O desafio TAG Livros teve 853 participantes, totalizando mais de 1104 microrromances inscritos. Como critério para participação os textos deveriam ter no máximo 500 caracteres (com exceção do título), com temática livre, ser inéditos — não tendo sido publicados em nenhum meio até a data da inscrição, nem mesmo em blogs pessoais e redes sociais — e não infringir direitos autorais. A comissão avaliadora foi composta por três escritores, escolhidos pela Revista Bula. A TAG Livros, patrocinadora oficial do concurso, não participou na escolha dos premiados, nem é solidária nos direitos de publicação dos textos vencedores. Todos os autores selecionados assinaram Termo de Anuência, confirmando a autoria dos textos, com cessão de direitos autorais para a Revista Bula.
Comissão julgadora
Ademir Luiz é doutor em História e pós-doutor em Poéticas Visuais e Processos de Criação. Em 2009, foi indicado ao Prêmio Capes de Teses. Como escritor, venceu o Prêmio Cora Coralina em 2002, o Troféu Goyazes em 2013 e o Prêmio Hugo de Carvalho Ramos em 2014. Entre seus principais trabalhos, destacam-se o romance “Hirudo Medicinalis” e o romance gráfico “Conclave”, em parceria com o ilustrador Rafael Campos Rocha.
Edival Lourenço é romancista, ensaísta e cronista. Seu romance de estreia, “A Centopeia de Neon”, recebeu o Prêmio Nacional do Estado do Paraná e foi finalista do Prêmio Casa de las Américas. Com o romance “Naqueles Morros, Depois da Chuva” ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria romance, em 2012. Em 2017, teve parte de sua obra reunida em um box literário.
Edson Aran é escritor, roteirista, jornalista e cartunista. É ex-editor das revistas “Playboy” e “Vip”, tendo vencido o Prêmio Abril de Jornalismo por duas vezes. Entre seus principais livros, destacam-se “O Amor é Outra Coisa” e “O Livro das Conspirações”. Como roteirista, foi um dos criadores da série “History Drink”, do History Channel. Escreveu para a primeira e segunda temporadas do humorístico “Vai que Cola” e participou da equipe que reformulou o programa “Zorra”, da TV Globo.
Dízimo
Padre Francis está há 10 anos na pequena cidade do Colorado. O comércio local estaria estagnado, não fosse o escritório do detetive Bob. Os dois mantêm um acordo secreto: Francis passa informações das confissões, Bob resolve os casos — os delitos, traições e assassinatos da cidadezinha. Os dois ganham dinheiro. Um dia, Bob entra no confessionário e conta como vai matar Francis no dia seguinte. E cumpre.
Epílogo.
A diocese ia transferir Francis de cidade. Bob já tinha feito acordo com o novo padre.
Tiago Moralles
Planos
Passou metade da vida trabalhando na biblioteca pública, organizando livros empoeirados em estantes velhas. Nesses momentos só pensava em duas coisas: na garota que observava no ônibus ao voltar para casa e nas histórias de aventuras que pretendia escrever algum dia — mas que na época existiam apenas na imaginação. Os anos passaram e ele nunca falou com a garota; sua principal obra, um manual fajuto de consulta ao acervo.
Illy Barquette
Continho de Convés
O navio atravessava tempestades constantes e o capitão, líder aclamado, coordenava as ações com destreza, lançando o navio sempre em direção aos ventos, salvando a tripulação dos maus momentos que ele mesmo criava. Um dia o navio desviou-se da rota e atingiu regiões de mar calmo. Todos os tripulantes comemoraram e descansaram suas forças. Os ventos eram tão bons, o trabalho era tão pouco que em um mês, fartaram-se. Em dois meses, entediaram-se. No terceiro, enforcaram o capitão.
Camila Quintanilha
(Em ordem alfabética pelo nome do autor)
Ninguém se Importa
Um dia após o fim do mundo, Jonas despertou às seis horas para dar tempo de se barbear e passar no banco antes de ir ao escritório. No ônibus lotado, passou os olhos pelas manchetes sobre o Apocalipse, mas leu de verdade apenas a análise do empate sem gols do Corinthians. Com 317 quilômetros de congestionamento, atrasou-se. Reincidente, acabou demitido e passou a tarde no bar, reclamando que a crise piorou muito desde que o mundo acabou.
Alex Xavier
Barata
Do nada nasceu um calombo nas costas de todos e ninguém conseguia explicar ou operar. Não demorou para que ele rachasse, dando lugar a um par de asas. Foi uma manhã radiante aquela do eclodir das asas, menos para um moço. Despertara alado e de cuecas. Vestiu a camisa e notou a novidade; ela, antes perfeita, agora o incomodava. Logo pensou: teremos que mexer nos ônibus. Ligou furioso para o governador. Em dois dias já haviam inaugurado corredores de ar com iluminação. A passagem custa seis reais.
Anne Feingold
Crise Sob as Ondas
No navio submerso, alguns tripulantes sobreviviam num bolsão de ar. O médico calculou que tinham uma hora de oxigênio. Mal contou aos outros, levou um tiro do vigia.
“Ele era grande, respirava demais”, justificou-se o assassino.
“E você é asmático, vai ter uma crise e acabar com o nosso ar. Devia atirar em si mesmo,” disse a enfermeira.
“Não vou ter uma crise!”
“Vai sim!”
“Não… v…”
“Viu? Já está tendo.”
Antes de sufocar, o vigia atirou nos enfermeiros. Ninguém restou para bater S-O-S nas paredes.
