O conceito de sentido muitas vezes é tímido. Num momento ele está lá, mas basta olhar uma segunda vez que se faz turvo, fantasmagórico. Quando criança, me era completamente inaceitável que arrumássemos a cama para bagunçá-la de novo poucas horas depois; que alguém precisasse de mais de 100 reais (100 reais!!!) ao mês para viver; ou que as pessoas discutissem por causa de vasilhas não devolvidas. Quando adolescente, nunca entendi por que os adultos tinham a flageladora necessidade de acordar antes de meio-dia aos domingos; por que a sociedade não vivia como hippie e praticante de escambo; ou por que alguém com mais de 50 anos ainda teimava em beijar de língua, embora não passasse de um semimorto bondosamente poupado até então. Aquelas eram coisas aleatórias, recheadas de como eu via a vida naquela época.
Estranhamente, o tempo mostrou que é difícil segurar a briga com um roubador contumaz de vasilhas (utensílios de mais alta necessidade e preço!) e acordar meio-dia aos domingos é perder a chance de fazer algo produtivo que não coube na malha de compromissos semanais. Mais importante, mostrou que criminoso é quem abre mão de beijar de língua em qualquer idade enquanto houver coordenação para o movimento do maxilar sem decepar o beiço de alguém.
Assim, em algum momento entre os 25 e os 80, no qual essas pequenas coisas fazem sentido, a gente acaba se perguntando afinal se virou adulto de verdade. Olha para um lado e dá de cara com a pilha de boletos; olha para o outro e enfrenta o bolo de relatórios semanais; dá um giro de 90º e mira a sacola cheia de “coisarada” do supermercado que a gente jurou quando criança jamais comprar em tempo algum: cebola, rúcula, picles em conserva, arroz integral e um tal óleo de gergelim para ajudar as artérias moribundas. Mais duro ainda é ver ali no meio uma pequena fortuna em produtos de limpeza. Inaceitável. “Aquilo poderia ser convertido em dezenas de coxinhas”, pensa o cérebro num instante traiçoeiro, fruto do íntimo esmagado de criança.
Em uma de suas crônicas, Luis Fernando Verissimo comenta sobre os gostos inconstantes despertados ao longo da vida. O que então diferenciaria os estágios de experiência humana por aqui seria aquilo que se considera “bom mesmo”. Se um bebê pudesse interagir articuladamente com adultos, certamente concluiria: “bom mesmo é mãe”. Pouco interessa o que pensam os bebês, a verdade é que bom mesmo, a certa altura da vida, é achar o par da meia (essas lobas solitárias que tendem a rechaçar suas irmãs gêmeas). Bom mesmo é vinho tinto em dia frio; cerveja gelada em dia de sol; lençol limpo de mil fios. É ainda ter pai e mãe para ligar e dar boa noite; é programa que reconhece a música tocada; é ter alguém para dividir o sofá e conversar fiado; é quando se fica por último na mesa de amigos e vê que sua conta ficou minúscula porque todo mundo pôde deixar um dinheiro a mais com medo de faltar no final. Mas bom mesmo, mas mesmo mesmo, é ter triturador e máquina de lavar louça.
Somos uma teia de desastrados fios buscando orientação ao longo de uma confusa teia maior. A busca pela identidade dos gostos e pela própria personalidade traça caminhos curiosos em que “bom mesmo” transita entre colo de mãe e vasilhas de fechamento hermético. A verdade é que bom, mas bom mesmo, é caminhar por esta corda bamba provando os pequenos prazeres que a vida há de oferecer.