Quando a máquina trava, a vida liberta

Quando a máquina trava, a vida liberta

Três e meia da manhã. Dezenove horas depois do início da lida diária, a pobre diaba mofando no trabalho insano, em alguma sala acesa de um prédio comercial obscuro, assiste estarrecida a uma tragédia: o maldito computador decidiu travar.

Em sua insônia compulsória, a mulher sozinha e esgotada inveja a tela negra desabada em sono profundo. Queria dormir. Dormir até esquecer o próprio nome. Desligar sem aviso prévio como esse computador leviano, alheio a todo o empenho, todo o sangue, o suor e as lágrimas que ela derramara no teclado com os farelos da bolacha salgada que havia muito lhe servia de almoço e jantar.

Era só o que faltava, ela calcula. Balanços e fórmulas e planilhas cruzam agora as avenidas de sua cabeça com a velocidade de um avião rumo ao nada, ao precipício para onde despencam os arquivos não salvos, o inferno dos documentos deletados. Pronto. O trabalho está perdido. Não há o que fazer. Amanhã, quando o escroto de seu chefe cobrar barulhento e sádico as tarefas atrasadas, cuspindo-lhe na cara os insultos de sempre e os restos de pão com queijo do café da manhã, ela vai engolir a tudo silenciosa, prendendo a respiração como quem evita inspirar um gás venenoso.

Mas aí, enquanto escorrega para dentro do abismo, ela vê uma ponta de raiz enxerida saindo da terra dura, debruçada sobre o sumidouro, e se agarra com esperança à sua última chance de resgatar o trabalho perdido: com a força que lhe resta, ela esmurra o computador como quem tenta reanimá-lo, trazê-lo de volta à vida. Acorda, cretino!

Ao primeiro tapa, vem o susto. Com a energia de um espirro, salta de dentro da máquina fria um pequeno vulto assustado, ligeiro, gelado feito um fantasma. Era uma lagartixa.

Sem saber, aquele réptil ridículo, pálido, lívido quase mata de novo o cadáver insepulto que ali jazia sob as obrigações. Já morta de cansaço, de fome, de sono e solidão, ela quase sucumbe outra vez. De pavor. Arrebatada pelo estalo surreal da chegada de uma lagartixa, saída do interior de uma máquina em direção à parede com a velocidade de uma piscada.

O bicho fica ali, o olhar arregalado, mirando sua senhoria involuntária.

E assim, sem querer e sem pedir, as duas serão colegas pela infinidade dos minutos seguintes — uma no alto da parede e a outra ali embaixo, com os pés no solo e o coração nas mãos, apertando sua máquina gélida, como um salva-vidas que tenta ressuscitar um afogado. Nada. E depois nada de novo.

Mas ela insiste. E com a frieza de um cirurgião, a pobre diaba abre a máquina, pula no abismo e investiga suas entranhas para salvar-lhe a memória e recuperar seus deveres de um dia inteiro.

Ela não sabe, mas está prestes a presenciar um milagre.

Grudado à placa-mãe do computador, um minúsculo ovo branquelo espera sua hora de partir a casca e dar à luz uma lagartixinha. Sem pensar, a mulher se vira para a parede e lá está a lagartixa, a mãe, mirando-a nos olhos, esperando a sorte decidir o destino de seu diminuto rebento.

Ali estão as duas. Ela e ela. Cá embaixo, um ser humano na casa dos trinta conciliando responsabilidades corporativas, fracassos amorosos, pequenas frustrações de um dia depois do outro e um medo triste de chegar ao fim sem nunca ter visto um vulcão de perto, sem jamais ter abraçado seu cantor favorito, sem ter viajado para todos os países que conhecera nos livros. Sem nunca ter sido mãe.

Lá em cima, uma lagartixa implorando silenciosa pela vida de seu filhote, pedindo com os olhinhos em brasa que o gigante mau liberte seu ovo de ouro.

E na eternidade do olhar trocado com um réptil, ela se dá conta do que lhe parece a mais óbvia e poderosa verdade a respeito de nós mesmos, estes seres de ossos e carnes e veias e bilhões de conexões nervosas, perambulando pela vida como patinadores de supermercado, descendo em solavancos as ruas de paralelepípedo da existência, subindo sobre os joelhos as ladeiras de existir.

Ela deita os olhos sobre o ovinho branco e uma arrebatadora compreensão a toma de assalto: de repente, ela descobre o único motivo pelo qual resiste à companhia imoral de seu chefe escroto, e se esfola, e não dorme, e finge que as poucas horas que passa esperando tocar o despertador bastam para o descanso de seu corpo e de sua alma.

No susto do encontro insuspeitado com uma lagartixa, ela compreende por que aos poucos mata a si mesma para viver, por que corre contra o tempo até estourar as veias das pernas, grita até rachar a voz, se esfola, se dana, se ama, se odeia e enfrenta a vida sangrando as mãos contra o chão.

Pobre diaba. Como quem sobe aos céus e recebe a graça de ver tudo em perspectiva, ela mira de cima o pequeno ovo e compreende que todas as suas ações, todos os seus gestos e passos e palavras e tentativas são motivados por nada senão pelos poucos instantes raros como esse. Os breves momentos de perfeição que valem todo o esforço, e realizam nosso desejo inconsciente de vivê-los, e atendem a nossa vontade racional de merecê-los.

Ali, na companhia de uma lagartixa e sua cria, a mulher percebe que, apesar de todas as nossas faltas, de cada um dos nossos escorregões e desvios, a despeito de toda a nossa crueldade inconfessada, nossa indiferença, nossos pecados, nossa preguiça, nossa gula e nossa inveja, a vida insiste e ainda nos presenteia com instantes assim. Ela está no centro de uma raridade. A vida a chama e a incendeia.

Ao inferno o computador, seus arquivos, o chefe escroto. O trabalho que espere no fundo do abismo. Parem tudo e observem. Daqui a pouco, uma criança vai nascer entre nós.

André J. Gomes

É professor e publicitário.