro do Diabo”. Leiam e vejam por si mesmos.
Marcel Proust — Borges dizia que sua visão de paraíso é uma biblioteca? E a sua?
Gabriel García Márquez — Uso outro sentido que não a visão, uso o olfato: para mim o paraíso precisa ter cheiro de goiaba.
Marcel Proust — E sua visão de inferno?
Gabriel García Márquez — Não há nada mais triste do que uma cama vazia.
Marcel Proust — Pode haver amor em tempos de cólera?
Gabriel García Márquez — O amor se faz maior e mais nobre na desgraça.
Marcel Proust — Qual livro levaria para uma ilha deserta?
Gabriel García Márquez — “Pedro Páromo”, de Juan Rulfo. Não me tornaria escritor sem ele.
Marcel Proust — Quais os grandes autores que o inspiram?
Gabriel García Márquez — Rulfo, é um, sem dúvida. Mas, em meus tempos de formação, li muito James Joyce, Hemingway e Virginia Wolf. Porém, há um acima de todos, Faulkner. Em meu discurso de recebimento do Nobel chamei-o de “meu mestre”.
Marcel Proust — O que foi escrever para monsieur?
Gabriel García Márquez — Há um momento em que todos os obstáculos são derrubados, todos os conflitos se apartam e à pessoa ocorrem coisas que não tinha sonhado, e então não há na vida nada melhor que escrever. Isso é o que eu chamaria de inspiração.
Marcel Proust — O que é Macondo?
Gabriel García Márquez — Macondo não é um lugar, é um estado de espírito que nos permite ver o que quisermos ver e como queremos ver.
Marcel Proust — Por que optou pelo realismo mágico como ferramenta literária?
Gabriel García Márquez — A vida cotidiana na América Latina nos demonstra que a realidade está cheia de coisas extraordinárias. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade. Temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este é o cerne da nossa solidão.
Marcel Proust — Solidão é a palavra-chave de sua obra?
Gabriel García Márquez — Solidão sim, mas também memória. A solidão, para mim, é o contrário da solidariedade. A América Latina não quer, nem tem qualquer razão para querer, ser massa de manobra, sem vontade própria.
Marcel Proust — Memória? Isso me agrada. Também a memória involuntária?
Gabriel García Márquez — É um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que não são essenciais.
Marcel Proust — Na vida após a morte, ainda é comunista?
Gabriel García Márquez — Não sou comunista. Nunca fui. E nunca pertenci a nenhum partido político. Sou latino-americano anticolonialista. Essa confusão acontecia porque assumia posições que contrariavam interesses dos Estados Unidos.
Marcel Proust — E sua amizade com Fidel Castro?
Gabriel García Márquez — Os motivos de qualquer amizade são múltiplos e insondáveis. Em minha amizade com Fidel o assunto dominante era a literatura, quase não falávamos de política. Fidel era um grande leitor.
Marcel Proust — E encontrou-se com Fidel Castro no pós-morte?
Gabriel García Márquez — Não. Suspeito que, como diria Dante, ele esteja em outro “círculo”, mais abaixo.
Marcel Proust — Por falar em amizades, ou amizades desfeitas, ainda se recente do soco que Vargas Llosa lhe deu?
Gabriel García Márquez — Digamos que vez ou outra eu puxo o pé dele durante o sono. Você não pode imaginar como pesa um homem morto.
Marcel Proust — É verdade que brigaram por conta de uma mulher?
Gabriel García Márquez — Não vou desfazer o mistério, mas acrescento que não se poderia entender a minha vida sem levar em conta a importância que nela tiveram as mulheres.
Marcel Proust — Pode definir essa importância?
Gabriel García Márquez — Em todos os momentos de minha vida houve uma mulher que me levou pela mão nas trevas de uma realidade que as mulheres conhecem melhor que os homens e nas quais se orientam melhor com menos luzes.
Marcel Proust — Como reconhece essa mulher que pode guiá-lo em cada momento?
Gabriel García Márquez — Tenho um instinto muito especial: quando entro num lugar cheio de gente, sinto uma espécie de sinal misterioso que me dirige a vista, irremediavelmente, para o local onde está a mulher que mais me inquieta entre a multidão.
Marcel Proust — A mais bela?
Gabriel García Márquez — A mulher mais bela do mundo não precisa ser, necessariamente, a mais apetecível. Muitas vezes, ao fim de uma breve conversa, noto aspectos de temperamento que podiam causar certos conflitos emocionais que talvez não sejam compensados pela beleza.
Marcel Proust — Admirando tanto as mulheres, se considera um feminista?
Gabriel García Márquez — Não sei se um homem poderia se definir como feminista. Precisaria perguntar a elas. Em todo caso, há feministas que o que desejam realmente é ser homens, o que as define de uma vez como machistas frustradas. Outras reafirmam a sua condição de mulher com uma conduta que é mais machista que a de qualquer homem.
Marcel Proust — Falta ternura a essas mulheres?
Gabriel García Márquez — A ternura é inerente não às mulheres, mas aos homens. As mulheres sabem que a vida é muito dura.
Marcel Proust — Não teme ser considerado machista por conta de tais declarações?
Gabriel García Márquez — Todos somos reféns de nossos preconceitos. Diria que o machismo, tanto nos homens quanto nas mulheres, não é mais que a usurpação do direito alheio.
Marcel Proust — O que acha de Bob Dylan ganhar o Prêmio Nobel?
Gabriel García Márquez — Bom para ele. Mas note que Vargas Llosa só ganhou o Nobel em 2010. Portanto, quase trinta anos depois do meu. Qual soco foi mais forte?
Marcel Proust — Monsieur possui muitas frases popularizadas na internet. Olhando de cima e por cima, o que acha da rede?
Gabriel García Márquez — A Internet é como Macondo. Seu modelo está na realidade, mas é outra coisa. Nela tudo pode acontecer, nada é suficientemente estranho ou fantástico. Inclusive está entrevista absurda, mediada por um médium descrente em mediunidade.
Marcel Proust: Leu “Em Busca do Tempo Perdido”?
Gabriel García Márquez — Estou relendo, todos os dias ao entardecer, sentado em um banco da praça que leva meu nome em Paris.