Finalzinho dos anos 1990. Eu trabalhava numa agência de publicidade que tinha a conta de um grande banco. Criei uma campanha para esse cliente cujo conceito era “no dia a dia do Brasil tem o banco X”. Eram anúncios de página quádrupla, uma novidade na época. Em cada uma das folhas havia uma foto de um grande fotógrafo brasileiro, entre eles Sebastião Salgado. Lembro-me que o registro dele representava a produção agrícola: do plantio, aos cuidados com a lavoura, até a colheita.
Desde sempre apaixonado pelo trabalho do Sebastião, aproveitei a campanha e liguei para a agente dele em Paris. Apresentei-me como redator da agência de propaganda encarregada da comunicação do banco e disse à moça que queria comprar uma ampliação do Salgado: uma que estava no livro “Trabalhadores”. Tratava-se de um lindo clique (como todos do mestre): uma menina, segurando um tabuleiro repleto de maçãs do amor, ao lado de uma prostituta. Foi tirada no período andino do fotógrafo.
A agente ficou de ver. Ligou-me dois dias depois dizendo que falara com Sebastião e que ele ampliaria a foto pessoalmente. E, como vinha ao Brasil em duas semanas para uma exposição no MASP, traria a cópia dentro de um canudo de papelão em sua mala.
Dias depois estava eu na abertura da exposição no MASP. Peguei a foto assinada das próprias mãos do fotógrafo. Na época não existia a palavra “selfie”, mesmo assim acabamos saindo juntos numa foto feita pela assessoria de imprensa do museu. Antes de ir embora perguntei a ele:
— E então, como é que faço para pagar essa beleza?
— Veja com a minha agente — disse Sebastião, naquele tom dos artistas que não gostam de se envolver com questões burocráticas.
Liguei novamente para a moça. E, quando ela disse o preço da fotografia, quase despenquei da cadeira. Era caríssimo para os meus padrões de redator iniciante na carreira.
Olhei para a ampliação feita num papel matte especial. A menina das maçãs do amor olhava para mim como se dissesse que era chegada a hora de voltar para a França, que sua passagem pela minha casa seria brevíssima.
Tomei tento e decidi ser sincero com a agente:
— Olhe, eu adoro o trabalho do Sebastião Salgado. Mas preciso dizer uma coisa: o valor está além das minhas posses. Vou ter que devolver. Me passe, por favor, o endereço do hotel dele que mando a foto ainda hoje.
Ela tentou me dissuadir, mas, no fim, pediu um tempo:
— Carlos, tenho um compromisso. Falamos daqui a pouco.
Quando estava reembalando o canudo, toca o telefone. Era o Sebastião.
— Como assim você não vai ficar com a foto que eu fiz pra você?
Meu coração começou a bater na goela.
— Olha, Sebastião, vou ser bem franco: eu acho suas fotos fenomenais. Mas ainda não sou rico para bancar esse valor por uma ampliação. Talvez daqui uns 10 anos, se eu virar diretor de criação. Mas agora… Enfim, eu estou muito constrangido e…
Ele me cortou:
— Você VAI ficar com a foto!
Engoli em seco. Era hora de endurecer, mesmo o cara sendo “o cara”.
— Olha, você não está entendendo. Eu não tenho o dinheiro. NÃO TENHO O DINHEIRO. Deu pra entender agora?
Pausa.
— Posso falar? — disse Sebastião, contemporizando.
— Claro, por favor…
— Ninguém está mencionando dinheiro, percebe? Você não trabalha em agência de publicidade?
— Sim, trabalho.
— Então façamos assim: vou mandar uma outra foto pra você. É de uma dupla caipira que meu pai ajuda lá no interior. Eles tocam em circo. Você pede ao seu produtor gráfico um fotolito dela pra mim? Aí fica a minha foto pelo seu fotolito. Fica bom assim? Espero que fique, porque não tenho mais espaço na mala pra levar o canudo de volta pra casa…
E assim foi. A agência absorveu os custos do fotolito e a foto do Sebastião Salgado está em minha sala até hoje.