A vida tem dessas coisas malucas, que confundem nossa mente pouco treinada a complexidades. Como pode, no mesmo instante, termos fim e começo a um palmo do nariz? Os dois ali, parceiros, acenando em sintonia, sugerindo que nem sempre são antagonistas que disputam espaço e atenção. A vida tem dessas mágicas que nos permitem que sejamos, por um segundo, passado e futuro, saudosismo e expectativa, caminho esgotado e travessia a ser desbravada. À meia-noite de 31 de dezembro, agraciados pela decisão humana de dar reset no tempo e reinaugurar o calendário, somos linha de chegada e ponto de partida: metade do peito dizendo adeus ao que nos trouxe até aqui, a outra metade se abrindo em festa para o que virá.
Talvez seja só uma forma inocente de burlar as pelejas que nos castigam. Talvez seja uma tola inclinação à ilusão de que ter nas mãos o antes e o depois é possuir o poder de comandar o tempo, assumir as rédeas e decidir o que pode ficar e o que deve partir. Mas, ainda que conscientes de que começar do zero não significa ter o destino sob controle, preenchemos a alma com a esperança de reinventar a própria história. Mesmo que calejados pelas incontáveis fantasias frustradas, permitimos com entusiasmo que o novo se instale, reavivando nossa fé.
Pouco importa que no dia 2 de janeiro a normalidade acachapante bata à nossa porta alertando que o telhado ainda precisa de conserto e o cheque especial não foi coberto pela magia dos fogos de artifício. Deixemos pra lá os boletos atrasados, os amores diluídos, as feridas não cicatrizadas pela contagem regressiva. Pensemos na saúde que nos mantém de pé, nos sorrisos que colorem nossos dias, nas amizades que nos estruturam quando parece impossível não sucumbir. São besteira os quilos ganhados no Natal, a frase atravessada do colega de trabalho, o arranhão no carro, o medo de não conseguir. Nos apeguemos à convicção de que há e sempre haverá a oportunidade de reencontrar o eixo e restabelecer a paz (facilitada por um prato de lentilha e sete ondas puladas).
Não faz mal nos rendermos ao sonho de que tudo vai melhorar de um dia para o outro. Não custa a roupa branca, as sementes de uva guardadas na carteira, amortecer com doçura o peso de cada dor que nos deixou um pouco mais duros. Não há problema em nos vestirmos dos pés à cabeça de clichês e pieguices, pois são eles e não a racionalidade que nos permitem, aos trancos e barrancos, sobreviver. No último dia do ano haveremos de rever orgulhos, viabilizar reconciliações, agradecer pelas dádivas recebidas e perdoar os danos que fizeram tudo parecer cinza.
No último dia do ano haveremos de pincelar com um pouco de graça essa jornada que nos leva do chão ao topo num piscar de olhos, que nos faz em um dia abraçar o travesseiro aos prantos e no outro ter vontade de gritar aos céus como a vida vale a pena. Seremos o acumulado dos anos anteriores dando passagem para ares inéditos. Alicerçados nos perrengues que nos deram casca e nos prazeres que nos deram ânimo, uniremos o ontem e o amanhã em um só minuto. Poderemos, então, reiniciar a trajetória sem abrir mão do que já foi construído. No último dia do ano, ao brincar de recomeçar, estaremos treinando nossa habilidade de nos reerguermos nas quartas-feiras, numa manhã de inverno, às duas da tarde de um dia qualquer do mês de maio. O ano novo, em seus tons brilhantes e sedutores, é rascunho da coragem que nos é cobrada o tempo todo. É ensaio para a vida real.