A Bula pediu a leitores, editores e colaboradores que apontassem os poemas mais significativos de autoras brasileiras em todos os tempos. Os dez mais votados foram reunidos em uma seleção, que contempla poetas de diferentes estilos literários e que representam variadas gerações da literatura no país. É importante destacar que a lista não tem intenção de ser abrangente e definitiva, e apenas representa a opinião dos participantes. Além disso, a ordenação dos poemas não segue critério classificatório.
As poetas selecionadas foram: Cecília Meireles, considerada uma das autoras brasileiras de maior expressividade, com mais de 50 obras publicadas; Adélia Prado, poeta, professora e filósofa brasileira ligada ao modernismo; a mineira Maria Ângela Alvim, cujo único livro publicado em vida foi “Superfície” (1950); a ficcionista, cronista e dramaturga Hilda Hilst, considerada uma das maiores escritoras de língua portuguesa do século 20; Ana Cristina Cesar, um dos principais nomes da Poesia Marginal; a pioneira na escrita de poesia erótica no Brasil, Gilka Machado, pertencente ao movimento simbolista; Dora Ferreira da Silva, fundadora da revista “Diálogo” e vencedora de três prêmios jabutis; Henriqueta Lisboa, a primeira mulher eleita membro da Academia Mineira de Letras e um dos grandes nomes da lírica modernista; Claudia Roquette-Pinto uma das poetas de maior destaque da contemporaneidade e vencedora do Prêmio Jabuti em 2001; e Zila Mamede, considerada uma das maiores versistas da literatura brasileira e uma bibliotecária de destaque, que ajudou a reestruturar importantes bibliotecas na década de 1950.
Os poemas selecionados foram publicados nos livros: “Viagem Viagem” (1939), Cecília Meireles; “Bagagem” (1976), Adélia Prado; “Superfície” (1950), Maria Ângela Alvim; “Do Desejo” (1992), Hilda Hilst; “A Teus Pés” (1982), Ana Cristina Cesar; “Cristais Partidos” (1915), Gilka Machado; “Andanças” (1940), Dora Ferreira da Silva; “Flor da Morte” (1949), Henriqueta Lisboa; “Corola” (2000), Claudia Roquette-Pinto; “O Arado” (1959), Zila Mamede.
Motivo
Cecília Meireles
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Com licença poética
Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Há uma rosa caída
Maria Ângela Alvim
Há uma rosa caída
Morta
Há uma rosa caída
Bela
Há uma rosa caída
Rosa
Alcoólicas (trechos)
Hilda Hilst
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Olho muito tempo o corpo de um poema
Ana Cristina Cesar
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
Ser mulher
Gilka Machado
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e, oh! atroz, tentálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
Nascimento do poema
Dora Ferreira da Silva
É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.
É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.
E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranquila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.
Sofrimento
Henriqueta Lisboa
No oceano integra-se (bem pouco)
uma pedra de sal.
Ficou o espírito, mais livre
que o corpo.
A música, muito além
do instrumento.
Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso,
Ficou o selo, o remate
da obra.
A luz que sobrevive à estrela
e é sua coroa.
O maravilhoso. O imortal.
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
O dia inteiro
Claudia Roquette-Pinto
O dia inteiro perseguindo uma ideia:
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.
Banho (rural)
Zila Mamede
De cabaça na mão, céu nos cabelos
à tarde era que a moça desertava
dos arenzés de alcova. Caminhando
um passo brando pelas roças ia
nas vingas nem tocando; reesmagava
na areia os próprios passos, tinha o rio
com margens engolidas por tabocas,
feito mais de abandono que de estrada
e muito mais de estrada que de rio
onde em cacimba e lodo se assentava
água salobre rasa. Salitroso
era o também caminho da cacimba
e mais: o salitroso era deserto.
A moça ali perdia-se, afundava-se
enchendo o vasilhame, aventurava
por longo capinzal, cantarolando:
desfibrava os cabelos, a rodilha
e seus vestidos, presos nos tapumes
velando vales, curvas e ravinas
(a rosa de seu ventre, sóis no busto)
libertas nesse banho vesperal.
Moldava-se em sabão, estremecida,
cada vez que dos ombros escorrendo
o frio d’água era carícia antiga.
Secava-se no vento, recolhia
só noite e essências, mansa carregando-as
na morna geografia de seu corpo.
Depois, voltava lentamente os rastos
em deriva à cacimba, se encontrava
nas águas: infinita, liquefeita.
Então era a moça regressava
tendo nos olhos cânticos e aromas
apreendidos no entardecer rural.