Nós e nossa grandiosa capacidade de supervalorizar ninharias

Nós e nossa grandiosa capacidade de supervalorizar ninharias

O universo que o perdoe, mas agora ele quer vingança. Desforra. Castigo. Retaliação. Isso não vai ficar assim. Mas não vai mesmo. Você não sabe com quem mexeu. Agora ele vai até o fim. Enquanto não varrer a sua raça do universo, ele não terá um só instante de descanso.

Machucado no fundo da alma, ele sofre por não ter nascido de sangue frio e colhões em chamas. Tivesse o mínimo de coragem e um pouco mais de força, avançaria sozinho contra você, como um rinoceronte furioso, de sangue nos olhos e veneno nos chifres. E esfregaria no asfalto a sua cara lavada e sem vergonha.

Hoje você venceu. Aproveite. Chafurde nos segundos simplórios de seu triunfo. Não perca um só instante da sua vitória. Porque amanhã uma tempestade de estrume vai despencar sobre a sua cabeça idiota. E ela vai durar cem anos. Cem anos de fossa na porcaria da sua existência. Fosse ele da sua laia, você já estaria no chão. E ele estaria sobre você, golpeando a sua cabeça feiosa com um pedaço de pau, uma barra de ferro, uma panela de pressão, até afundar-lhe o crânio. Você tem sorte, criatura irrisória. Fosse ele uma pessoa maldosa, mostraria a você assim, na força e na hora, quem é que manda.

Mas não. Ele é uma pessoa “do bem”. Comprou o disco de um cantor brasileiro de rap que fala de pobreza, compaixão e essas coisas. Foi a uma passeata segurando um cartaz com a frase “mais amor, por favor”. Chorou no comercial dos médicos sem fronteiras. Até esmola a mendigo ele dá. É bom sujeito e não vai se sujar por tão pouco. Não vai mergulhar na lama com a qual você sujou a cara camisa branca dele, bordada com o nome da família. Isso não. Ele vai fazer o que se espera de alguém justo e honesto. Vai contratar o advogado mais imundo e espertalhão do país para arrancar até as suas roupas de baixo. Quem sabe assim você aprende a não mexer com quem está quieto.

É isso. Vá se preparando, besta ridícula. Agora ele vai até as instâncias internacionais, até o Tribunal de Haia, se preciso. Daqui para frente é tudo ou nada. Essa briga só termina quando ele tiver acabado com você e toda a sua corja de safados e biltres. Pensando o quê?

Depois de arruinar a sua vida idiota e cretina, ele vai destruir a sua família. Como? Vai comprar as empresas em que seus fracassados parentes trabalham só para botar todo mundo na rua. E vai comprar a espelunca onde você se esconde, derrubar e fazer uma academia de luta no lugar. Ele vai varrer a sua raça da face da terra. Vai, gente vagabunda! Passem daqui, cachorros! Vão correndo de volta para o inferno de onde nunca deveriam ter saído. Xô!

Ninguém mandou abrirem a caixa de pandora. Agora segurem a fúria dos demônios que escaparam de seu coração bondoso, gentalha!

Ouviu a poderosa gargalhada saindo pelas frestas das janelas de sua máquina importada, vermelha como os olhos do cão? É o canto de mil gárgulas avançando contra o seu pescoço. Corra! Fuja! DESAPAREÇA!

Então o semáforo acende a luz verde, o trânsito parado volta a fluir e você, você mesmo, em seu carro popular, que há pouco entrou tranquilamente na frente dele, sem saber que o irritaria de morte, pega outro caminho e some no labirinto de avenidas, ruas, vielas e becos sem saída. Fuja mesmo, covarde. Melhor pra você.

Ele respira fundo e entra no estacionamento do shopping. Lotado. Nenhuma vaga. Mas espere! Tem uma ali. É reservada para idosos, gestantes e portadores de necessidades especiais. Dane-se. Ele, um homem perfeito, livre de qualquer deficiência física aparente, tão longe de completar 60 anos de idade e, ao que tudo indica, sem a menor possibilidade de estar grávido, embica o carro e ocupa a vaga sem nem dar a seta.

O universo que o perdoe. Ele pode. Ele é uma pessoa “do bem”.

André J. Gomes

É professor e publicitário.