O escritor francês Marcel Proust gostava de jogar uma brincadeira de salão chamada “Confissões”, onde os participantes respondiam perguntas pessoais. Em sua homenagem, hoje o jogo ficou conhecido como “Questionário Proust”.
A Revista Bula, depois de ter adquirido em um concorrido leilão no eBay a Tábua Ouija original do filme “O Exorcista”, entrou em contato sobrenatural com o próprio Marcel Proust, em carne, osso e ectoplasma, que, relembrando seus tempos de jornalista, assinou contrato exclusivo como nosso correspondente do outro lado da vida.
Sempre nas altas esferas celestiais, Marcel Proust entrevista José Saramago, único prêmio Nobel da Língua Portuguesa. Eis um verdadeiro encontro de titãs, separados em vida pelo tempo e pelos Pirenéus: de um lado o francês de “Nomes de terra”, do outro o lusitano de “Todos os nomes”. Com vocês, na série Entrevistas do Além, o legitimo Questionário Proust com o evangelista ateu José Saramago, psicografado em javanês pelo meio médium ligeiro Ademir Luiz.
Marcel Proust — Monsieur Saramago, fala francês?
José Saramago — Aprecio muito a literatura francesa. Inclusive traduzi Baudelaire na juventude. Infelizmente, não por nobres motivos estéticos, mas para aumentar meus rendimentos.
Marcel Proust — Como tem sido sua vida após a morte?
José Saramago — Nestas intermitências da morte sinto-me saudoso de minha Pilar, que não deixou que eu morresse enquanto pôde. Mas agora espero não tornar a vê-la tão cedo. Embora esteja nela, não acredito em vida após a morte, então que Pilar viva, viva muito. Pilar, nós encontramos em outro sítio.
Marcel Proust — Incomoda ser psicografado por um médium brasileiro que não acredita na mediunidade?
José Saramago — Estamos juntos na descrença. Sou um materialista. Não acredito nestas supostas espiritualidades que colocam os ideais de vida ou a satisfação dos desejos de cada um a distâncias inalcançáveis.
Marcel Proust — Encontrou-se com Deus?
José Saramago — Deus é uma aldrabice. Eu diria que é todo o meu ser que rejeita uma crença em Deus.
Marcel Proust — Então, por que escreveu tanto sobre Deus?
José Saramago — Não escrevi sobre Deus, escrevi sobre os homens que creem em Deus. Certa vez me perguntaram: “Como podem homens sem Deus serem bons?”. Respondi: “Como podem homens com Deus serem tão maus”.
Marcel Proust — E em Lúcifer, acredita?
José Saramago — Deus, o Diabo, o bom, o ruim, tudo está na nossa cabeça. Jesus acreditava no Diabo. Veja o que lhe aconteceu.
Marcel Proust — Por falar em Jesus, sabe se Ele leu seu evangelho?
José Saramago — Ele foi discreto no comentário, mas suponho que não tenha achado mais real ou mais falso do que qualquer um dos outros.
Marcel Proust — Com quem tem mais liberdade, com homens ou com mulheres?
José Saramago: Entendo-me sempre melhor com uma mulher do que com um homem. A conversa é sempre mais solta, mais descontraída. Eu acho que a relação com as mulheres é mais direta.
Marcel Proust — Como foi seu contato com o universo da literatura?
José Saramago — Era um leitor apaixonado. Não tinha livros em casa, mas costumava ler muito em bibliotecas públicas, sobretudo de noite. Não havia ninguém para me dizer o que experimentar. Tive uma formação literária cheia de lacunas, mas com o tempo consegui organizar uma espécie de visão coerente da literatura.
Marcel Proust — Borges dizia que sua visão de paraíso é uma biblioteca? E a sua?
José Saramago — A Casa, com Pilar. A felicidade consiste em dar passos na direção de si próprio e ver o que se é.
Marcel Proust — E sua visão de inferno?
José Saramago — O mundo. Mas não pense que sou pessimista, o mundo é que é péssimo.
Marcel Proust — O português é mesmo a língua da solidão?
José Saramago — Comunicava-me com Pilar em castelhano. Mas não posso reclamar de solidão em português. Fui um escritor de certo sucesso, um escritor que leitores de diversos idiomas queriam. E escrevendo em português, sobre temas portugueses, para portugueses.
Marcel Proust — Monsieur se considera um escritor tipicamente lusitano?
