Tolstói, o autor que escancarou a injustiça dos tribunais e a hipocrisia da igreja

Tolstói, o autor que escancarou a injustiça dos tribunais e a hipocrisia da igreja

Imagine a seguinte situação: você é convocado para fazer parte de um júri. Ao chegar lá, descobre que o réu foi sua vítima no passado. O sentimento de culpa pelo mal que lhe causou aflora. Além disso, você acredita na inocência desta pessoa, que conhece tão bem. No entanto, devido a um descuido elementar durante o julgamento (foi escolhido para presidir o júri), o inocente é condenado. A partir desse momento, você fará de tudo para rever a sentença e livrar o infeliz da pena imposta. Eis a situação do príncipe Dmitri Nekhludov em relação a Catarina Maslova, em “Ressurreição” (1899), de Lev Tolstói.

Mas que mal Nekhludov causou a Maslova (também chamada de Katucha), na juventude? O príncipe se aproveitou do fato de ela ter se apaixonado para violentá-la. Chegou a pagar-lhe alguns rublos, como forma de compensação. Só e desiludida, a moça descobriu-se grávida, perdeu o filho e virou prostituta. Na sequência, misturou-se com as pessoas erradas, que por sua vez a envolveram em um latrocínio. Daí porque acabou no banco dos réus, acusada de assassinato.

Transcorrem dez anos e, ironicamente, o homem que a desgraçou terá de julgá-la, agora. Assim, diante das contradições em que se descobre, tem início a transformação de Nekhludov em uma pessoa melhor. A condenada inicia o cumprimento da pena, e duas questões entram no severo escrutínio tolstoiano: a dificuldade — senão a impossibilidade! — humana de praticar a justiça (tema para o qual Maslova serve de pretexto) e a difícil afirmação do “eu” perante as crenças sociais.

A primeira questão se anuncia nas três epígrafes evangélicas que Tolstói utiliza para abrir as duas partes que compõem o livro: duas de S. Mateus e uma de S. João, sobre culpa, julgamento e perdão.

Na fase de julgamento, o narrador percebe que os elementos do júri decidem influenciados, sobretudo, pela vaidade e por simpatias, resvalando para a negligência. Embora sejam instruídos pelos doutos (falhos por si mesmos), a palavra final é dada pela chamada “consciência social”, quando então a justiça escapa ao controle estrito da técnica para dar lugar a um misto de impressões subjetivas, dos mais diferentes matizes. Na prática, ela deriva de muitas conjecturas improváveis e é tirada na sorte (conforme a irônica citação que Tolstói faz de Rabelais). O júri, enfim, avalia o caso conforme seus preconceitos e limitações, acelerado não raro pelo cansaço e a pressa!

Condenada, Maslova é enviada à prisão e Nekhludov se dedica à impetração de recursos. Valendo-se do título de “príncipe”, que lhe abre todas as portas, pretende reverter a situação de Maslova utilizando-se de sua influência pessoal entre os poderosos. A partir daí, Tolstói desnuda toda a hipocrisia daquelas pessoas que poderiam ajudá-lo, vivendo em palácios e operando o sistema de justiça. Desde o negligente presidente do tribunal, por ocasião do julgamento, até as autoridades revisoras, em São Petersburgo, o que Nekhludov descobre é falsidade e aparência, que terminam por confirmar a injustiça cometida; antes que, no fim do livro, consiga a comutação da pena (graças ao perdão de Sua Majestade Imperial).

Grandes Obras de Tolstói (Nova Fronteira, 1400 páginas, tradução de Ilza das Neves e Heloísa Penteado)

Enquanto isso, acumulam-se novos sofrimentos e o narrador nos introduz no sistema prisional russo de finais daquele século dezenove, sob o provável reinado de Alexandre III. Uma plêiade de pequenos retratos é criada para representar o inferno carcerário. Em nome de vários desses personagens vívidos, Nekhludov converte-se, aos poucos, em um intercessor. Pessoas, geralmente pobres, eram presas pelos motivos mais banais. E mesmo quando os motivos são sórdidos, Tolstói (cuja convicções o príncipe defende, evidentemente) os atribui aos erros da sociedade com os indivíduos. Sem amparo, os mais carentes são levados ao vício, ao desespero e finalmente ao crime — para, depois, essa mesma sociedade condená-los hipocritamente às penas mais degradantes. Será isto justiça?

A essência do que Hannah Arendt escreveu sobre o nazismo (sobre a inumanidade de pessoas perfeitamente normais) está em “Ressurreição”. Aqui os homens, enredados por um sistema invisível que a todos submete de maneira implacável, agem em conformidade com as normas e os “regulamentos” como se fossem (e efetivamente são!) autômatos preocupados apenas em cumprir o seu dever (ainda que monstruoso). E é em nome de tais deveres — que isentam os burocratas de qualquer culpa — que impõem sofrimentos aos semelhantes. Enquanto isso, poderiam ser perfeitamente flagrados tomando uísque (as autoridades tolstoianas bebem conhaque e fumam charutos) em total alheamento dos sofrimentos infligidos.

