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No finzinho da ditadura militar, o endiabrado general Newton Cruz promoveu um apagão em Brasília. Em cima de um cavalo, espada em riste, desceu porrada em populares de todas as tendências e não-tendências que passavam à sua frente. Semanas depois, o jornalista Tarso de Castro lançava um suplemento jornalístico em São Paulo. O evento de lançamento foi na casa “Avenida Danças”, em Pinheiros. Dando uma força ao valoroso homem de imprensa, Chico Buarque, Fagner, Dominguinhos e uma formação compacta do Língua de Trapo chamada “A Outra Banda da Língua” (os gêmeos Paulo e Chico Caruso, Lizoel Costa, Laert Sarrumor e esse cronista da Bula).
Dias antes, Paulo Caruso me ligou encomendando uma letra sobre o apagão arranjado pelo generalíssimo. Resolvi fazer logo cabelo, barba e bigode: compus a música também. Era uma marchinha carnavalesca, o refrão era assim: “queremos luz! queremos luz! libera aí, seu Newton Cruz”. A ideia era cantá-la, fechando o evento, com a luz do teatro apagada e todos os artistas participantes segurando velas acesas no palco. Claro, uma flagrante provocação ao regime militar vigente no país. No dia do espetáculo, como eu sabia que ia cantar a música como solista (e tenho pânico disso), cheguei bem antes de todos no camarim.
Abro a porta e vejo um sujeito de costas para mim. Ele estava indo para outra ponta do salão para se servir de uma garrafa de vinho que estava sobre uma mesinha. Encheu o copo com o vinho e se virou. Era Chico Buarque de Hollanda. Sozinho, no camarim do “Avenida”. Fiquei sem voz, é óbvio. E ele, pelo visto, também, surpreso por alguém estar invadindo sua buarquiana privacidade. Levantamos as sobrancelhas um para o outro. E foi o máximo que deu para fazer. O autor de “Construção” começou a andar de um lado para o outro. Parecia acuado. Entendi que era pela proximidade do show e fiquei na minha. Chico andava, andava, colocava mais um pouco de vinho no copo e continuava naquele caminhar cabisbaixo. Sentado num pufe, eu o olhava sem saber como agir. Ia falar o quê?
— Pô, Chicão, que puta letra aquela do malandro, hein?
— Aquele exílio na Itália, que demais, né?
— E o Vinicius, bebia pra cacete mesmo ou era só pra mídia ver?
Passaram-se uns 15 minutos. Entra o outro Chico, o Caruso.
— E aí, Carlos? Já taí. com o Chico, é?
Respondi apenas dando de ombros. Chico Caruso, sentindo o drama de dois tímidos numa mesma sala, decidiu me apresentar: — Olha, Chico, esse é aquele letrista do Língua de Trapo. O que fez a música do Newton Cruz. O autor de “As vitrines” por fim, veio me apertar a mão… E disse: — Ah, eu li a sua letra! Boa demais, sabia?
— Boas são as suas! — consegui dizer com um fio de voz, mas sem perder a piada.
— Fazer música para os outros rir é muito mais difícil — ele contestou com modéstia.
Ficamos “nos elogiando” por uns momentos, quando Marieta Severo — sua esposa à época — entrou e tomou conta do ansioso Chico. Só fui vê-lo mais tarde. Quando eu cantava a marchinha “Queremos Luz” no palco iluminado por velas. O coral atrás de mim foi, de longe, o mais VIP que tive na vida. Dominguinhos, Fagner, os irmãos Caruso, Língua de Trapo e “os olhos verdes” cantando o refrão da minha música.
Moral da história: Chico de “backing vocal” é para poucos.