José Saramago — Nunca posso separar-me daquela ideia de que sou um português de Portugal. Há uma ligação profundíssima, uma raiz em tudo o que tem a ver com minha terra natal.
Marcel Proust — “Saudade” é de fato a mais bela palavra da língua portuguesa?
José Saramago — A palavra de que eu mais gosto é não. Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário dizer não. O não é a única coisa efetivamente transformadora.
Marcel Proust — E para onde caminha Portugal?
José Saramago — A União Europeia nos dita tudo o que devemos fazer em todos os níveis. Caminhamos para a pior morte: a morte por falta de vontade. Um país morto, como Portugal, não pode fazer uma cultura viva.
Marcel Proust — Fernando Pessoa concorda?
José Saramago — Pessoa fez-me um retrato bastante claro e completo do homem português, com as suas contradições, com seu misticismo um tanto mórbido, que é nossa capacidade de esperar, que não é mais do que um desejo de adiar.
Marcel Proust — Qual livro levaria para uma ilha deserta?
José Saramago — Subvertendo sua pergunta, respondo que é necessário sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós. Antes escrever um “conto da ilha desconhecida” do que se alienar no autoexílio.
Marcel Proust — Quais os grandes autores que o inspiram?
José Saramago — São muitos, mas no século 20 a literatura se define em três nomes: Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e Franz Kafka.
Marcel Proust — Monsieur escreveu poesia, contos, dramaturgia e crônicas, mas foi reconhecido como um mestre do gênero romance. O que é o romance?
José Saramago — O romance pode confluir tudo, a filosofia, a arte, o direito, inclusive a ciência. O romance é como uma suma, é como um lugar de pensamento.
Marcel Proust — Ainda é comunista?
José Saramago — Fui e sou um comunista libertário. Um comunista hormonal, meu corpo contém hormônios que fazem crescer minha barba e outros que me tornam um comunista. Mudar, para quê? Eu ficaria envergonhado, eu não quero me tornar outra pessoa.
Marcel Proust — Mesmo depois dos massacres de Stálin, Mao e Fidel Castro?
José Saramago — Rompi com Fidel em 2003 e mantenho o rompimento. Ele mandou fuzilar três dissidentes. Cuba não ganhou nenhuma batalha heroica fuzilando esses três homens, mas perdeu minha confiança, destruiu minhas esperanças.
Marcel Proust — É decepcionado com o comunismo?
José Saramago — O capitalismo nada promete, portanto não cabe decepção. O comunismo promete muito e esse é o drama. Mas, sempre digo, “capitalismo, nenhum; comunismo, outro”.
Marcel Proust — Acredita no progresso?
José Saramago — O único progresso é o progresso moral. O resto é simplesmente ter mais ou menos bens.
Marcel Proust — A literatura possui funções moralizantes?
José Saramago — Nem a arte, nem a literatura tem que nos dar lições de moral. Nós é que temos que nos salvar, e isso só é possível com uma postura cidadã ética.
Marcel Proust — Soube que Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel?
José Saramago — Sim. Não me estranha. Se os suecos cometeram a ousadia de premiar um escritor português é porque não há mais limites.
Marcel Proust — Poderia viver sem escrever? E agora, escreve?
José Saramago — Agora descanso. Eu não acredito que se escreve por necessidade. Necessidade é comer e beber. Não necessito mais. Alguns levam tão longe seu papel de escritores torturados que dizem: se não escrever, morro. As pessoas têm a tentação de tornar as coisas mais interessantes, mais românticas. Criou-se a ideia do artista torturado, que finalmente não é um ser deste mundo. Como se o artista e o escritor fossem uma espécie de deus condenado a criar.
Marcel Proust — Por que escreveu se poderia evitar?
José Saramago — Escrevi para desassossegar meus leitores.
Marcel Proust — Monsieur possui muitas frases popularizadas na internet. Olhando de cima e por cima, o que acha da rede?
José Saramago — A internet é a nova Caverna de Platão. Os 280 caracteres do Twitter refletem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau vamos descendo para o grunhido.
Marcel Proust — Leu “Em Busca do Tempo Perdido”?
José Saramago — Sim. Lembro-me ainda que traduzi o livro “O Tempo das Catedrais”, do historiador francês George Duby. Tornei-me versado no tema e posso comprovar que sua obra é mesmo uma catedral literária, e das mais belas.