Tolstói se empenha em demonstrar o quanto os injustiçados são produtos mais do meio do que da própria vontade. Nesse sentido, há muito de naturalismo em sua visão do homem. É um grande cético quanto à possibilidade, em geral, de o sistema normativo de leis efetivar a justiça. Em parte porque ela é a base da opressão de uma classe sobre outra, não podendo aplicar-se igualmente a todos. Porque, se assim fosse, teria de punir seus cruéis aplicadores. A imagem sutil que criou para esta distinção de classes corresponde aos dois trens que saem em viagem: um lotado de prisioneiros e, logo atrás, outro conduzindo nobres entediados.

“Ressurreição” é um livro que todo estudante e praticante do direito deveria ler. Obviamente é indicado pelo aspecto filosófico das ciências jurídicas — sem contar os elementos emocionais, psicológicos e ideológicos de cuja influência as pessoas de carne e osso, ao fazer cumprir as leis, são passíveis. Temos, em tais circunstâncias, discriminados os limites do Direito Penal, que termina em aporia, e não raro em injustiça contra parcelas inteiras da população.

Aos olhos de Tolstói, só existe uma maneira de romper com o automatismo sistêmico de tais instituições, conforme veremos a seguir.

Paralelamente, então, ao problema da Justiça (já então uma espécie de entidade sobre-humana) transcorre a conversão de um homem, anunciada, de cara, no título da obra.

Nekhludov muda de caráter três vezes durante o romance: era íntegro quando conheceu Katucha. Depois, tornou-se egoísta e devasso quando voltou a encontrá-la (e prejudicá-la), três anos depois. Por fim, reconcilia-se com seu caráter original e entra em processo de expiação — o que, imagina, pressupõe casar-se com Maslova e, além disso, distribuir suas terras de nobre aos camponeses (mujiques) que nelas trabalham. “Ressurreição” é um livro explicitamente panfletário do georgismo e do cristianismo: uma doutrina econômica e outra religiosa, o que valeu muitas censuras da crítica (como a de George Steiner, em “Tolstói ou Dostoiévski”).

Seja como for, Nekhludov atribui sua queda ao fato de “ter deixado de confiar em si mesmo para confiar nos outros”, em busca de elogios fáceis e aprovação. A depravação da moral comum é tamanha que sua própria mãe, cheia de restrições com o bom moço, “alegrou-se ao saber que o filho raptou certa senhora francesa de um dos seus camaradas”. Assim, o mal que afligiu Maslova foi consequência direta da ausência, nele, de personalidade, em submissão aos valores correntes: “Ora! Não fiz senão o que todos fazem”, reconhecerá. A consciência de sua absorção neutralizante pelo meio degradado em que vive emerge à consciência quando fica diante da moça, no tribunal, a quem, a partir daquele instante, se considera “indigno de julgar”.

Segundo essa avaliação, existe apenas uma saída, cuja ausência é causa daqueles absurdos morais: a “relação direta de homem para homem”, frequentemente estranhos distanciados pela complexa trama de normas, regulamentos e obrigações estipuladas socialmente tanto em âmbito privado quanto estatal. Só a partir deste contato — do algoz deslocado de seu conforto para vivenciar a experiência do oprimido — é que Nekhludov depara com “a verdadeira vida”: aquela que, desprovida de artifícios que tanto deleitam os nobres, reabre o coração do homem para seus semelhantes. Eis o âmago de “Ressurreição”, sob a perspectiva do indivíduo transformado.

A tensão fundamental que se estabelece, portanto, é entre a ética e o egoísmo. O homem espiritual contra o animalesco que há dentro de todos nós: “Enlouqueci e vejo coisas que os outros não veem; ou estarão loucos os homens que fazem e toleram as coisas que eu vejo?”. Temos, neste caso, a afirmação do “eu” contra as mistificações sociais, nos termos da crítica perceptiva de Harold Bloom. Todo sofrimento advém de nos comportarmos como massa, em vez de ouvir nossa voz interior.

Ao se tornar consciente disso, Nekhludov representa um homem em busca do autoconhecimento, tendo que escolher entre as regras do mundo e as regras do espírito. Nem por isso deixa de ser uma visão moralmente comprometida, e não apenas estética, do homem: este “eu” que sobressai é justamente o propagandista confesso, como foi dito, de certas ideologias. Pode-se alegar, com razão, que ninguém pratica o cristianismo e que Nekhludov, ao fim e ao cabo, expressa uma conduta impossível, portanto solitária.

Em “Ressurreição”, a curiosa arbitrariedade da Justiça é apenas o contexto em que a afirmação do “eu” se coloca como elemento central do romance. Triunfará? Ninguém sabe: a história narrada não possui um final conclusivo — o que é sintomático.

Tolstói é de uma grandeza vertiginosa, que só conseguimos enxergar parcialmente, a cada vez. Ramais inteiros deste grande rio permanecem inexplorados: a vigorosa identificação do homem com a natureza, o contraste vital entre o campo e a cidade, o caráter profético tão seriamente assumido. Tudo isto demanda mais fôlego, exigindo que paremos a fim de respirar. Não é fácil perseguir o romancista incessante, pouco inclinado a aceitar limites. Até os ensaios sobre Tolstói hão de ser extensos, para dar conta de uma imensidão que lembra a das estepes russas.


Nota: a grafia do nome do autor, aqui utilizada, baseia-se no uso consagrado pela Editora 34. Já a tradução que lemos é da Nova Fronteira, a cargo de Ilza das Neves e Heloísa Penteado.

J.C. Guimarães

Crítico literário.