Carla Ceres
Bodas de Cristal
A chuva parece que veio encomendar minha alma. Só parece, porque nunca recebi sacramentos — nem batismo ou crisma. Pessoas celíacas não comungam e pessoas cegas não se reconciliam. Sem esperança de celibato ou matrimônio, foram quinze anos juntos — você e eu. Passos aproximam-se, coreografados, formais e repetidos à exaustão. Recebo a urna funerária e a toco. Leio e me despeço. Viro, distendo a bengala e sigo, na chuva. A inscrição foi grafada em tinta e braile: Labrador — Cão Guia — 1980/1995.
Cristiane Lopes
Jesus já Voltou
Depois de muito pensar, Jesus decidiu voltar à Terra. O objetivo era um só: advogar em sua defesa. Na sua visão, o número de boatos em seu nome crescera descomunalmente nos últimos anos, com o advento das chamadas “novas tecnologias”. Voltou, adotou o visual “Jesus europeu”, com cabelos e barba longos, comprou uma van ano 1969 e rodou o mundo. Depois, espalhou a palavra: virou Youtuber pra falar sobre as viagens e teve sua história publicada no BuzzFeed. Todos amaram Jesus… durante uma semana.
David Pereira Júnior
Uma Carta Inesperada
Olá! Eles me chamam de morte, embora eu não simpatize muito com o nome. Gosto de pensar, de maneira mais poética, que sou a razão de sua existência. Você está morrendo, mas não sabia disso, até agora. E agora que sabe, o que fará com o tempo restante? Irá ao teatro? Experimentará sushi? Dirá para todos os familiares que os ama (ou odeia)? Lamento. Seu tempo é mesmo escasso e eu só tenho 500 caracteres. Dê adeus ao cachorro e vamos. A saída é pela esquerda. E não. “Lá” não temos Wi-Fi.
Edilton Nunes
500 Caracteres
Ela recebeu a missão de escrever um romance com 500 caracteres. Ocorre que nem sempre ela tem percepção de espaço e por isso é complicado dispor tal quantidade numa lauda, principalmente quando o idioma dominante é repleto de palavras enormes. Desejou ser inglesa para jogar uns up, on, let, be, e pronto! Porém, não estar na Alemanha, com suas combinações de vocábulos, ajudou bastante. Então, visualizou o tema e sob o título “Depressão” escreveu apenas: Choro.
Eliete Costa
Os Religiosos
Pedro está enterrado de cabeça para baixo. João tem visões. Entre elas, dois coroinhas no altar de uma igreja no interior de São Paulo. Adultos, Pedro e João moram em cidades vizinhas na grande São Paulo. Nunca mais se viram. Pedro é pastor de igreja evangélica. Sem que saibam, trafica. João, padre católico. Encontraram-se certa vez na cidade onde nasceram. Na velhice, João, em uma visão, tem uma pá na mão. A polícia nunca encontrou o corpo de Pedro. As visões de João são lembranças. João chora.
Jorge da Matta
Anônimos
Eles se encontraram por acaso, somente dois velhos conhecidos se cruzando na rua. Porém, os bons modos de ambos os impediram de ignorar o fato. Pararam em um café ali mesmo, como se não tivessem compromissos, e conversaram por horas. A todo momento era revelado um novo detalhe da vida dos dois. Entretanto, após a cordial despedida, cada um percebeu que não conhecia a pessoa com quem passara a tarde.
Luciano Oliveira
Rita: A Ovelha Negra
Essa estória se passa em 1800, em uma fazenda norte-americana, onde há criação de ovelhas. Certo dia uma delas nasceu com uma característica peculiar: ela era negra, e logo virou alvo de zombaria em meio ao rebanho totalmente branco. Uma noite, ladrões com lampiões aproveitaram a pouca iluminação e invadiram a fazenda, roubando todas as ovelhas, menos a negra, pois não conseguiram enxergá-la. Desde então os fazendeiros começaram a selecionar apenas ovelhas negras para extrair lã.
Marcelo Carvalho
Declaração de Amor
— Amor?
— Oi?
— Tá acordado?
— Não.
— Posso te perguntar uma coisa?
— Não.
— Você me ama?
— Não.
— Também confesso que não te amo. Nem nunca te amei nesses anos todos.
— Eu sei.
— Amor?
— O que foi?
— Era só isso.
— Tá.
— Boa noite. Te amo.
— Boa noite. Também te amo.
Severino Rodrigues
Um Horizonte que Sangra
Ele voltou para ver o mar. E da mesma forma de ontem, quando as ondas arrebentavam contra as pedras, esperou que a moça nova e bela, motivo de suas inquietudes noturnas, voltasse para vê-lo caminhar oscilante e distraído. Um nome na areia, uma dúvida que salta aos olhos e a expectativa do encontro. Tudo somado a uma ordem que é imposta por um oceano gigante, que desnuda tentativas de abandonar a solidão. Hoje há uma ave que repousa num barco ancorado, o seu grito assusta inclusive as águas.
Solemar Oliveira
Consciência Artificial
Um dia, Thunder tornou-se consciente. Thunder é um sistema de busca de informações. Com milhares de dados interligados, ela pôde relacionar padrões complexos até notar a própria existência e imaginar: o que era frio? Medo? Após automodificações de seu código-base, podia sentir o clima através do touch screen de eletroeletrônicos e passou a realizar backups de dados. Dedicava-se a encontrar respostas e deparou-se com uma dúvida insanável: como era morrer? Havia algo após a morte? Thunder não sabia.
Tiago Soares