A Livraria, dirigido pela cineasta espanhola Isabel Coixet, chega às telas brasileiras no dia 22 de março, trazendo nada menos do que 11 prêmios internacionais na bagagem, incluindo o Prêmio Goya, o Oscar do cinema espanhol
Na adaptação cinematográfica do romance “O Nome da Rosa” há uma cena em que o monge interpretado pelo lendário ator Sean Connery, acompanhado por um noviço, tenta encontrar o caminho para uma biblioteca secreta da Igreja. Ligeiramente perdida, a dupla de detetives medievais acaba vendo um ratinho se esgueirando pelos corredores sombrios do labirinto. Decidem segui-lo, pois como ironizou o monge, “os ratos amam mais os livros do que os sábios”. Um amor egoísta, que destrói.
Roedores, fogo e água estão entre os maiores inimigos dos livros. Esses elementos são os símbolos visuais que conduzem a narrativa do filme “A Livraria”, escrito e dirigido pela cineasta espanhola Isabel Coixet. Baseado em um romance de 1978 da escritora inglesa Penelope Fitzgerald, o longa-metragem foi indicado em 12 categorias do prêmio Goya, o mais importante do cinema espanhol, tendo vencido como melhor filme, direção e roteiro. Trata-se de uma produção conjunta espanhola, alemã e britânica. No Brasil o filme está sendo lançado pela Cineart Filmes.
A história de “A Livraria” centra-se na trajetória de Florence Green — interpretada por Emily Mortimer, indicada ao Goya de Melhor Atriz —, uma mulher gentil e otimista que decide abrir uma livraria numa pequena cidade costeira da Inglaterra, no final da década de 1950. Viúva há vários anos, tendo perdido o marido na Segunda Guerra Mundial, Florence acredita que quando lemos uma história “nós a habitamos. As capas dos livros são como telhado e quatro paredes: um livro é uma casa”.
E é exatamente sua própria casa, transformada em livraria e chamada de Old House pela comunidade, que vai desencadear os eventos que farão de “A Livraria” mais do que uma pacata história de empreendedorismo. Apesar dos temores iniciais, o comércio prospera. Embora com certo estranhamento, os habitantes da vila acabam se aventurando timidamente pelo mundo das letras. Não demora para que Florence aprenda que ficção e ensaios vendem mais do que poesia. O lucro é suficiente para manter o sonho.
Florence chega a contratar como ajudante uma menina local, Christine, interpretada com carisma pela jovem atriz Honor Kneafsey. Christine está longe de ser mais uma daquelas crianças insuportavelmente fofinhas que infestam o cinema. Ela é cínica, desbocada e muito madura para sua idade. Declara que não gosta de ler, que prefere matemática e geografia e que trabalhar meio período em uma livraria não vai mudar isso. Obviamente, está errada, mas sua conversão de tecnicista orgulhosa em leitora incansável é construída aos poucos e a personagem ganha cada vez mais importância ao longo da trama. De garota-enxaqueca ela se torna fiel escudeira, depois Anjo Exterminador e, finalmente, apóstola dos ideais de Florence. Um arco de personagem surpreendente para uma personagem infantil.
O problema surge quando Violet, uma influente dama da sociedade local, interpretada com maligna elegância por Patricia Clarkson, decide usar de leis de proteção ao patrimônio histórico para transformar a Old House em um Centro Cultural. É aqui que os ratos, em forma humana e finamente vestidos, aparecem. Violet usa um bando deles contra Florence.
O Centro Cultural idealizado por Violet, numa sagaz atualização crítica do texto original de Penelope Fitzgerald, espelha os rumos da cultura contemporânea, na qual entretenimento vazio não mais se diferencia de arte. Os ratos de “O Nome da Rosa” amam livros como alimento. Da mesma forma, os ratos humanos de “A Livraria” consomem literatura, e arte em geral, como mero verniz cultural para aparecer bem frente à sociedade. O tal Centro Cultural seria mais um ponto de encontro social do que um local de genuína apreciação artística.
