O escritor francês Marcel Proust gostava de jogar uma brincadeira de salão chamada “Confissões”, onde os participantes respondiam perguntas pessoais. Em sua homenagem, hoje o jogo ficou conhecido como “Questionário Proust”.
A Revista Bula, depois de ter adquirido em um concorrido leilão no eBay a Tábua Ouija original do filme “O Exorcista”, entrou em contato sobrenatural com o próprio Marcel Proust, em carne, osso e ectoplasma, que, relembrando seus tempos de jornalista, assinou contrato exclusivo como nosso correspondente do outro lado da vida.
Sempre nas altas rodas aristocráticas e altas esferas celestiais, Marcel Proust entrevista o poeta português Fernando Pessoa. Eis um verdadeiro encontro de titãs múltiplos: de um lado uma pessoa que é uma catedral, do outro uma pessoa que é uma legião. Com vocês, na série Entrevistas do Além, o legitimo Questionário Proust com o Fernando em pessoa, psicografado em javanês pelo meio médium ligeiro Ademir Luiz.
Marcel Proust — Monsieur Pessoa, fala francês?
Fernando Pessoa — Sim, embora o francês seja uma língua secundária. O inglês é minha língua de filiação e afeição. Mas deixei uns tantos “French Poems” reunidos em um envelope.
Marcel Proust — Te incomoda saber que estamos sendo psicografados por um médium brasileiro que não acredita em mediunidade?
Fernando Pessoa — Sou médium das figuras que criei. Que essa qualidade no escritor seja uma forma de histeria, nem contesto nem apoio.
Marcel Proust — Pessoa, como se define como pessoa?
Fernando Pessoa — Sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina.
Marcel Proust — O que lhe causa desassossego?
Fernando Pessoa — Horroriza-me a ideia de que uma coisa qualquer possa ser determinada por Deus.
Marcel Proust — E encontrou-se com Deus?
Fernando Pessoa — É um velho estúpido e doente.
Marcel Proust — E Lúcifer?
Fernando Pessoa — Não existe. É o vácuo dentro do vácuo, satélite na órbita inútil de coisa alguma.
Marcel Proust — E com Camões, encontrou-o cara a cara?
Fernando Pessoa — Mandei-lhe em vida uma “Mensagem”.
Marcel Proust — Qual sua maior ambição como escritor?
Fernando Pessoa — Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade.
Marcel Proust — Nota-se que está sempre muito aprumado. É uma preocupação?
Fernando Pessoa — O artista deve ser belo e elegante, pois o que cultua a beleza não deve ser ele mesmo feio.
Marcel Proust — O argentino Jorge Luis Borges afirmou que sua visão de paraíso é uma biblioteca. E a sua?
Fernando Pessoa — Um romance policial, cigarros e uma chávena de café, resume-se nisto a minha felicidade.
Marcel Proust — E sua visão de inferno?
Fernando Pessoa — O provincianismo. O provincianismo consiste em fazer parte de uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela.
Marcel Proust — Considera-se um escritor tipicamente português?
Fernando Pessoa — O bom português é várias pessoas. Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim.
Marcel Proust — Como se mede o valor de uma civilização?
Fernando Pessoa — Pela cultura, saúde e energia de seus membros.
Marcel Proust — Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro Campos?
Fernando Pessoa — Fernando Pessoa. Sou como um quarto de espelhos fantásticos, uma única realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Marcel Proust — Qual livro levaria para uma ilha deserta?
Fernando Pessoa — Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Divido a ilha com o Sherlock de Conan Doyle.
Marcel Proust — Uma obra inesquecível?
Fernando Pessoa — Os “Pickwick Papers”, de Charles Dickens, transmudaram-me para aquela pessoa diferente que todos nós desejamos ser.
Marcel Proust — O artista deve ser engajado politicamente?
Fernando Pessoa — O artista não tem que se importar com o fim social da arte. Essa preocupação compete ao sociólogo. O artista tem só que fazer arte.
Marcel Proust —Mas foi um comentarista político. Separa política e arte?
Fernando Pessoa — Como pessoa não poderia deixar de me opor ao salazarismo e ao fascismo.
Marcel Proust — O bruxo Aleister Crowley foi até Portugal conhecê-lo. Reencontrou-o no pós-morte?
Fernando Pessoa — Não. Estamos em andares diferentes.
Marcel Proust — E quanto ao sacerdote Vasco Reis, autor de “Romaria”, livro que venceu “Mensagem” em um concurso literário. Encontrou-o no além vida?
Fernando Pessoa — Também não. O pobre padre foi esquecido até aqui. Só encontro vagas citações em notas de rodapé de minhas biografias.
Marcel Proust — O português é mesmo a língua da solidão?
Fernando Pessoa — Minha pátria é a língua portuguesa. Se é verdade, somos ambos solitários.
Marcel Proust — Então a ideia de patriotismo lhe agrada?
Fernando Pessoa — Um gênio antipatriota é um fenômeno aceitável, mas um operário antipatriota é simplesmente uma besta.
Marcel Proust — Lamenta não ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura?
Fernando Pessoa — José Saramago contou-me esses dias que escreveu um livro chamado “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Imagino que os suecos me conheçam agora e que eles sim lamentam.
Marcel Proust — Soube que o músico Bob Dylan ganhou o Nobel?
Fernando Pessoa — Desconheço. É fadista? Toca guitarra portuguesa?
Marcel Proust — Outro escritor português, António Lobo Antunes, declarou que não é seu admirador, que sua poesia o aborrece até a morte. O que lhe responderia?
Fernando Pessoa — Estarei na espera de sua passagem de fato, para mostrar-lhe o que é ser aborrecido com maestria.
Marcel Proust — É um cavaleiro templário?
Fernando Pessoa — Sou um pagão decadente, mas também um cristão gnóstico, contrário as igrejas organizadas, e de fato fui iniciado nos três graus menores da aparentemente extinta Ordem Templária de Portugal.
Marcel Proust — Monsieur faleceu antes da popularização da internet. Olhando de cima e por cima, o que acha da rede?
Fernando Pessoa — Acho que espalham como se fossem minhas, “mensagens” que não escrevi.
Marcel Proust — Monsieur é um fingidor?
Marcel Proust — Leu “Em Busca do Tempo Perdido”?
Fernando Pessoa — Não tenho certeza, mas certamente um de meus 127 heterônimos leu.