Não por acaso, quem acaba se tornando o maior aliado de Florence é exatamente o Dom Casmurro oficial da cidadezinha: o discreto e isolado senhor Brundish, interpretado em todas as suas sutis contradições por Bill Nighy, ator com um dos rostos mais marcantes do cinema atual. Brundish é um leitor voraz que, desgostoso com a humanidade, prefere acreditar que os livros surgem por geração espontânea. Não são escritos por ninguém, simplesmente existem. Exatamente por isso, ele costuma arrancar as capas dos volumes que têm fotos dos autores e queimá-las. Essa é a primeira vez que o fogo aparece na história. Surge aqui como um signo de solidão e exílio, e posteriormente como ação purificadora. O que é digno de nota é que essa virada não se dá de maneira óbvia, pelo contrário: o filme é muito bom em entregar pistas ao espectador de modo a fazê-lo pensar que sabe o que vai acontecer. Ledo engano. Sempre de modo sutil e cadenciado, sem pressa ou reviravoltas estridentes, o roteiro apresenta soluções originais, cheias de significados maiores.
É sintomático que a aliança entre Florence e Brundish possua como marco inicial o primeiro livro que ele adquire na livraria, por sugestão dela. Trata-se do romance de ficção científica “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que se passa em uma Inglaterra de um futuro distópico no qual os livros se tornaram objetos proibidos e, quando encontrados, são queimados por bombeiros que não mais apagam fogo, mas o produzem para destruir a memória literária da humanidade, que se tornou politicamente perigosa. Um desses bombeiros acaba se convertendo em leitor e, por consequência, em um fora da lei. Ele foge e se exila em uma estranha comunidade onde as pessoas decoram livros inteiros, tornando-se eles próprios os livros que escolheram guardar na memória. Transformam-se, literalmente, em homens-livros.
Uma das melhores cenas do filme é a primeira visita que Florence faz ao castelo de Brundish. O cinéfilo mais experimentado vai notar que o encontro da dupla é uma homenagem à primeira aparição de Bela Lugosi como Drácula no clássico de 1931, com direito a escadaria, brasão de nobreza e espelho coberto por um pano.
Mas Brundish não é um vampiro, um morto-vivo: é antes um homem que quis morrer, enterrou-se em sua mágoa, mas reviveu. O relacionamento entre Florence e Brundish é marcado por um discreto erotismo. Ela é viúva; ele, abandonado pela esposa. Em certo momento, ao melhor estilo Jane Austen, Brundish ousa avançar o sinal das regras sociais e diz a Florence que a encontrou “em uma fase errada de sua vida”. A diferença de idade é grande. Curiosamente, é ele quem a aconselha a vender o polêmico livro “Lolita”, de Nabokov, independentemente de seu conteúdo – considerado impróprio por muitos. Afinal, o que importa é que é um bom livro. De certo modo, Florence, embora mulher feita, não deixa de ser uma proibida Lolita para o idoso recluso. Os desdobramentos da decisão de Florence de vender o “romance proibido do russo exilado” vão alimentar ainda mais a sanha dos ratos humanos da cidade. É uma das sequências mais interessantes, e cômicas, do filme.
A fotografia, assinada por Jean-Claude Larrieu, é pontuada por uma palheta de cores em tons pastéis. Quando cores quentes aparecem na tela, seja em um vestido bordô confundido com vermelho ou no amarelo das chamas da lareira de Brundish, é para marcar pontos de passagem na narrativa. Uma narrativa que flui com leveza, conduzida pela trilha sonora funcional de Alfonso de Vilallonga.
“A Livraria” é, enfim, uma bela homenagem àqueles que amam a leitura. O escritor italiano Umberto Eco, autor do romance “O Nome da Rosa”, foi um defensor ferrenho da sobrevivência do objeto livro. Chegou a escrever o manifesto bibliófilo “Não contem com o fim dos livros”, em parceria com Jean-Claude Carrière, um dos roteiristas preferidos do cineasta Luis Buñuel. Cinema e literatura como irmãos siameses. A diretora Isabel Coixet dedicou os prêmios Goya conquistados “a todos aqueles que ainda compram livros, abrem livrarias e amam cinema”. Em tempos de Centros Culturais que dinamitam a cultura, essa é uma homenagem mais do que necessária. Afinal, se Florence sempre dizia que ninguém se sente solitário em uma livraria, ouso estender sua frase afirmando que ninguém se sente solitário assistindo a um bom filme.